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Humildade na pesquisa para construir o futuro
Carlos Franchi assume comportamento exemplar no período em que a Unicamp esteve sob intervenção do governo do Estado

Rodolfo Ilari*

Em 1970, o Prof. Carlos Franchi, perseguido pelos militares por ter defendido as lideranças sindicais de sua cidade, abandonou uma carreira bem sucedida de professor efetivo do ensino secundário (ocupava na época as cadeiras de Latim e Português, ganhas por concurso, em uma escola secundária de Jundiaí) e renunciou ao exercício da advocacia (é licenciado em direito pela Faculdade do Largo de São Francisco) para tornar-se professor de um Instituto que se reduzia a uma sala – o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da recém-criada Universidade Estadual de Campinas. Foi assim que, depois de um estágio na universidade francesa de Besançon, viria a participar, com mais três colegas (Haquira Osakabe, Carlos Vogt e Rodolfo Ilari), da implantação do primeiro Departamento de Lingüística do país.

Nesse contexto de formação, ainda dentro do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, coube-lhe a delicada tarefa de planejar e conduzir o processo de titulação do grupo inicial, de imprimir uma orientação ao Departamento de Lingüística e dos cursos por ele ministrados e de orientar o crescimento de uma equipe que estava desenvolvendo rapidamente, com perspectivas de transformar-se em pouco tempo numa unidade universitária autônoma. Os serviços que o Prof. Carlos Franchi ministrou à Universidade Estadual de Campinas nesse contexto são inestimáveis. Como chefe de Departamento, organizou a escala de afastamentos que permitiu aos participantes do primeiro grupo alcançarem o doutorado; não por acaso, nessa escala, seu doutorado, ocorrido em 1976, foi o último. Diante da necessidade urgente de contratações, e num contexto em que eram comuns as imposições de nomes por parte da Reitoria, defendeu intransigentemente que o Departamento de Lingüística da Unicamp deveria crescer segundo uma orientação pluralista, mas sem fazer concessões quanto à qualidade intelectual dos novos contratados. Foi com essa visão ampla de política universitária que o Prof. Carlos Franchi conseguiu trazer para a Unicamp os serviços dos Professores Aryon Rodrigues, Ataliba Castilho, Cláudia Lemos, Marcelo Dascal, Mário Perini e Roberto Schwartz que, junto com o grupo inicial, e um punhado de valores novos recrutados sobretudo no curso de Mestrado em Lingüística, formaram o corpo docente do Instituto de Estudos da Linguagem, criado em 1977.

No Instituto de Estudos da Linguagem recém-criado, e dirigido de 1977 a 1979 pelo Prof. Antonio Candido de Mello e Souza, coube ao Prof. Franchi, na função de Diretor-Associado, a tarefa que ele resumia nas expressões “criar condições de trabalho”, e “enriquecer os corredores”; para o IEL, esse foi não só um período de definição institucional e administrativa (foi nesse período, por exemplo, que a totalidade do corpo docente passou a atuar em regime de período integral, uma opção que foi aberta inclusive aos professores de línguas), mas ainda o período de gestação de alguns importantes projetos coletivos de pesquisa (como o Projeto “Estudo da Aquisição da Linguagem”) e de realização de encontros memoráveis (por exemplo: os “Cadernos de Estudos Lingüísticos”) e de realização de encontros memoráveis (por exemplo o PILEI de 1981 e o Primeiro Encontro Internacional de Filosofia da Linguagem).

O sucesso dessa administração, que redundava no crescente prestígio do Instituto de Estudos da Linguagem em nível nacional e internacional, fez com que o nome do Prof. Franchi fosse lembrado para exercer a presidência da Associação Brasileira de Lingüística e o levou naturalmente à direção do próprio Instituto de Estudos da Linguagem, cargo no qual tomou posse em 1979, depois de uma eleição unânime. O mandato de quatro anos foi suspenso por um ato do então governador Paulo Maluf que demitia de seus cargos 13 diretores de unidade acusados de trabalhar por uma universidade menos burocrática e menos subserviente ao poder do momento, e os aposentava compulsoriamente.

Contrariamente a outros diretores afastados na mesma ocasião, o Prof. Franchi optou por não reivindicar sua reintegração aos quadros da Unicamp. Começava então para ele um período em que sua atividade de pesquisa e seu trabalho de formação de novos valores teria que exercer-se, em grande parte, à margem da universidade à qual havia dedicado o período mais profícuo e mais intenso de sua vida. Na Unicamp, foi ainda responsável pelo mestrado ou pelo doutorado de vários docentes que hoje gozam de merecida projeção: Wanderley Geraldi, Sírio Possenti, Maria Irmã Hadler Coudry, José Borges Neto (UFPR), Daniel Leonard Everett (Univ. da Pennsiylavia), Maria Cançado (UFMG), Sérgio de Moura Menuzzi (UFRs); fora da Unicamp, foi responsável por um longo trabalho de docência que, por quase duas décadas, contribuiu para despertar vocações e dignificar a investigação lingüística em algumas das principais escolas superiores do país (Universidades de Porto Alegre, Florianópolis e Rio de Janeiro), e que, acima de tudo, foi decisivo para que se criasse um importante centro de pesquisa sintático-semântica na Universidade de São Paulo. De fato, as equipes de pesquisa que hoje atuam no Departamento de Lingüística da Universidade de São Paulo sob a direção das professoras Ana Lúcia Muller e Esmeralda Vailati Negrão, com merecida repercussão no Brasil e no exterior, reconhecem no Prof. Franchi seu mestre e principal mentor. Mencione-se ainda sua passagem pelo Conselho Científico do CNPq, para o qual foi eleito como representante da comunidade científica, em mais uma prova da unanimidade do seu reconhecimento.

A produção científica do Prof. Franchi é altamente informal, tendo preferido a exposição em seminário ao impresso, e o working paper ao livro, mas é ampla e influente. Trata de temas à primeira vista disparatados, como a sintaxe gerativa-transformacional, o ensino de língua materna e a lógica que subjaz às operações lingüísticas mas tem, a unificá-la, as características da densidade crítica e da riqueza da informação bibliográfica, assim como o retorno sempre enriquecedor a motivos que se revelaram profícuos em vários campos da investigação lingüística, como a tese da indeterminação das línguas naturais, a tese de sua historicidade e a de que sua construção depende de um trabalho coletivo que compromete com a história as competências simbólicas mais fundamentais do ser humano. Essa produção situa de maneira magistral categorias fundamentais para a investigação teórica e prática, como as de função e categoria ou a de atividade epilingüística. É, muitas vezes, o resultado das parcerias e das amizades intelectuais que o Prof. Franchi manteve ao longo dos anos, com generosidade e humildade. É, acima de tudo, uma produção que chamou e chama o interesse dos leitores independentemente de qualquer esquema promocional.

Num contexto universitário, tão dado ao cumprimento de metas burocráticas, mas tão pouco eficiente em provocar a fermentação de novas idéias, homenagear o Prof. Carlos Franchi é muito mais do que recuperar a história e expressar um protesto de gratidão a alguém que dedicou parte de sua vida a construir as condições privilegiadas em que se ensina a pesquisa no Instituto de Estudos da Linguagem.

É, acima de tudo, reafirmar nossa vontade de pautar nossa atuação em valores sem os quais a Universidade se desagrega, como a capacidade de não transigir em matéria intelectual, a vontade de pesquisar com humildade e o desejo de construir o futuro com grandeza e desprendimento.

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EXEMPLO

Antonio Candido de Mello e Souza

Aprendi a estimar e admirar Carlos Franchi desde os tempos em que fez o meu curso de Pós-Graduação em Teoria Literária e Literatura Comparada na Universidade de São Paulo. Já era formado em Direito e estava buscando outro grau acadêmico, que, uma vez obtido, passou a condicionar a sua carreira e a sua vida intelectual. Professor de rara qualidade, pela segurança da informação, o método e a limpidez da exposição; educador sempre atento aos problemas do ensino em seus vários graus, revelou-se a seguir notável administrador universitário, no planejamento e na instalação do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas, que dirigimos juntos de 1976 a 1978, antes de ele assumir plenamente a chefia, por eleição, depois do meu afastamento. Portanto, ninguém melhor do que eu pode dizer que o título de Professor Emérito com que foi galardoado é justo e oportuno, pois testemunhei os grandes serviços que prestou à sua instituição. Nesse sentido, costumo dizer que, sem exagero, ele foi desde o primeiro momento o verdadeiro diretor do Instituto de Estudos da Linguagem, pois foi quem se encarregou da pesada tarefa do dia-a-dia administrativo. Intelectual de grande valor, docente perfeito, líder universitário cônscio dos seus deveres, Carlos Franchi é um exemplo para os colegas, os estudantes e as gerações futuras.

Antonio Candido de Mello e Souza é Doutor Honoris Causa da Unicamp

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Conversas instigantes

Sírio Possenti*

Tive a sorte de encontrar alguns bons professores. Dois eu achei excepcionais: Osvaldo Porchat Pereira, com quem fiz um curso no qual ele consumiu 30 horas, duas por semana, para ler 5 páginas de um artigo de Frege, sempre com o texto na mão, do qual extraía sempre referências novas. E Carlos Franchi, este sempre sem anotação alguma, produzindo, como se improvisasse, ensaios memoráveis a cada aula. Como escreveu pouco – quer dizer, como publicou pouco – talvez possa dizer dele o inverso do que alguns dizem de L. F. Veríssimo, que escreve muito e quase não fala: já pensou se o Franchi também escrevesse?

Além de ter sido aluno de Carlos Franchi, tive com ele, a sós ou com colegas, na sala 20 do barracão do IEL, especialmente no tempo em que tentava fazer minha tese – a dele era um poderoso fator de bloqueio, um modelo aterrador – numerosas conversas em que o tema era linguagem, sua verdadeira paixão, penso eu. Era um leitor voraz mas, principalmente, elaborava sempre mais sofisticadamente um conjunto de teses básicas. Creio que usava essas conversas para testar um pouco o que elaborava.

Sempre achei que aprendi mais conversando do que lendo – a leitura ora animava as conversas, ora esta preparava aquelas e (confesso) até dispensava algumas. As inúmeras conversas com Franchi foram sem dúvida as mais instigantes de que tive o privilégio de participar.
Uma outra característica marcante do professor Carlos Franchi era não cobrar de ninguém que o seguisse ou citasse. Sempre formou gente para o máximo de autonomia possível.

 

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