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O grande desafio da FAO

 

Por: Walter Belik

Com o recente agravamento da crise no Chifre da África, o foco do noticiário sobre a fome passou a ser a Somália e a Etiópia. Calcula-se que 13 milhões de pessoas estejam em situação crítica nessa região, onde milhares buscam abrigo todos os dias nos campos de refugiados. Há dois meses o assunto eram as dificuldades do recém-criado Sudão do Sul com seus três milhões de famintos. Já nas próximas semanas, com a queda de Khadafi, a Líbia é que vai ocupar as manchetes, pois necessita alimentar meio milhão de pessoas afetadas pela guerra civil. As crises na África vão se sucedendo e girando em torno de um ponto comum, que é o que os técnicos denominam de “ameaça tripla”: problemas climáticos, alta dos preços dos alimentos e conflitos locais. Cada um desses elementos provém de causas diferentes e está afeto a instâncias diferentes de controle, mas parece evidente que todos poderiam ser evitados.

Em janeiro de 2012, quando assumir o posto de Diretor Geral da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO, em inglês), José Graziano da Silva vai começar a enfrentar alguns problemas já conhecidos: falta de recursos, pessoal desmotivado e o desafio de reconduzir os indicadores globais da fome para a trajetória estabelecida nas metas do milênio. A empreitada não vai ser fácil, pois muito pouco foi feito, em termos mundiais, nos últimos 20 anos, apesar dos discursos e das promessas dos líderes.

No seu mandato, Graziano vai enfrentar os mesmos dilemas do grande Josué de Castro, um dos criadores da FAO e o seu primeiro Presidente do Conselho, já no início dos anos 1950. Comparando-se os dois períodos, podemos afirmar que, de certo modo, os problemas continuam os mesmos, mas mudaram geograficamente de lugar. Ao final da Segunda Guerra, com a Europa e o Japão destroçados, o que preocupava as grandes potências era garantir a reconstrução do continente europeu e alavancar a produção e os suprimentos alimentares mundiais. Todo o esforço de pesquisa e o apoio da FAO permitiram que os países perdedores do conflito afastassem de vez o fantasma da subnutrição.

Nas décadas seguintes as cifras dos famintos declinaram de forma consistente, não somente pelo trabalho da FAO, mas também pela permanente redução nos preços dos produtos agrícolas resultante da maior produção e diminuição das barreiras comerciais. De tal forma que em meados dos anos 90 a fome se concentrava em basicamente duas regiões do globo: na região subsaariana da África e no cinturão norte da Península da Índia. Nessas regiões, totalmente dependentes de ajuda externa, a FAO tinha – e ainda tem – um papel maiúsculo: desenvolve programas de reordenamento fundiário, fornece técnicos agropecuários, sementes, vacinas para o gado, material para a pesca, certifica produtos, capacita produtores e promove a comercialização.

A FAO é uma das maiores agências do Sistema das Nações Unidas. São mais de 3.500 funcionários, além de consultores, espalhados pelos quatro cantos do mundo. Trata-se de uma burocracia cada vez mais pesada e pouco adaptada às necessidades dos países pobres. Recentemente, com a crise financeira internacional e a alta dos preços agrícolas, a situação se agravou. O número de famintos, ao invés de recuar, aumentou, superando a casa de 1 bilhão de indivíduos. Do ano passado para os dias de hoje essas projeções se reduziram um pouco, mas ainda 1 em cada 6 habitantes do globo passa fome, sendo que três quartas partes estão domiciliadas nas áreas rurais.

Os preços agrícolas que pressionam as importações dos países pobres até recuaram um pouco mas não há perspectivas de alteração de sinal para os próximos anos. Ademais, com a crise internacional, os países ricos diminuíram os seus compromissos com ajuda internacional – inclusive nos repasses em apoio à FAO. Já no ano de 2002, firmou-se o Consenso de Monterrey pelo qual os países ricos deveriam destinar 0,7% do seu PIB para ajuda humanitária. Mais recentemente, na Conferência de Alto Nível sobre a Segurança Alimentar Mundial de 2006, se propôs que os países ricos reduzissem os subsídios aos seus agricultores e abrissem o seu mercado aos gêneros produzidos nos países pobres. Nenhuma dessas propostas foi levada adiante.

Os fatos demonstram que os países pobres – principalmente aqueles das zonas convulsionadas estão deixando de investir na produção. Mais do que isso, conflitos políticos – como acontece agora com a Primavera Árabe, conflitos étnicos – como é o caso de Darfur, no Sudão do Sul, ou na Somália, e problemas causados pela mudança climática estão causando um enorme retrocesso na capacidade de auto-suprimento desses povos. Esses são cada vez mais dependentes das doações de alimentos que, por sinal, vão escasseando em função da redução dos estoques internacionais e do aquecimento da demanda por comida dos países emergentes. A África vive hoje uma situação emergencial, mas é necessário pensar no longo prazo, incentivando a produção local com o objetivo de desenvolver o mercado. Segundo a FAO, uma inversão de aproximadamente US$ 30 bilhões anuais nos países pobres seria suficiente para erradicar a fome no mundo em 10 anos.

Desde meados da década de 90, as Nações Unidas vêm realizando o seu trabalho humanitário através de doações de alimentos, que têm como origem a própria produção regional. Atualmente quase 80% dos alimentos doados às populações carentes originam-se de compras realizadas pelo PMA (Programa Mundial de Alimentos), por meio de recursos da ajuda internacional, junto aos próprios agricultores locais. Com isso, as Nações Unidas deixaram de ser um canal para o escoamento de excedentes agrícolas dos países ricos para se tornarem uma alavanca para o desenvolvimento da produção agrícola local. O problema é que falta produção local para atender a essa demanda por insuficiência de investimentos e tecnologias adaptadas às condições sociais e climáticas de cada região. Estatísticas demonstram que na África subsaariana, por exemplo, o governo gasta mais com armamentos que no apoio à agricultura. O resultado dessa miopia governamental é que o rendimento agrícola na África em geral é cinco vezes inferior ao que se obtém nas Américas e uma terça parte do observado na Ásia.

Mesmo assim está se operando uma rápida mudança na agricultura africana. Novas tecnologias e novos investidores (muitos deles chineses) estão atuando nos países com melhores recursos naturais. Entre 2004 e 2008, ano do início da crise, a produção agrícola no continente negro cresceu 4,9% ao ano, baseada na incorporação de novas terras e na organização dos produtores, o que é bastante respeitável. No momento em que se coloca em dúvida a possibilidade do mundo alimentar 9 bilhões de bocas em 2050, a África mostra um enorme potencial.

Estudos da FAO demonstram que mesmo países pobres e com dificuldades climáticas poderiam aumentar rapidamente a sua área de produção, sem contar com irrigação, apenas com o aproveitamento da água de chuva, variedades adaptadas e tecnologia adequada. Países africanos que estão em crise alimentar endêmica e que têm alto crescimento populacional como a Etiópia e a Somália poderiam incorporar, respectivamente, 31,1 milhões de ha e 2,8 milhões de ha de terras não cultivadas para a produção de alimentos até 2050. Essa produção transformaria a Etiópia em um dos maiores produtores de cereais da África, com uma oferta adicional de 71 milhões de toneladas dentro de 40 anos.

Resistir à alta volatilidade dos preços e aos choques agrícolas é outro desafio. A reação dos governos a estes fenômenos têm sido diversa e restrita à capacidade das suas finanças públicas. No caso dos países ricos, o padrão tem sido o de criar subsídios aos preços no nível do consumidor e aumentar o financiamento à produção. São opções políticas cada vez mais perigosas, em tempos de rigor na disciplina fiscal. Para os países pobres, por sua vez, não restam muitas opções senão o protecionismo, restrições às exportações de alimentos e cortes nas importações de fertilizantes e insumos. Como resultado dessa política, os exportadores deixam de se beneficiar com os preços internacionais favoráveis e há um desestímulo à produção.

Segundo recente estudo desenvolvido pela Cepal (Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina), uma das maiores lições aprendidas com a volatilidade dos preços agrícolas é a de que os países que têm maior capacidade de responder aos choques são aqueles que, ademais de estarem abertos ao comércio, contam com estratégias de gestão dos riscos. Esse tem sido o caso de poucos países.

Mas o combate à fome se dá também facilitando o acesso da população aos alimentos. Tendo em vista o funcionamento de programas bem sucedidos de combate à miséria, alguns países apresentaram bons resultados e conseguiram reduzir ou zerar as cifras de subnutrição em tempo recorde na última década. Destaque deve ser dado à China e ao Brasil. O primeiro conseguiu reduzir em 200 milhões as cifras de pessoas vulneráveis à fome através de um conjunto de reformas que hoje explicam a posição proeminente desse país no contexto econômico mundial. O outro destaque é o Brasil, que com muita criatividade, poucos recursos e em uma situação econômica adversa, conseguiu retirar 28 milhões de brasileiros da indigência em oito anos. O Brasil foi o caso de destaque no Anuário da FAO de 2006 e o inspirador de um programa semelhante dessa organização voltado para toda a América Latina e o Caribe.

Muitos programas implementados no Brasil estão sendo copiados na América Latina e na África. Recentemente, em seminário internacional, foram estabelecidas as bases para uma maior cooperação com a Índia também. As inovações em termos de Política Social do Brasil estão sendo estudadas em todo o mundo, mas essas ações levam tempo. Esse é o grande desafio que a FAO tem para os próximos anos. Walter Belik é professor titular do Instituto de Economia (IE) e coordenador do Nepa (Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação da Unicamp)




 
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