Desanka ainda busca
resposta para a crueldade
CLAYTON LEVY
A médica Desanka Dragosavac sabe muito bem o que é uma guerra. Em 1991, na Iugoslávia, ela viveu o inferno da luta entre servos e croatas, num dos conflitos mais cruentos da história. Trabalhando na Academia Militar Médica, um dos maiores hospitais da capital Belgrado, para onde eram levadas as vítimas, Desanka diz que chorava dia e noite. "Fiquei chocada com a brutalidade humana. Como era possível chegar àquele ponto?". Doze anos depois ela diz que ainda não encontrou a resposta. E não consegue conter as lágrimas ao recordar os dias de fogo cruzado. "Não há tristeza maior que a guerra. Só quem passa por uma situação como essa sabe o que é isso de verdade".
Desanka resistiu por quatro meses. Depois, desiludida e chocada, decidiu deixar o país para sempre. Fugiu para o Brasil no dia 11 de outubro de 1991, quando o conflito armado estava no auge. Hoje, trabalhando no Hospital das Clínicas da Unicamp, diz ter conseguido refazer a vida. Mesmo assim, as lembranças são difíceis de apagar. E os recentes bombardeios da coalizão anglo-americana sobre a capital do Iraque, Bagdá, transmitidas ao vivo pela TV, trouxeram à tona cenas que a médica daria tudo para varrer da memória. "Não importa o lugar, a época, os personagens e os motivos. A guerra é sempre uma tragédia".
Falar daqueles dias é penoso para Desanka. "Trabalhávamos 24 horas por dia, atendendo civis e militares", conta. Como anestesista, ela era uma das primeiras a receber os pacientes que chegavam à unidade, quase sempre em estado crítico. "Foi uma agonia". A cada cena pinçada na memória, os olhos da médica, grandes e claros, ficam marejados. "Teve uma criança de uns cinco anos que chegou ao hospital sem uma das pernas. Havia pisado numa mina. Eu chorava tanto ao atendê-la que as lágrimas me impediam até de enxergar os remédios".
Desanka fica em silêncio por alguns instantes, como se estivesse revolvendo lembranças enterradas na própria alma, e volta com mais uma cena trágica. "Outro caso que me marcou muito foi o de um rapaz atingido por uma bomba. Ele perdeu os braços e ficou com a face desfigurada, praticamente sem o rosto. Colocamos um tubo num buraco que achávamos que era a traquéia porque não havia mais a boca. Eu fiz a anestesia. Ele sobreviveu, não sei como".
Parentes dos dois lados da batalha
A divisão entre sérvios e croatas era inconcebível para Desanka. "Para mim foi muito difícil aceitar a guerra porque tinha parentes dos dois lados. De um dia para outro você tinha de lutar contra seu irmão de sangue só porque ele morava do outro lado da fronteira e porque os políticos diziam que agora eram são seus inimigos. Meu marido poderia ter sido convocado para ir matar, na Croácia, nossos parentes que moravam lá. Crianças trocavam os brinquedos por metralhadoras porque tinham de matar outras crianças". Inconformada, a médica decidiu abandonar o país em busca de vida nova. Mas não foi uma decisão fácil.
"Eu não podia sair do país porque meu passaporte havia sido recolhido no hospital. Mas houve um congresso na Alemanha e consegui o passaporte para essa viagem. Na volta, não o devolvi porque já havia decidido mudar de país", conta. O plano consistia em ir na frente, sozinha, deixando na Iugoslávia o marido e os dois filhos, uma menina de quinze anos e um menino de cinco. Depois de estabelecida, a família seguiria ao seu encontro, deixando a guerra para trás. A essa altura, Desanka já havia escolhido o Brasil como novo destino. "Procurava um lugar de clima quente e onde não houvesse guerra".
A decisão, segundo ela, foi consciente. "Uma brasileira que morava na Iugoslávia e era apaixonada pelo Brasil sempre me falava do seu povo", relembra. "Na época, a maior parte das pessoas que procurava refúgio em outro lugar seguia para países mais desenvolvidos, como Estados Unidos e Canadá. ´Mas escolhi o Brasil e não me arrependo", garante. Desanka chegou ao aeroporto de Cumbica, em São Paulo, com pouco dinheiro e sem falar uma palavra em português. A única pessoa que conhecia era um estudante da USP, filho de uma brasileira com um iugoslavo, residentes em Campinas. Mesmo assim, estava determinada e seguiu em frente.
"Quando cheguei em São Paulo, fui logo procurá-lo", conta. Não demorou muito para chegar a Campinas, onde passou a morar numa república no distrito de Barão Geraldo com duas pós-graduandas da Unicamp. "Nos primeiros oito meses me virei praticamente sem dinheiro. Minha principal preocupação era dominar logo o idioma para procurar trabalho. Comprei um gravador, fitas e três livros de língua portuguesa e praticava todos os dias". Depois de apenas três semanas, Desanka criou coragem e postou-se na portaria do Hospital de Clínicas em busca de emprego. Foi acolhida pelo professor Gilberto de Nucci, do Departamento de Farmacologia da Faculdade de Ciências Médicas, e pelo cirurgião cardiovascular Eduardo Sancho, da disciplina de Cirurgia Cardíaca. Eram as pessoas certas no caminho da refugiada.
"Eles ouviram minha história e pediram o meu currículo. Na época, já havia concluído o doutorado e tinha vários trabalhos publicados na área de anestesiologia e medicina intensiva", conta. O histórico profissional da médica não deixava dúvidas quanto à sua competência, mas não era suficiente para a contratação. Com a permissão de De Nucci, porém, ela passa a trabalhar como médica voluntária. Dias depois, o governo de São Paulo anunciou o Programa de Apoio à Participação de Especialistas Estrangeiros que permitia a contratação de profissionais de outras nacionalidade mediante concurso. Era a chance que Desanka esperava. "Prestei o concurso e fui selecionada. Logo depois, estava trabalhando no departamento de cirurgia do HC, como médica contratada.
As vilas que foram varridas do mapa
Longe da guerra e com a vida estabilizada, Dezanka deu o sinal verde para o marido e os filhos se juntarem a ela. Depois de oito meses, o governo iugoslavo abriu as fronteiras e eles puderam sair. Ela conta que o marido pegou três malas, colocou-as na sala do apartamento e disse a cada um dos filhos que pegassem o que quisessem, desde que não ultrapassasse vinte quilos cada um. "Meu filho mais novo fez questão de trazer um skate. Meu marido sabia que era desnecessário, mas não teve coragem de contrariá-lo. Ao desembarcarem no Brasil, outra surpresa. Ao abrir a mala do marido, encontrou, por cima de tudo, o seu vestido de casamento e, sob o vestido, fotos e filmes da família. "Perguntei se estava louco e ele respondeu que não havia conseguido deixar tudo aquilo para trás porque representava muito para ele".
Hoje, Desanka, o marido e os filhos estão bem. A saga da família teve um final feliz, num país distante, onde não há frio nem guerras. Mas as cicatrizes do passado dificilmente serão apagadas. "Muita coisa mudou dentro de mim. Percebi que a paz é muito frágil", diz a médica. Quatro anos depois de refugiar-se no Brasil, ela voltou à Iugoslávia, na fronteira entre a Sérvia e a Croácia, para visitar a mãe. "Levei um susto", conta. "No lugar onde antes existiam vilas inteiras, as casas haviam desaparecido. Foram varridas do mapa pelos bombardeios. Sobraram só os porões, onde muitas famílias ainda continuavam vivendo. Mais uma vez, os olhos de Desanka ficam molhados. E, com a voz embargada, murmura: "Acho que a civilização ainda vai pagar caro por estes desatinos". Em 10 de outubro do ano passado Desanka naturalizou-se brasileira