Era para ser uma ação cirúrgica. O script saiu errado?
CLAYTON LEVY
Era para ser uma operação fulminante. A coalizão Estados Unidos e Inglaterra, formada por exércitos bem-alimentados e providos com o que há de melhor em tecnologia de guerra, invadiria o Iraque e deporia o ditador Saddan Hussein, colocando fim a um regime baseado no terrorismo. Mas as coisas não saíram conforme o script. Primeiro foi a recepção dos iraquianos do sul, bem menos dócil do que o esperado. Americanos e britânicos, que imaginavam ser recebidos como libertadores, enfrentaram resistência e abriram caminho à bala. Depois, foi a tentativa de "decapitar" o governo, lançando mísseis sobre os palácios onde se acreditava estarem os comandantes iraquianos. Não deu certo. Saddan apareceu logo depois, na TV, conclamando o povo a lutar. Em seguida, veio a operação "choque e pavor", que através de um pesado bombardeio pretendia intimidar as tropas iraquianas e acelerar sua rendição. Também falhou.
Além de não botar medo nos soldados iraquianos, a ação revoltou o povo, que saiu às ruas de arma em punho e pronto para a luta. Irritados com a propaganda de guerra do inimigo, os comandantes da coalizão ainda despejaram uma bomba sobre o prédio da TV estatal iraquiana.Não adiantou. A emissora interrompeu a momentaneamente a programação, mas voltou ao ar poucas horas depois, entoando versos do Alcorão. Isso tudo sem falar nas tempestades de areia, "fogo amigo" e acidentes com helicópteros, que impuseram às tropas da coalizão um número de baixas bem maior que o esperado.
Claro que do lado iraquiano a situação também é grave. Bagdá, tida como o berço da civilização, está destruída. Falta água e comida nas cidades e vilarejos por onde a coalizão passou. Os hospitais estão abarrotados de vítimas civis. Mas em meio à guerra de informações que a mídia vem travando, com indícios claros de manipulação dos dois lados, é impossível saber, por enquanto, o tamanho exato da tragédia. Seja qual for o desfecho dessa guerra, os seus desdobramentos políticos deverão prolongar-se por muito tempo ainda.
Mesmo com um cessar fogo imediato, a opinião pública continuará buscando respostas para inúmeras perguntas. Esta guerra tem legitimidade? Os motivos alegados pelo presidente dos EUA, George W. Bush, e pelo primeiro ministro britânico, Tony Blair, justificam a invasão? Qual a importância do petróleo nessa briga? Como fica a ONU depois que o seu Conselho de Segurança foi atropelado pela coalizão? E a União Européia, rachada, como se comportará daqui para frente? Para responder a estas e outras perguntas, o Jornal da Unicamp ouviu o coronel da reserva e pesquisador Geraldo Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp (NEE).
Jornal da Unicamp - Essa guerra tem legitimidade, uma vez que os Estados Unidos e Inglaterra não conseguiram apoio da ONU para atacar o Iraque?
Cavagnari - Não. É um ato ilícito e de agressão - ou seja, uma guerra ilegal.
JU - Os argumentos usados pelo presidente George W. Bush, de que é preciso desarmar Saddam Hussein a qualquer custo, por uma questão de "autodefesa antecipada", justificam a invasão do Iraque?
Cavagnari - Não. Na ausência de uma autorização do Conselho de Segurança, nenhum Estado pode recorrer à força contra um outro Estado, salvo em caso de legítima defesa ou em resposta a um ataque armado, o que não é o caso atual.
JU - Até que ponto o interesse pelos campos petrolíferos estariam pesando na decisão de Bush em invadir o Iraque?
Cavagnari - O petróleo é o "calcanhar de Aquiles" da economia americana. Os Estados Unidos importam 60% do que consomem e a maior parte vem do Golfo Pérsico, onde estão concentrados 65% das reservas mundiais. Para os EUA, a garantia do suprimento ininterrupto - e, se possível, a preços baixos - repousa na estabilidade da região, na existência de governos confiáveis nos países do Golfo. Atualmente, confiáveis são os do Kuwait, Catar, Emirados Árabes, Omã e Barein. A monarquia saudita é confiável para os americanos, mas o fundamentalismo religioso concorre para a desestabilização da Arábia Saudita. Os complicadores são Saddam Hussein e os aiatolás do Irã. Determinados a restabelecer a estabilidade na região do Golfo Pérsico, os EUA decidiram remover do poder, em primeiro lugar, Saddam Hussein.
JU - O presidente Bush diz que pretende usar a invasão do país para instalar ali um regime democrático que sirva de inspiração para outras nações da região. O senhor acha que mudar o regime político no Iraque será tão fácil quanto ganhar a guerra? Por quê?
Cavagnari - Não. Não há uma tradição democrática no Iraque. Desde sua independência, em 1932, jamais houve, em algum momento de sua história, uma experiência democrática no país. Washington poderá tentar, mas não será bem-sucedido - não alcançará resultados imediatos, de curto prazo - nem de médio prazo.
JU - Que conseqüências a guerra pode gerar no quadro político do Oriente Médio, considerando os conflitos já existentes na região, principalmente entre palestinos e israelenses?
Cavagnari - Haverá o recrudescimento do terrorismo islâmico contra alvos americanos e israelenses. Em alguns países, poderão aumentar as possibilidades de desestabilização dos respectivos governos - por exemplo, no Egito, na Jordânia e na Arábia Saudita. As iniciativas de paz para solução do conflito israelense-palestino estarão comprometidas.
JU - O fato de países como França e Alemanha terem se posicionado contra a guerra pode provocar um racha na União Européia, já que Inglaterra, Espanha e Portugal se posicionaram favoráveis ao conflito? Nesse caso, quais os desdobramentos políticos na Europa?
Cavagnari - Não. Ao contrário. França e Alemanha se empenharão no fortalecimento da União Européia. Fortalecimento que passa necessariamente pelo desenvolvimento de sua capacidade estratégico-militar, tendo em vista dotá-la de uma identidade político-estratégica - que hoje ela não possui.
JU - Até que ponto a ruptura do governo norte-americano com a ONU pode mexer com o cenário político internacional?
Cavagnari - Não deverá haver uma ruptura do governo norte-americano com a ONU. Ela sem os Estados Unidos será irrelevante. Seu desaparecimento, por sua vez, não é desejo dos EUA. Apesar de, em algum momento, virem a agir com liberdade absoluta na defesa de seus interesses vitais, eles precisam de um contexto de decisão multilateral, como a ONU, que é um fórum privilegiado para o debate político.
JU - O papel da ONU será rediscutido, já que seu Conselho de |Segurança não foi respeitado pelos EUA?
Cavagnari - Sim. Aliás, é do interesse de todos os seus membros.
JU - E como ficam as relações do Brasil com os EUA, já que o presidente Lula declarou oposição à guerra?
Cavagnari - Continuarão normais.