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Trechos de uma entrevista com Carlos Franchi

RODOLFO ILARI

No início do ano de 2001, as professoras Esmeralda Negrão e Evani Viotti, do Departamento de Lingüística da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP convidaram-me a participar de uma coletânea a ser publicada com o objetivo de manifestar o reconhecimento daquele departamento pelo importante trabalho de formação que o Prof. Carlos Franchi lá realizou nos últimos quinze anos. Para essa publicação, ficou acertado que eu deveria obter um depoimento sobre a tese de doutorado do professor, intitulada “Hipóteses para uma teoria funcional da linguagem”, defendida em 1976 sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo Dascal. Em abril de 2001, fiz com o Prof. Franchi uma entrevista que deveria ser a primeira de uma série de quatro. O principal tema tratado nessa entrevista foi a questão da composicionalidade, uma noção que interessa aos semanticistas, seja os de formação lógica, seja os de formação lingüística. Infelizmente, o agravamento de sua doença inviabilizou por completo a possibilidade de realizar outras entrevistas, durante as quais seriam abordados outros temas, alguns dos quais menos técnicos. Da entrevista realizada (que aparecerá na íntegra na publicação dos colegas da USP), foram extraídos os trechos abaixo, que tocam em alguns temas caros ao Prof. Franchi: o compromisso social da pesquisa universitária, o papel exercido pela Universidade Estadual de Campinas na renovação dos estudos lingüísticos e o trabalho histórico em que a linguagem se constrói e estrutura a experiência humana.

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Pergunta – Na década de ’70 era muito viva, para todos os que faziam a universidade – alunos e lideranças estudantis, professores e dirigentes universitários –, a expectativa de que o pesquisador fosse também um militante. Você vinha de um passado de resistência ao regime militar, que marcou muitos de seus colegas e alunos. Mas sua tese de doutorado, numa época em que era mais fácil entremear discussões políticas e filosóficas e análises lingüísticas, não trata de política. Qual foi exatamente sua opção?

Carlos Franchi - É interessante porque foram razões políticas que me levaram a sair com vocês para a França. Eu não sei se já comentei com você, eu estava numa situação um tanto embaraçosa em Jundiaí, por ter defendido os presos políticos. Conversei com o Antonio Candido, que tinha vontade que eu ficasse na USP. Ele me sugeriu inicialmente que eu aprendesse inglês, porque aí poderia ser levado por ele para os Estados Unidos. Parece que ele era professor visitante em Yale e vários dos seus alunos, que ele considerava mais prendados, foram pra lá como professores visitantes. Essa seria uma idéia, que eu ficasse um período fora do espaço político que me criava alguma dificuldade naquela ocasião. Não que eu fosse importante politicamente, mas Jundiaí era uma cidade pequena. O fato de eu ter defendido todos os presos políticos acabava criando uma imagem, havia senhoras que se benziam quando passavam por mim. Um dia Antonio Candido me chamou e disse: “Apareceu uma coisa excelente: em vez de aprender inglês e ir para os Estados Unidos, por que não vai para a França? Só que tem de ser agora!” Era outubro, e [um grupo de bolsistas] teria que sair em dezembro [para obter uma formação em lingüística matemática]. Ele até me disse que alguém tinha lhe pedido uma carta de apresentação, que tinha dado, mas que, a pedido da Fapesp, examinou o processo e achava que alguém com mais experiência (eu era o mais velho [de todos os candidatos cogitados]) podia ser uma pessoa mais interessante no grupo. Eu larguei tudo, fechei meu escritório de advocacia e fui para a França por essa razão. Então havia uma razão política nesse afastamento.

P – E lá na França...
R – Na primeira carta que escrevi ao Antonio Candido para agradecer a oportunidade, eu dizia que estava um pouco perturbado com o fato de estar na França, tranqüilo, escondido por trás dos alfas e betas dos modelos teóricos, enquanto provavelmente outras pessoas estavam mantendo a luta política. Eu refleti muito sobre isso naquela a ocasião. Que a sociedade contemporânea só subsiste por uma divisão cuidadosa de trabalho. Quando você estiver fazendo lingüística, ou física ou biologia, estará participando de um trabalho coletivo, que constitui, no fundo, elementos de base dos quais se sirvam não só, digamos, os que devem transformar esse conhecimento em ações práticas no meio social, tanto do ponto de vista físico, biológico, da saúde pública, mas também de políticas sociais. E eu estava cada vez mais convencido da posição fundamental da linguagem nesse processo, porque tínhamos naquele tempo convicções muito profundas a respeito de como, pela linguagem, pelo conhecimento simbólico, passava a filosofia, passava a ciência, passavam as convicções filosóficas, passava o conhecimento alheio. Enfim, compreender melhor o que fosse a linguagem era um problema tão social como compreender melhor o que se passava no Brasil naquele tempo. Essa idéia de uma divisão do trabalho, depois me pareceu mais evidente ainda na leitura de Chomsky. Chomsky faz sempre questão de separar a sua posição política, uma posição política que eu admiro – se eu tivesse algum sonho, gostaria de ter feito o que ele fez na área política e não na área da lingüística. O que me encanta no Chomsky é essa capacidade de divisão, que nele é singular porque ele é capaz de trabalhar com uma eficiência inacreditável nas duas áreas. Nós não temos essas condições. Mais limitados, nós ficamos numa delas. Mas ficar numa delas, fazer uma boa lingüística, procurar compreender quanto mais profundamente possível o que é a linguagem, como funciona a linguagem na sociedade, na construção do pensamento reflexivo, pra mim fazia parte de um programa que teria conseqüências desde didáticas, pedagógicas, até conseqüências no plano da reflexão filosófica. Inclusive porque quando lia filósofos – vou usar uma palavra ruim –, eu achava uma certa ingenuidade lingüística.

P – Você está se referindo a filósofos antigos?
R – Mesmo filósofos como Wittgensetein, eu já admirava muito. Mas eles certamente tinham uma compreensão da linguagem por um lado único. Não dá para usar Wittgensetein para fazer uma teoria da linguagem no sentido restrito do termo. Pense em Frege: eu achava que o papel mais importante do Frege era exatamente o de dizer para você o que você não precisava fazer... que era filosofia. Era como se ele dissesse: ‘existem aqui umas coisas que precisamos fazer, mas eu não vou fazer’. Frege, quando se aproxima de uma reflexão interessantíssima sobre as línguas naturais, é quase para dizer: “Desculpe, mas não é isso que quero fazer”. Tudo isso mostrava que trabalhar sobre a linguagem não era trabalhar num lugar onde, necessariamente, você se alienasse das suas preocupações de cidadão, das suas preocupações sociais. Acho que isso me tranqüilizou bastante. Só que tive a convicção naquela ocasião – você deve ter passado mais ou menos por isso – de que essa era uma análise a respeito da atividade que eu poderia fazer; uma outra análise me dizia: “Você não sabe nada a respeito de lingüística”. Daí a surpresa de me ver dentro de uma biblioteca melhor do que aquelas que tínhamos sobre lingüistica no Brasil. Eu comecei a perceber: os livros que tinha lido no Brasil, como a Introdução à Linguística Gerativa do Nicolas Ruwet, ou mesmo outros como Bally, de Saussure, como eu estava longe de compreender tudo aquilo... Era uma leitura com olhares e contextos tão distintos, intenções tão outras; era pedagógica, na verdade didática, era para eu dar aula de Didática Especial. Já era uma grande novidade na USP, o pessoal ficou muito interessado, mas isso não me tornava lingüista. Muito pelo contrário, me mostrava que eu não sabia absolutamente nada de lingüística, não sabia nada de fonologia, não sabia nada de sintaxes formais, não conhecia nada de semântica.

P – E então?
R - Você veja: embora tivesse uma reflexão positiva em relação à possibilidade de tomar a linguagem como um espaço de trabalho que, em última análise, me devolveria para as minhas aspirações sociais, eu me sentia absolutamente sem informação, e isso se reforçou posteriormente, como estava falando, com a observação da postura do Chomsky. Li Noam Chomsky sempre com muito cuidado e encontrei várias passagens em que, no fundo, a ideologia tem um papel motivador da atividade do cientista. É óbvio que a teoria lingüística não tem nada a ver... Particularmente uma passagem no debate de Royaumont, em que ele faz uma afirmação fortíssima contra a teoria contextual em que se supõe que o desenvolvimento da inteligência, da linguagem, etc., deriva de nossa inserção num certo ambiente social (que não é bem Piaget, mas de qualquer forma ele está falando em relação a Piaget); supor que o homem é uma tábula rasa sobre a qual se imprimem relações, operações, percepções que existem no ambiente contextual, é permitir uma visão da humanidade terrível, imaginando justamente que qualquer um pode preencher esses vazios manipulando o contexto social em que as pessoas vivem. É engraçado. Eu tinha um raciocínio similar, antes de ler essa passagem que me foi dada pelo Michel Lahud, exatamente de que a pretensão de alguns lingüistas, ao construir uma lingüística totalmente baseada na contextualização histórica e social, era anti-histórica e anti-social, e é sobretudo anti-histórica. É óbvio que a linguagem independe do contexto imediato, ela é uma construção coletiva de gerações e gerações que se sobrepõem numa atividade constante sobre ela. Com tudo isso, agora dá para fixar mais ou menos a resposta a essa questão que você me colocou. Depois fui chamado na Universidade para uma atividade administrativa e política que não queria mais fazer; já tinha optado por um outro canto de trabalho e aceitei assumir responsabilidades que não gostaria de assumir. O que me fez ser mau lingüista e mau político, mas minha idéia era de que faria melhor trabalho se eu me concentrasse numa atividade. Para mim era a pesquisa lingüística, e tentar construir, ou pelo menos assimilar a teoria da linguagem que tivesse eficácia social. Então, essa idéia de divisão do trabalho até hoje eu tenho, e por isso sou extremamente tolerante em relação às opções pessoais. Quando as pessoas se queixam que o fulano é alienado, eu sei que é alienado, mas se ele é um bom matemático ou um bom físico, se dedica a isso, ele deve estar contribuindo para que a gente tire do material, dos resultados de sua investigação, conseqüências importantes. Como nós pudemos fazer na Unicamp em relação, por exemplo, ao ensino. Quanta coisa se fez na Unicamp com base numa concepção nova da linguagem!

P – Às vezes temos a sensação de que não mudou tanto quanto gostaríamos.
R – Mas houve mudanças, a gente percebe. Dei aula durante longo tempo. Eu era uma voz absolutamente isolada em São Paulo. Você se lembra quando dirigi o primeiro Guia Curricular? A Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, o Jornal do Brasil entraram de pau em cima.

P – Hoje não aconteceria mais?
R – Não.

P – Hoje temos que agüentar os ‘pasquales’...
R – Bom, isso faz parte. Ainda permanece – eu acho que ainda predomina – uma visão elitista de linguagem, da norma, mas isso não altera o fato de que houve mudanças substantivas que vão levar a mudanças mais significativas. Eu espero, embora, como o Maurício Gnerre me chamou a atenção uma vez, a linguagem seja o último reduto da luta ideológica. Como estamos perdendo todas as lutas ideológicas, essa não é aquela que vamos ganhar tão fácil. Mas houve mudanças muito significativas. Eu vejo, por exemplo, como uma teoria, uma análise do discurso circunspecta, séria, pode ter papel importante em certas condições terapêuticas. Acho que sobre uma teoria da linguagem mais acabada, os filósofos poderiam rever algumas de suas noções. Estou me referindo, por exemplo, ao debate atual entre o Gianotti e o Roberto Schwartz; todos eles se baseiam numa noção de linguagem absolutamente superficial, de que é preciso ainda usar o termo de gramática de Wittgenstein para poder pensar a linguagem. Enfim, há muitas áreas em que a linguagem poderia autorizar reflexões e ações práticas.

P – Para você, operação sempre foi mais importante que relação.
R – Em certo sentido, sim. Digamos que a relação no modelo acaba representando operações concretas do sujeito. Hoje eu não brigaria tanto por isso, antigamente mais, porque antes eu era mais piagetiano do que hoje. Você se lembra do raciocínio “A linguagem é um trabalho”, num sentido técnico de trabalho. Ou, para ser mais suave, uma “atividade constitutiva” – termo mais gentil que achei em vez de usar o termo técnico “trabalho” no sentido que eu queria usar. De “trabalho” eu tinha medo, porque o via utilizado por aquele italiano... Que na verdade fala de trabalho quase no sentido físico de trabalho. Se eu quero pegar isso de maneira mais profunda, quando analisar a linguagem, vou tentar evitar analisar o objeto que está lá, já estruturado; vou querer ver que tipos de operações me permitiram construir o objeto. Um outro passo é onde eu vou encontrar uma noção que possa expressar essa idéia de que estou trabalhando com a forma da atividade, não com a forma do objeto. Me lembro do Michel, que pediu para eu tirar a palavra “estruturada” e passar para “função estruturante da linguagem”. Exatamente para que tivesse essa idéia de que “a forma é estruturante”, isto é, permite construir estruturas. Isso tinha a ver também com uma reflexão antiga minha do Piaget, mas que se reforçou, por uma maneira estranha, com uma pessoa que não gosta do Piaget, o Granger. Porque o Granger falava, também, que a experiência humana só se torna experiência efetiva na medida em que se realiza enquanto manifestação, ou enquanto representação. Daí o papel da estrutura. Era preciso, portanto, que houvesse uma linguagem que desse forma à experiência. Ele chamava isso de trabalho.

P – É por isso que o Granger, que era economista na origem, acabou escrevendo sobre estrutura lingüística?
R - Eu cheguei a discutir isso com o Granger, um pouquinho. A idéia básica é que uma atividade, para ele, se realiza enquanto experiência humana só na medida em que é representável, passa por um processo de representação. Daí a necessidade da linguagem enquanto trabalho que dá forma à experiência, às nossas experiências.

P – Ele via isso ao longo da história da humanidade?
R – Essa outra parte já é minha. É uma mistura estranha, porque não é ecletismo, porque eu estou construindo um sistema autônomo. Eu parto de uma reflexão que basicamente era piagetiana, que constitui esquemas de ação como formas. E os esquemas de ação são simples, na medida em que, por exemplo, no livro dele sobre psicologia e epistemologia da função, ele representa isso como funções [escalares] estruturantes que finalmente se tornam funções estruturadas, na medida em que se consolidam para certos objetivos. Então, esse tipo de raciocínio me levava a pensar que, se eu quisesse trabalhar sobre a linguagem, não poderia trabalhar diretamente, imediatamente, com uma análise de constituintes. Tanto que tirei os elementos lexicais da teoria e passei para os sêmions, que não são ainda objetos lingüísticos. É outra vez a idéia piagetiana: ao contrário de Chomsky, eu gostaria de dizer que existem processos gerais de pensamento e que a linguagem nada mais é que uma especificação de processos gerais quando operando sobre símbolos. Bom, aí sou muito mais piagetiano do que chomskiano, embora não piagetiano completamente, porque não estou falando de estágios, nada disso. Mas a idéia fundamental do Piaget, de que as atividades sobre símbolos são extensões da ação humana, estava por baixo, fortíssima. Que não é tanto no livro dele sobre linguagem e desenvolvimento da criança, é mais no livro Desenvolvimento do símbolo na criança, o texto que foi mais brilhante nessa área. E também no Desenvolvimento do real, que tem uma passagem belíssima sobre isso e me fazia até criticar quem dizia que Piaget não tinha preocupações com o social, porque na hora que entra a linguagem, sobre a qual ele não falou nada (esse é o problema), tem pedaços, passagens breves. Por exemplo, todo o livro Epistemologia da Função só tem uma passagem: “Isso provavelmente ocorre no discurso”. É o máximo que ele fala. Mas essa idéia de trabalhar com estruturas mínimas me fez passar por uma sintaxe mínima. Achei engraçado quando vi o minimalismo. Eu era minimalista radical antes do minimalismo, porque eu tinha só uma operação, que era uma operação de aplicação... Tem uma outra influência nessa história, rápida. Quando fiz a tese de mestrado, o lógico que me ajudou foi o Frey, que trabalhava em Aix en Provence, tinha trabalhado em Genebra e tinha trabalhos sobre o uso da lógica combinatória na análise dos comportamentos humanos. Quando ele descobriu o que eu queria, ficou entusiasmado, porque nunca trabalhava com linguagem. Então você vê que a relação é quase... Passo por passo, eu sou obrigado a pensar numa teoria que dê ênfase quase que absoluta aos processos que interferem na construção dessas estruturas, e ao mesmo tempo esses objetos formais têm de ser interpretados sintática e semanticamente. Uma forma diferente de dizer o que Montague, por exemplo, diz: que a cada regra sintática deve corresponder uma regra semântica, a famosa relação um a um entre regra sintática e regra semântica.

P – E para você...
R – A representação é uma forma que tem de ser interpretada na sintaxe das línguas naturais e interpretada na semântica das línguas naturais.

P – É ambígua?
R – Não é que eu tenha um sistema que copia o outro. Por isso, não gosto de falar em gramática gerativa no velho sentido de engendramento de sentenças, porque na verdade o modelo não visava engendrar sentenças, mas reproduzir processos, simular processos que me permitissem entender melhor como funciona a linguagem natural. Era engraçado: eu queria montar uma coisa, seria bom se eu pudesse ter montado o que nunca montei, mas que tinha de ser absolutamente consistente. Tinha de ter por baixo uma ideologia, por exemplo, que rejeitava as categorias como objetos fixos de pensamento. Isso não tem nada de científico. Eu queria apostar nisso, mas para isso, se não tenho categorias, tenho que construí-las. Então eu tenho de buscar – outro problema meu na tese – por qual processo posso construir essas categorias a partir de relações e de funções categoriais determinadas por essas relações. Ali, o que eu deveria ter feito e não fiz, seria de fato analisar a teoria das relações e funções do Chomsky, porque isso tinha um papel importante na medida em que fica trivial... Exatamente do jeito que ele definia, não tem nenhum interesse: você está estabelecendo relações de equivalência e as funções são obviamente orientadas nas línguas naturais. Mas o meu raciocínio era esse. Básico raciocínio, porque naquele tempo eu não sabia raciocinar sobre fatos lingüísticos, raciocinava muito sobre problemas inerentes ao próprio modelo. Outro autor que eu tinha de tratar era Hjelmslev, mas de uma outra maneira – porque eu ia fazendo separado e depois não tive tempo de fazer o que a gente chamaria de agrupamento desses autores num texto redondo, ficou um depois o outro. O grande problema que eu tinha com Hjelmslev, que é interessantíssimo, é que ele tinha radicalizado a teoria do valor de Saussure, e à medida que fez isso, tinha me dado a chave, a primeira chave que tive para resolver aquele problema: de como construo categorias a partir de relações de dependência e funções. Hjelmslev resolve isso razoavelmente bem, embora só por definições também, mas a teoria da soma dele era básica. Outro grupo de autores que eram fundamentais para mim, embora discordasse da maneira como eles construíram o modelo: os semanticistas gerativistas. Eu estava rejeitando a idéia de pegar a semântica como base, e derivar uma sintaxe por meio de transformações; os argumentos contrários nessa época já eram terríveis. Peter e Ritchie, em 1968, já tinha escrito um texto, ao qual não tive acesso senão muito mais tarde, num livro que veio da Itália. Eu pude ter acesso, em Aix en Provence, a textos do Lakoff, do Ross, sobre estrutura profunda. Não entendia muito bem esses textos, tive de ler com muito cuidado. De qualquer forma, a gente percebia que simplesmente mudar de ponta cabeça a árvore não funcionava, mas também eu não gostava da interpretativa. Então digo: Bom, há uma alternativa... Eu não conhecia Montatague. Talvez se tivesse lido Montague nessa ocasião, eu teria embarcado. Seria uma saída interessante.

P – Estamos aqui falando há um bom tempo e você não renegou nada daquilo que escreveu no texto de 1976.
R – Sim, reneguei o modelo formal, extremamente sofisticado e complicado. Não precisava ser daquele jeito. Acho que a parte das críticas que fiz, por exemplo, ao Noam Chomsky, era fruto de um ambiente: em Besançon ele era idealista; chego em Aix-en-Provence e ele era um - como é que se dizia? - farsante, um mau historiador da gramática, enfim... O Michel me mostrou que ele não era um mau historiador da gramática, só era um outro tipo de historiador. E o que eu fui vendo dele depois, me convenceu cada vez mais de que eu tinha razão quando admirava Noam Chomsky. Quer dizer, as idéias fundamentais da tese de 76, continuam. Você ligou o gravador e nós estamos aqui falando conversa fiada. Na verdade, o que disse a você e queria que gravasse, é esse sentimento que eu tenho: que essas hipóteses básicas, que justificavam fazer aquela tese, hoje estão mais fáceis de tornar visíveis.

 

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