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“Seu Carlos”, um amigo de 40 anos
Rodolfo Ilari conta como Franchi o orientou na carreira e episódios pitorescos do professor ilustre

Darlos Franchi era o “seu Carlos” para Rodolfo Ilari na Jundiaí de 1961. Então com 15 anos, Ilari, hoje professor aposentado da Unicamp, foi aluno de Franchi no Instituto de Educação, na época a mais renomada escola pública da cidade. Começava aí uma amizade que atravessaria os 40 anos seguintes. De aluno, Ilari, que chegara havia dois anos da Itália, passaria, na Unicamp, a colega de Franchi, que foi decisivo na escolha da profissão “do caipira recém-chegado da Itália, do caipira de Jundiaí, do caipira com medo de São Paulo”.
Ilari pretendia estudar Letras, mas não sabia para onde ir, além de não ser essa a escolha do pai, que queria vê-lo cursando Medicina. Certa manhã, Ilari encontrou-se por acaso com Franchi na Praça da Matriz de Jundiaí, ponto do cafezinho matinal de seu ex-professor e na época advogado atuante do Sindicato dos Ferroviários. “E aí, continua indo à escola?”, indagou Franchi. Ilari respondeu que sim, mas que estava convivendo com um dilema: não sabia se prestava vestibular em Campinas (opção mais natural) ou em São Paulo. “Deixe de ser bobo, faça em São Paulo. Se você não passar, presta em Campinas”, sugeriu Franchi, para em seguida provocar. “Está com medo?”.
Ilari ficou chocado com a pergunta-desafio lançada pelo professor de Português. Na dúvida, consultou uma antiga professora de Latim, que reforçou a opinião do colega. “Fui para a USP, fiz o vestibular e passei. E agradeço ao Franchi por isso. Se não fosse seu empurrão, teria optado por Campinas, que tinha um bom curso, mas eu não teria as oportunidades que tive”.
Não demoraria para que ambos se reencontrassem, agora na USP, onde Franchi fazia pós-graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada, sob orientação de Antonio Candido. Ilari cursava Lieratura Italiana, curso coordenado por Alfredo Bosi. Fausto Castilho, primeiro diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, garimpava, na universidade paulistana, nomes dispostos a assumir postos naquele que seria o embrião do Departamento de Linguística. No final de 1970, Ilari, Carlos Franchi, Haquira Osakabe e Carlos Vogt seriam contratados pela Unicamp. Enviados para fazer mestrado na universidade francesa de Besançon, foram vizinhos por cerca de um ano.
Na volta à Unicamp, em 1971, os quatro passaram a atuar em três frentes: lecionavam na graduação e no mestrado – que corria o risco de fechar por falta de alunos — e cuidavam da área administrativa do Departamento, cuja chefia ficou a cargo de Franchi. “Foi uma escolha natural. Ele era o mais velho e experimentado do grupo. E, como vereador em Jundiaí, Franchi tinha atuado na Comissão de Finanças e Orçamento e portanto era o único que entendia de administração”, revela Ilari.

Cadê? – Franchi desfrutava também da simpatia do reitor e fundador da Unicamp, Zeferino Vaz, com quem chegou a ter algumas rusgas, uma delas testemunhada por Ilari, naquele que seria o primeiro contato entre os dois. Centralizador, Zeferino costumava resolver os impasses à sua maneira. Irritado com a oposição política que lhe faziam alguns setores do IFCH e acompanhado de seus assessores, o reitor decidiu aparecer de surpresa no instituto numa tarde de sexta-feira para “dar uma incerta”.

Zeferino invadiu sala por sala e, sem encontrar viva alma, bradava pelos corredores: “aqui só dá vagabundo”. “Ao chutar a porta do Franchi, deu de cara com ele”, relembra Ilari, que emudeceu no canto da sala. Sem graça, Zeferino perguntou a Franchi quem era ele. Furioso, Franchi respondeu: “Não vou dizer quem sou. O senhor é quem tem que se identificar, porque invadiu meu escritório e me atrapalhou. Então, saia e peça licença para entrar”.

Zeferino saiu, bateu na porta educadamente, pediu licença, desculpou-se e explicou o porquê da abordagem: “estou pasmo em saber que, num instituto em fase instalação e com tanto a ser feito, não aparece ninguém”. Mas Zeferino gostou de ser enfrentado por alguém. Passados alguns dias, o reitor convocou Franchi e o intimou a chefiar informalmente aquele departamento, “com os quatro gatos pingados sem doutorado”. O objetivo era formar um núcleo de lingüistas que pensassem na formação de um futuro instituto de letras.

Na fase de implantação do departamento, Franchi voltaria a ter problemas com o reitor, que pretendia trazer grandes professores para a área de Física, mas não tinha como oferecer bons salários e colocar os escolhidos em nível alto de carreira. Seu expediente, então, era contratar também a mulher do sondado para dar aulas de línguas.

Franchi discordava do método e engavetava os currículos. Diante da insistência de Zeferino, marcou posição. Disse que o reitor não precisava de sua assinatura para formalizar as contratações e, se não tivesse outro jeito, se dependesse dele, não a teria. Ninguém foi contratado. Numa reunião do Conselho Diretor, um Zeferino conciliador disse a Franchi: “Gostei de você ter rejeitado aquelas indicações. Do contrário, tinha mais seis para mandar para você”.

A equipe - Franchi tratou, diz Ilari, de pôr a casa em ordem. O serviço foi pesado. Os docentes passaram a trabalhar em período integral para dar conta da demanda crescente, inclusive do mestrado – já reconhecido nacionalmente – e da pós-graduação. Franchi trouxe para a Unicamp professores já titulados, entre eles Aryon Rodrigues, Ataliba Castilho e Marcelo Dascal. Ficou estabelecido que os quatro professores do grupo inicial se revezariam para fazer o doutorado. Por iniciativa própria, Franchi foi o último a obter o título, em 1976, poucos meses antes da criação do Instituto de Estudos da Linguagem.

Quando Antonio Candido foi nomeado o primeiro diretor do IEL, concretizando um velho sonho de Zeferino Vaz, Franchi passou a ser diretor-associado do Instituto. “Houve um espécie de divisão de tarefas. Franchi cuidava do dia-a-dia, enquanto Antonio Candido cumpria principalmente o papel de representação, de contato com o reitor e de definição de grandes diretrizes”, diz Ilari, lembrando que o IEL experimentou naquele momento uma fase excepcional de crescimento, sobretudo com a criação do Departamento de Teoria Literária, que passou a contar com nomes como Modesto Carone e Roberto Schwartz.

Em 1979, Franchi seria eleito, unanimemente, diretor do Instituto de Estudos da Linguagem. Sua gestão, marcada pelo pluralismo e pela transparência, foi interrompida em 1981 pela intervenção malufista que culminou na demissão de 13 diretores da Unicamp. “Todos que pleitearam a reintegração, conseguiram. Mas Franchi não quis; não sei se no meio do processo ele ficou magoado ou se achou que não valia a pena voltar”, conta Ilari.

Distância - Franchi começava a se distanciar da Unicamp, depois de 11 anos de dedicação integral. Sua influência, porém, continuaria grande durante um bom período, sobretudo do ponto de vista acadêmico. “Ele começou, digamos, uma fase de aposentado, mas sempre foi uma referência, orientou muitos alunos que hoje estão dando as cartas na área de Lingüística pelo país afora. Sua familiaridade com as fontes era muito grande”, atesta Ilari, para quem a produção intelectual de Franchi era influente e diversificada.

Segundo ele, os trabalhos de Franchi podem ser divididos em três grandes linhas: reflexão teórica, descrição lingüística e crítica das teorias vigentes. “A reflexão teórica de Carlos Franchi resultou em colocar em pauta, na lingüística brasileira, alguns temas de grande alcance e alguns problemas que ele demarcou em escritos de grande erudição e densidade como, por exemplo, as condições de possibilidade da significação e a indeterminação da linguagem, o papel criativo da linguagem e as relações entre a linguagem e a mente”.
De acordo com Ilari, que também ocupou a direção do IEL (1991/95), Franchi era um profundo conhecedor da lingüística gerativa e cultivava, desde sua tese de doutorado (Hipóteses para uma teoria funcional da linguagem), tida por muitos como extremamente original para a época (1976), uma reflexão ao mesmo tempo respeitosa e crítica em relação aos sucessivos desenvolvimentos do projeto chomskiano. “Aquela tese de 1976, datilografada numa máquina de escrever comprada na rua Barão de Jundiaí, na loja do seu Panizza, antecipava algumas características do programa minimalista que hoje está na crista da onda, e iniciava uma busca de aprofundamento dos processos sintáticos mais fundamentais, que se prolonga em uma série de textos ou artigos”.

Ilari acredita que ao defender o pluralismo de orientações teóricas, cobrar qualidade da pesquisa científica e manter-se aberto aos desafios da interdisciplinaridade, Franchi deixou um legado inestimável para o IEL e para a linguística brasileira. O filho de um marceneiro da Companhia Paulista acabou fazendo história.

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