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O
afásico tem linguagem A
professora Maria Irma Hadler Coudry, do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL),
docente responsável pela criação da área de Neurolingüístca
da Unicamp, em 1981, considera fundamental a participação de Carlos
Franchi nos estudos lingüísticos da afasia: as intervenções
de Franchi foram brilhantes. Maria Irma revela que as formulações
teóricas feitas por Franchi, a respeito da linguagem com atividade constitutiva,
de sua força criadora, de sua relação com sistemas de referência
e parâmetros ântropo-culturais partilhados por sujeitos falantes de
uma língua natural, motivaram o desenvolvimento de sua tese de doutorado
(Diário de Narciso: discurso e afasia, 1986), orientada por
ele, e publicada em livro em 1988. Esta
tese inaugura os estudos discursivos da afasia e procede a uma análise
crítica da avaliação tradicionalmente realizada em sujeitos
afásicos, assentada em tarefas essencialmente metalingüísticas
e em uma visão normativa de língua; também discute a inadequação
de se aplicarem, diretamente, certos modelos teóricos da Lingüística,
construídos com outros propósitos, na Afasiologia. Maria
Irma havia feito, em 1978, o mestrado com orientador do Instituto de Biologia
da Unicamp (Prof. Dr. Armando Freitas da Rocha), de forma a estudar a relação
entre a linguagem e o cérebro. Depois do mestrado, no qual Franchi participou
da banca, Maria Irma decidiu que chegara a hora de direcionar seus estudos para
as patologias de linguagem, investigando os aspectos lingüísticos
envolvidos nas afasias. E é justamente a partir daí que, segundo
ela, o papel de Franchi torna-se crucial. Ele estimulou que ela fizesse uma bolsa-sanduíche
em Bruxelas (na Universidade Livre, sob a orientação do Prof. Dr.
Yvan Lebrun), na área de Neurolingüística, com o objetivo de
estudar as diferentes formas de afasia, e aprender como se faz a avaliação
de linguagem no contexto patológico, para posteriormente desenvolver uma
abordagem lingüisticamente orientada.
O
texto A linguagem como atividade constitutiva, derivado da tese de
doutorado de Franchi, foi decisivo nesse contexto. Foi desenvolvida uma
Neurolingüística que despatologiza a própria patologia. Uma
Neurolingüística que considera a linguagem na patologia, não
só déficits e defeitos, esclarece Maria Irma. Nessa linha
de raciocínio, prossegue a professora, Franchi sempre ensinou que o sentido
não está determinado de antemão, mas condicionado a uma série
de fatores contextuais e lingüísticos, o que ocorre tanto com
sujeitos normais quanto com pessoas que têm a linguagem afetada em razão
de lesão córtico-cerebral. Franchi aceitou orientar minha
tese em afasia, em uma área que não era dele, funcionando como um
interlocutor privilegiado e fazendo com que eu explicitasse os pressupostos teórico-metodológicos
e a prática clínica derivada dessa posição. E, sem
ele, não seria possível que o trabalho fosse levado a cabo,
reconhece. Maria
Irma conta que avaliou e acompanhou longitudinalmente sujeitos afásicos
(no Serviço de Neurologia do Hospital Irmãos Penteado), por três
anos (de 1983 a 1986), em sessões semanais gravadas em áudio, para
analisar as dificuldades que apresentavam, o trabalho lingüístico
que continuavam realizando, bem como construir com eles processos de significação,
alternativos ou não, para lidar com as manifestações da afasia.
Tais processos têm lugar em práticas significativas com a linguagem,
aquelas que sujeitos não afásicos realizam no uso social da linguagem.
Nesse percurso apresentava e discutia com Franchi os dados dos afásicos:
as intervenções dele foram brilhantes, diz, exemplificando
com o caso de um sujeito que apresentava problemas de linguagem exatamente na
área de especialização de Franchi a sintaxe. O
que é interessante da orientação de Franchi é que
foi a partir de um problema na sintaxe que se desenvolveu uma abordagem discursiva
das afasias, revela.
Maria
Irma não se esquece de uma aula em que Franchi disse: nenhum enunciado
tem em si condições necessárias e suficientes para permitir
uma interpretação unívoca. Uma formulação
que, revela a professora, desencadeou a abordagem discursiva da afasia à
medida que o sentido não é previamente determinado, mas se dá
a partir de uma conjunção de fatores contextuais e lingüísticos:
quem fala, para quem, com que propósitos, em que circunstâncias,
etc. Na abordagem tradicional, são avaliados, a partir de tarefas
descontextualizadas, os erros, defeitos e problemas de linguagem decorrentes de
lesão cerebral. A pesquisa teórico-metodológica que fizemos
parte exatamente do contrário: o que de linguagem há a partir dessa
lesão, ou seja, existe linguagem na afasia, ao invés de existir
patologia de linguagem na afasia. Segundo
Maria Irma, essa abordagem, desenvolvida a partir da linguagem como processo e
atividade, e não como código e transmissão de informação,
conforme trecho da tese de Franchi, é inédita no país. E
no caso da patalogia, o que é fantástico nessa formulação,
é que a língua oferece possibilidades criativas para o sujeito dizer
de uma maneira e não de outra. Na prática clínica derivada
dessa posição teórica, diz a professora, se o sujeito
afásico com lesão cerebral não consegue dizer de uma maneira,
a língua dispõe de outras possibilidades e recursos a partir do
que ele pode reformular, refazer e reconstruir o que diz e o que interpreta. Maria
Irma se lembra da primeira vez em que levou para discutir com Franchi os dados
do sujeito afásico que tinha a sintaxe como problema lingüístico.
Ele olhou os dados e fez a seguinte observação: esse
sujeito tem linguagem, ele não perdeu as relações semânticas,
as relações com as categorias do mundo e com o outro: essa é
a sua tese. | |