São Paulo, quarta-feira, 11h10. Manhã cinza e fria. Bairro Pompéia, sexto andar, apartamento 61. Sorriso caloroso e aberto. Almeida Prado já está na porta. Aos 63 anos, parece mais solto e jovial. Tênis pretos, calça jeans, camisa amarela e blusa de lã cinza. É um homem robusto, refinado e sozinho no seu apartamento de classe média. Logo na entrada, o piano, um Fritz Dobbert. “Para trabalhar em casa, é o suficiente”. Sobre o instrumento, na parte de cima, uma imagem de São Francisco de Assis e outra de Nossa Senhora. Entre os santos, as fotos das filhas e das netas. Na mesa ao lado, papéis, partituras, livros e canetas, muitas canetas. “Não deixo a empregada arrumar essa bagunça. Se arrumar não encontro mais nada”. Sala modesta, aconchegante. Sofá, poltronas, abajur, televisão. “Fiquem à vontade”. A luz entra pela janela da sacada.
Em janeiro de 2007, Almeida Prado deixará o apartamento na Pompéia para viajar aos Estados Unidos. No Carnegie Hall, a sala de concertos mais importante de Nova York, ele assistirá à estréia mundial de sua peça mais recente, Hiléia, Um Mural da Amazônia. O espetáculo, intitulado Amazon for Ever, marcará o lançamento de uma nova campanha internacional pela preservação da Amazônia. A renda do concerto irá para instituições ligadas a programas ecológicos na região.
A execução da peça estará a cargo da Orquestra Bachiana Filarmônica de São Paulo, sob a regência do maestro brasileiro João Carlos Martins, que fez carreira como pianista tocando para platéias de todo o mundo. Um dos parceiros de Almeida Prado e João Carlos no projeto é o artista gráfico Milton Glaser, criador da marca de Nova York “I Love New York”. Para esse trabalho, Glaser criou como símbolo uma oncinha, com a qual fez uma máscara representando a Amazônia.
Aposentado das atividades acadêmicas desde 2000, o compositor acredita estar no seu melhor momento artístico. “Esse concerto é a coroação do trabalho de uma vida toda”. Mas a apresentação em Nova York é só o ponto de partida para a conversa de quase duas horas, na qual Almeida Prado falará de tudo e de todos. Puxará o fio da memória, reviverá episódios, fará desfilar pela sala personagens que marcaram sua vida. O maestro Camargo Guarnieri, seu primeiro guru; os mestres Olivier Messien e Nadia Boulanger, que lapidaram sua formação musical na França; Zeferino Vaz, que o trouxe para a vida acadêmica; Hilda Hilst, a amiga constante e desbocada. Mozart, Beethoven, Villa-Lobos. Chitãozinho & Xororó, Bruno & Marrone, Leonardo. Os rumos da música erudita, o estranho fascínio da música popular. Nada escapará a este ex-diretor e professor do Instituto de Artes da Unicamp, que se descobriu compositor aos 8 anos, criou cerca de 500 obras, e hoje, no apartamento do bairro Pompéia, vive o seu momento de síntese. Leia os principais trechos da entrevista.
‘Estou vivendo a época da síntese’
Jornal da Unicamp – Como surgiu idéia de compor a peça o Mural da Amazônia?
Almeida Prado – Foi idéia do João Carlos (Martins). Ele me encomendou uma cantata para baixo sobre a salvação da Amazônia. A iniciativa partiu dele e de outros amigos americanos. Como ele tinha um concerto marcado para janeiro, no Carnegie Hall, ele pensou: “por que não compor uma obra nova sobre a Amazônia?”. E pensou em mim, que sou muito amigo dele. Eu aceitei. Utilizei um poema do irmão dele, o jurista Ives Gandra Martins, que também é um grande poeta. Ele fez a poesia expressamente para a minha obra. Me inspirei na poesia para fazer esse mural da Amazônia. Chama-se Hiléia, Um Mural da Amazônia.
JU – Como é essa peça?
Prado – É uma obra de vinte e cinco minutos, uma imensa obra contemporânea. Ela tem um prólogo com os gritos estridentes das arapongas. Eu uso esse pássaro como forma de chamar a atenção do público para o espetáculo. De cara, entra o baixo, dizendo que o mural da Amazônia é uma coisa muito importante. Depois prossegue com a sinfonia.
JU – Sua obra é marcadamente atonal. A Hiléia é atonal, tonal ou politonal?
Prado – É a síntese de toda a minha carreira de compositor. Tem um pouco de nacionalismo, atonalismo, vanguarda, tonalismo e misticismo. Aos 63 anos já estou na época da síntese.
JU – O que esse processo de síntese revelou até agora?
Prado – Que a minha música é muito mais aceita hoje em dia, é mais comunicativa.
JU – Quanto tempo levou para compor a peça?
Prado – Três meses. Para mim, um tempo enorme. Antes da diabetes meus olhos eram perfeitos. Agora fiquei com dificuldades na retina e preciso de uma lupa para ler. Para compor a Hiléia tive de aumentar o papel enormemente, colar duas folhas, foi um processo extremamente difícil. Antes eu conseguia compor uma sinfonia em vinte dias, era o meu timing, desde criança sou rápido. Mas um rápido com consciência, como Mozart também fazia rápido. Beethoven, não. Era mais lento. Brahms mais lento ainda. Villa-Lobos, rapidérrimo. Por causa dos meus olhos, tive de me adaptar a uma liturgia da lentidão. É uma limitação, mas assumi que tenho de viver com ela.
JU – O que um convite como esse representa a essa altura da sua carreira?
Prado – Fiquei muito contente. Acho que é a coroação de anos de atividade como compositor e professor. Fiquei na Unicamp de 1975 a 2000. Tive vários alunos que hoje em dia são famosos no mundo todo. Depois fui diretor do IA (Instituto de Artes). Quando chegou o momento em que percebi que já havia feito bastante coisa, resolvi me aposentar. Eu havia ficado diabético e resolvi me aposentar para ter o meu tempo mais livre para aquilo que eu tinha vontade de fazer sem a obrigação de dar aula.
JU – A proposta do concerto no Carnegie Hall tem um viés político. O senhor já se engajou alguma vez em algum projeto ecológico?
Prado – Nunca tive atividade política explícita. Faço política implicitamente na minha música. Não é do meu temperamento subir num palanque para gritar. Tem gente que é engajado dessa maneira. Eu não sou.
JU – O senhor se aposentou da Unicamp há pouco tempo. Como está sendo o período pós-Unicamp?
Prado – Depois que aposentei, a idéia era ficar em Campinas. Logo em seguida recebi um convite do Jorge Coli [historiador da arte e professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp], que na época havia sido nomeado secretário da Cultura do Toninho [Antonio da Costa Santos, ex-prefeito de Campinas, assassinado em 2001]. Mas, por razões políticas, não deu certo. Eu não era PT. Então o Jorge me aconselhou a ir para o Rio de Janeiro. Fui morar num apart-hotel em Copacabana. Meu objetivo era compor. Só que aquela cidade é muito quente e depois percebi que não iria florescer no Rio. Os cursos que existem em São Paulo não existem no Rio. Aula particular é muito difícil. Aí, pensei: em São Paulo estão as minhas duas filhas, minhas irmãs. Por que não? E acabei vindo morar em São Paulo. Me adaptei muito bem. Estou fazendo um programa de grande sucesso na FM Cultura, o Caleidoscópio. Dou cursos na Casa do Saber, tenho muitos alunos. Aulas particulares.
JU – Agora que está afastado da academia, que avaliação o senhor faz das escolas de música no Brasil?
Prado – Estão melhores do que antes. Há escolas particulares em São Paulo de excelente nível. Não são mais aqueles conservatórios de bairro que ensinavam tudo errado. Os professores que ensinam hoje saíram das grandes universidades – USP, Unicamp, Unesp. Antes havia só a Escola Nacional de Música, no Rio. A qualidade do ensino musical está mil por cento melhor em comparação ao meu tempo de criança. Eu não tinha opção. Eu só tinha o Camargo Guarnieri [Mozart Camargo Guarnieri, fundador e maestro da Orquestra Sinfônica da USP], que foi um gênio, um grande professor, mas eu não podia estudar com outro porque só havia ele.
JU – O senhor tem obras editadas na Europa e agora terá essa nova sinfonia apresentada nos Estados Unidos. Acha que está no seu melhor momento em termos artísticos?
Prado – O melhor momento é sempre o dia de hoje. Eu não sei o que virá amanhã. Primeiro, tenho de dizer que se não fosse a Unicamp eu estaria debaixo da ponte ou tocando num bar de quinta categoria. Essa é a realidade do músico brasileiro. Fui chamado para trabalhar na Unicamp em 75, quando eu estava em Cubatão dirigindo um conservatório municipal. O Zeferino [Zeferino Vaz, fundador da Universidade] me chamou para almoçar e disse: “Meu filho, a Unicamp precisa de pessoas como você”. Disse que não estava interessado, mas ele retrucou: “Quanto você ganha em Cubatão?”. Falei o valor e ele me ofereceu dez vezes mais. Aí eu disse.”Então o senhor liga para o prefeito e manda ele para o inferno, porque não volto lá nem para pegar minhas coisas”. Fui para a Unicamp não só por fazer parte de um desafio nascente, mas também por causa da grana. Como um ser humano normal, fiquei fascinado com a possibilidade de iniciar um trabalho como eu queria, numa universidade novíssima e perto de São Paulo. Lá eu produzi noventa por cento da minha obra.
JU – Em sua opinião, quais os rumos da música erudita no Brasil?
Prado – Olha, não são muito diferentes daqueles que eu segui. Um compositor tem de estar numa universidade. Porque no Brasil ele não vai sobreviver dos direitos autorais da sua obra. Nem se fosse Stravinsk. Mas numa universidade você tem a convivência com colegas, o estímulo, jovens que vão continuar o seu processo e você se torna útil na sociedade, útil para você próprio e tem um lugar seguro para você também ter tempo de compor. Agora, é evidente que um pianista brilhante como Nelson Freire, que mora um pouco no Rio, um pouco em Paris, um pouco em Amsterdã, e que ganha rios de dinheiro com a sua carreira, não precisa estar numa universidade.
“Um compositor tem de estar numa universidade.
No Brasil,
ele não vai
sobreviver de
direitos autorais”
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JU – A globalização facilitou ou dificultou a inserção do músico erudito brasileiro no mercado mundial?
Prado – Está mais difícil. A minha editora na Alemanha, que me editou de 1973 até recentemente, faliu. Simplesmente você passa um e-mail e ele volta. Toda minha obra está lá e não sei como vou recuperar. E o que dizem as editoras? Dizem que a pirataria é o grande inimigo. O xerox e a Internet. Hoje você passa partituras pela Internet e imprime em casa. Como as editoras vão se sustentar se as partituras são xerocadas? E como eu, como compositor, não iria xerocar músicas minhas que alunos pobres precisam para desenvolver o seu trabalho? Vou mandar esses alunos buscar as partituras na Alemanha e pagar em euros? Eu jamais faria isso.
JU – Em termos estéticos, estamos numa fase melhor, pior ou chegou-se ao esgotamento?
Prado – Os jovens compositores de hoje têm uma linguagem múltipla. Ninguém é mais totalmente nacionalista, vanguardista ou eletroacústica. É uma mistura. É uma característica do mundo nesse momento. Hoje você senta diante da televisão bebendo coca-cola, assiste à morte do papa ao vivo e, com um simples apertar de botão, acompanha um desenho animado ou uma partida de futebol. Isso é multiplicidade. É o caleidoscópio cotidiano, uma mistura. A música incorporou isso. Mas há compositores como Amaral Vieira, que tem uma linha mais tonal, nitidamente contra o modernismo, mas ele é um só. A tendência dos jovens compositores é incorporar a estética global.
JU – Falando em jovens compositores, o senhor acha que as safras estão se renovando com qualidade?
Prado – É difícil dizer. Na Unicamp, meu primeiro aluno, e o melhor de todos, foi o Marco Padilha. Depois tive Adriana Lopes, que atualmente é uma grande pianista; Flávio Florence, que hoje é maestro da Sinfônica de Santo André, o maior sucesso. Vários compositores de sucesso em suas carreiras foram meus alunos. A Unicamp deu frutos.
JU – É possível medir esta qualidade nos festivais, como o de Campos de Jordão, por exemplo?
Prado – O festival de Campos de Jordão está excelente com o Roberto Minczuck [maestro e diretor artístico do festival]. Mas o festival é um momento em que você vai conviver com compositores estrelas. Você não vai aprender música. Serão alguns flashes para você voltar mais enriquecido ao seu cotidiano. Aprender é no dia-a-dia. Mas nesses eventos você se expõe, toca a sua música, ouve pessoas que tocam melhor que você, conhece outros colegas. Há um confronto muito saudável para que você volte melhor ao seu cotidiano.
JU – O Brasil é um país com enorme riqueza musical. Na música erudita, isso transpareceu principalmente na obra de Villa-Lobos. O senhor acha que, atualmente, está havendo certo distanciamento em relação às raízes?
Prado – Villa-Lobos é um caso à parte. Trata-se de um gênio. Mais do que nunca, ele é cultuado hoje no mundo inteiro. Nenhum outro compositor brasileiro chegou a isso. Mas nacionalismo como estética já não funciona mais. Pelo menos nesse momento. Pode ser que um jovem compositor venha a reviver isso e dê certo. Mas a música tornou-se muito universal. É o globalismo. Na música popular está existindo uma busca de raízes que você sente em alguns compositores, como uma necessidade de voltar ao baião, ao forró, sanfona, às violas caipiras. O Ivan Vilela, ex-aluno meu na Unicamp, era um aluno especial. Ele tem uma ópera caipira. É uma beleza. É corajoso da parte dele. Hoje em dia ele é o grand seigneur deste movimento.
JU – Essa volta às raízes na música popular, e em menor escala na erudita, é um movimento de busca por novas linguagens ou é um sinal de esgotamento?
Prado – É o cansaço do pasteurizado. Hoje há cantores e grupos internacionais que vão pesquisar a gaita de fole escocesa. Isso não existia. Mas são ilhas isoladas, porque no resto do mundo continua a música comercial como uma espécie de tirania. Por exemplo, a novela das oito, Páginas da Vida. Muito bonita a novela. Mas por que tem de ser sempre Caetano cantando bossa nova, ou Chico ou Tom Jobim? Não poderiam ser outros compositores nacionais. Não podia ser o Chico César? O tema de abertura da novela é de 1960. Tenha dó. Daqui a pouco estaremos comemorando o centenário de morte do Tom e ainda teremos o Tom no tema de abertura das novelas. O Brasil é só Villa-Lobos e Tom? E os outros? Será que é uma máfia? Isso está errado.
JU – Até que ponto a indústria cultural interfere na música erudita do Brasil?
Prado – As máfias não deixam a música erudita entrar no mercado. É sempre o mesmo clichê. E o clichê vai empobrecendo. Não há renovação. Além de não haver renovação, o que aparece é descartável. Onde é que está o funk? Não toca mais, você não ouve. Quando morei no Rio, eu ouvia funk o dia inteiro. Agora não tem mais.
JU – Qual o compositor que mais influenciou sua obra?
Prado – Villa-Lobos e Beethoven. Camargo Guarnieri foi meu professor e você sempre é influenciado pelo mestre. Mas eu sempre tive a minha linguagem. Sempre fui eu mesmo. Isso você não fabrica. Ou você é ou você não é compositor. Desde criança só faço isso. Não sei como não fazer isso. Aos oito anos sentei no piano e disse: “agora vou fazer uma música”. E fiz. É a peça Adeus. Uma peça simples, melodiosa, tonal. Não sou espírita, mas foi como se tivesse “recebido” a música. Não tinha nenhum conhecimento musical, mas o melieu me favoreceu. Minha irmã tocava piano muito bem e meu pai gostava de ópera.
JU – Quando tomou a decisão de seguir a carreira artística?
Prado – Aos 16 anos resolvi deixar o curso de contabilidade em Santos, onde morávamos. Não era o que eu queria. Eu só queria música. Então meu pai me disse que eu fosse trabalhar na música, porque ele não iria me dar mesada. Que eu fosse dar aulas. Ele me pagaria o conservatório para obter o diploma. Foi sábio da parte dele. Se ele me desse mesada eu iria passear na praia o dia inteiro. Naquela época papai era muito rico, ele era dono de uma firma de café. Mas ele não queria um playboizinho em casa. Tive de trabalhar.
JU – E a ida para a França?
Prado – Desembarquei em Paris em setembro de 1969. Levava comigo uma carta do Guarnieri me recomendando aos mestres Olivier Messien e Nadia Boulanger. Depois de ouvirem uma fita cassete, eles olharam para mim e disseram: “Você é compositor”.
JU – Como foi a convivência com Nadia Boulanger?
Prado – Muito difícil. Ela era horrivelmente exigente. Ela me maltratava, me humilhava muito diante dos outros alunos. Fazia isso porque me achava genial. Ela disse isso numa carta à minha mãe. E por isso ela me punia. Não achava isso certo. Era uma mentalidade do século 17. Uma vez, eu havia acabado de compor duas obras dificílimas, estava cansado, e ela me colocou no piano para ler uma partitura de Beethoven. Eu errei. Então ela me disse: “você está há três anos comigo e ainda não sabe nada?”. Naquele dia decidi que não voltaria mais. Mandei uma carta a ela dizendo que voltaria ao Brasil. Ela me pediu para ficar mais um ano e me deu uma bolsa. Ao todo, fiquei por lá quatro anos. Isso teve um impacto positivo porque senti o que eu queria e quem eu era. Eu era o Almeida Prado e não o aluno da Nadia Boulanger.
JU – Qual a principal virtude que o senhor destacaria num compositor?
Prado – Lucidez e modéstia.
JU – E o principal defeito?
Prado – Vaidade. A vaidade é inevitável, mas você tem de ficar muito vigilante e cortar logo no começo. Ter consciência do próprio talento não é vaidade. Vaidade é você ficar sentado em coisas que você já fez e não querer prosseguir. Achar que não tem ninguém melhor que você. Sempre tem. O grande problema de um professor, por exemplo, é aparecer um aluno melhor que ele. Isso é terrível.
JU – Como professor, o senhor já passou por esta experiência?
Prado – Já. Não vou dizer nomes porque superei. Mas na hora não foi fácil. É a mesma coisa que uma estrela de novela que se depara com uma estrela ainda mais linda. É a síndrome da Branca de Neve. Será que tem alguém melhor do que eu? Tem sim. E em qualquer área, não apenas na música. Médicos, advogados, isso é humano. Mas se você não trabalha isso, você se ilude e não cresce.
JU – Aos 63 anos, como o senhor se define no contexto pessoal e artístico?
Prado – Como uma pessoa que alcançou frutos de uma longa jornada. Tive uma vida muito rica como compositor. Compus muito. Tenho um catálogo com quase 500 obras. Não vou dizer que todas são importantes. Algumas são importantes. Fiz um trabalho de artesanato contínuo. Me sinto um homem em plenitude, não do ponto de vista financeiro. Isso me deixa frustrado. Mas, quando eu morrer ninguém vai perguntar se quando eu compus Hiléia eu estava pobre ou rico. É a obra que vai ficar.
JU – E, da sua obra, qual sua peça preferida?
Prado – As Cartas Celestes. É a obra que vai ficar. Mas tem uma coisa interessante. Sou um dos compositores brasileiros mais estudados na pós-graduação. Nem o Villa-Lobos, que merecia o triplo, foi objeto de tantas teses. Me surpreendo com o que os pesquisadores encontram no meu trabalho. Coisas que nunca encontrei, como se não fosse eu. Ninguém pode se autopsicanalisar. Ninguém é tão imparcial assim. Agora, nunca se sabe o destino de uma obra de arte. Você pode ser tocado em vida e, depois da sua morte, a obra cai no esquecimento. Ou vice-versa. É um mistério. Que bom, não é?
JU – No campo da música popular brasileira o que o senhor gosta de ouvir?
Prado – Gosto dos clássicos. Caetano, Chico, Tom Jobim. Chico César gosto também, Zeca Baleiro, mas não ouço com freqüência. Quando chego em casa quero ouvir Beethoven e não Maria Rita. Ouço música o tempo todo na Rádio Cultura. Se ela toca Maria Rita acabo ouvindo, mas não vou comprar um disco da Maria Rita. Agora, tem uma coisa que eu compro: os sertanejos.
JU – Gosta?
Prado – Adoro.
JU – Quais?
Prado – Os mais bregas possíveis (risos).
JU – Chitãozinho e Xororó?
Prado – Não, pior (risos). Bruno e Marrone, Leonardo... Adoro. Meu pai é de Jaú. Tenho meu lado rural. E não tenho vergonha, eu assumo. Quando quero ouvir eu ouço mesmo. Essa coisa de discriminar estilo musical é uma bobagem. A Hilda Hilst adorava novela brega mexicana. Assistia todas e chorava na frente da televisão. Ela dizia que era a atração dos opostos. Ela assistia desde Malhação até os filmes pornográficos da meia noite. Um dia eu disse a ela: “não venho mais te visitar, você só fica vendo essas novelas, das cinco à meia noite”. Sem tirar os olhos da tevê, ela me mandou para aquele lugar. E é a grande Hilda do poema transcendental. Na minha opinião, isso equilibra a gente. O lado sublime e o lado mundano. Mozart tinha o lado genial e o lado mundano. As cartas que ele escreveu são pornográficas, usava palavras chulas. Beethoven nunca escreveu uma carta destas. Beethoven dizia assim: “ontem infelizmente tive de ir a um bordel, com aquelas mulheres de má vida, para atender às necessidades do meu corpo animal, mas fiquei muito mal com a minha consciência”. Mozart ia ao bordel e achava nice. E nem por isso a música de Mozart não é sublime.
“Tenho meu lado rural. E não
tenho vergonha, eu assumo. Quando quero ouvir eu ouço mesmo”
“Você pode ser tocado em vida e,
depois da sua morte, a obra cai no esquecimento. Ou vice-versa.
É um mistério”
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JU – Em sua opinião, essa dicotomia revela o que?
Prado – As contradições do ser humano. Sombra e luz. Claro e escuro. Nem a psicanálise entende isso.
JU – Há aqui em sua sala várias imagens de santos. São Francisco de Assis, Nossa Senhora... O senhor é uma pessoa religiosa?
Prado – Sim, eu sou católico praticante, de ir à missa. Mas não sou santo. Há católicos que são santos. Eu não sou. Gostaria de ser santo, mas não dá. No meu claro e escuro, o escuro é muito forte. Na verdade, o desejo que o compositor tem de compor a grande obra é como o desejo de alcançar uma espécie de santidade, a sublimação. Tentar compor a grande obra, mesmo sabendo que ela já foi feita por Beethoven, Bach, Mozart. Mesmo assim ele tenta. Se você não busca o sublime não há razão para nada e você se instala na mediocridade.
JU – O senhor acha que já alcançou essa sublimação artística ou está a caminho?
Prado – A gente nunca chega. Ao fazer uma obra, você não pode dizer assim: “eu vou compor uma obra-prima”. A obra-prima não é uma coisa premeditada. Ela acontece independente da sua vontade. Por exemplo, As Cartas Celestes número um, que considero a minha obra-prima, aconteceu por acidente. Foi uma encomenda do José Luiz Paes Nunes, em 1974, que impunha condições de rapidez. Me inspirei no livro do Rogério Mourão e fiz uma música de fundo para ser descartável. E a obra ficou. É a mais tocada das minhas peças e a mais celebrada. Eu não tive culpa.