Pinotti toma posse e
assume compromisso
de ‘integrar conflitos’
Novo reitor toma
posse em sessão
tumultuada mas
restabelece princípio da autoridade. Diretores
retiram ações da
justiça e Unicamp
começa a voltar
à normalidade
EUSTÁQUIO GOMES
A TRÊS SEMANAS de sua posse como o terceiro reitor da Unicamp na linha de sucessão de Zeferino Vaz, Pinotti deu uma entrevista a O Estado de S. Paulo em que relativizou a crise da Unicamp inserindo-a num contexto de normalidade histórica. Lembrou que a primeira universidade do mundo, a de Bolonha, vivera um período de conflito logo após sua implantação em 1088, e que da crise da Universidade de Paris nascera, em 1249, a Universidade de Oxford.
— A meu ver, é importante que a crise não seja prolongada e que seja aproveitada para que se façam modificações necessárias, permitindo um novo período de crescimento. Uma crise curta pode ser sadia para a universidade, porque pode ser criativa, esta é a essência da universidade – o seu poder de criação. Uma crise longa seguramente é uma crise negativa para a universidade e pode sepultá-la de vez, se não for solucionada.1
Ciente de que era preciso, o quanto antes, começar a cauterizar as feridas da intervenção, Pinotti não perdeu tempo: chamou à mesa de negociação os descontentes, a começar pelos diretores exonerados. Sua primeira providência foi trazer Prates e Chaves à Chácara Gramado, o haras onde vivia à margem da rodovia Campinas-Mogi Mirim. Disse a eles que pretendia pacificar o quanto antes a universidade.
— Do que vocês precisam para retirar os processos? indagou.
Falando em nome dos oito diretores afastados, ambos relacionaram quatro pontos que, se atendidos, abririam caminho para a paz: a reintegração imediata dos diretores, a anulação da portaria que os exonerara, o pagamento das gratificações de cargo que Plínio suspendera seis meses antes, e, por último, a garantia de que se iniciaria um processo de institucionalização da Unicamp. Pinotti concordou com tudo e até acrescentou um ponto a mais: estava disposto a reintegrar também os 14 funcionários demitidos. Foi mais além, prometendo a ambos “o espaço político que desejassem, desde que não na esfera da mais alta administração, que já estava definida”.2 Reunidos naquele mesmo dia para analisar o assunto, os diretores exonerados acharam a proposta bastante razoável e, em bloco, dias mais tarde, assinaram um acordo na Justiça para a retirada das ações judiciais. Apesar das insatisfações que ressumavam e se reavivavam esporadicamente, inclusive depois da tumultuada posse de Pinotti na noite 19 de abril, a verdade é que a Unicamp, a partir dali, começou a retomar sua normalidade. Foi em tom construtivo, por exemplo, que a Associação de Docentes deu partida ao ano letivo de 1982 – já em si um indício de normalidade – listando as condições que seu novo presidente, o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira, julgava necessárias para a restauração da democracia interna:
... a reformulação dos estatutos [que deveria contemplar necessariamente] a desvinculação da carreira docente do exercício de funções administrativas, a ampliação da representação discente no Conselho Diretor, a descentralização administrativa da Unicamp em direção a uma maior autonomia das unidades, a volta imediata dos funcionários demitidos, a defesa e a ampliação das eleições diretas nas unidades para a escolha dos dirigentes universitários e o estabelecimento de compromissos da Reitoria em acatar tais deliberações, a necessidade de o Conselho pronunciar-se nas campanhas salariais, colocando-se ao lado das reivindicações dos docentes e funcionários.
Muitas dessas exigências já estavam na pauta de Pinotti, acertada com os economistas três meses antes. No dia da posse, podia-se dizer que a pacificação já estava em curso, embora não ainda em velocidade de cruzeiro. Pinotti, à falta de um salão na universidade com pelo menos 300 lugares, deslocou a cerimônia para o principal anfiteatro da cidade, o do Centro de Convivência Cultural, com 500 poltronas. Ali poderia acomodar não só professores e autoridades, como também a legião de convidados que mandara listar – da sociedade campineira, do país e do exterior. Todos os atingidos pela intervenção estavam presentes, exceto Maurício Prates (“por desconforto moral”, segundo o próprio). Rubem Alves, para fazer jus ao ofício que lhe solicitava “comparecer em vestes talares”, surgiu com uma soberba túnica de senador romano emprestada do reverendo James Wrigth, ex-professor da universidade americana de Notre-Dame, que então residia em Campinas.3 Vendo nisso um sinal de derrisão, os estudantes explodiram em aplausos quando Rubem surgiu no salão. Assim vestido, Rubem colocava-se no mesmo patamar dos “guardas suíços” guarnecidos de lanças que os organizadores da festa, a pedido de Pinotti, mandaram postar de cada lado do palco. Com Rubem, Pinotti gracejou antes do início da sessão, provocando o riso dos circundantes:
— Devo admitir que você ofuscou a minha beca verde.
Tudo isso serviu para espairecer um pouco os ânimos, mas também assanhou os estudantes que se comprimiam nas laterais do salão. Sob a beca, Pinotti exibia uma portentosa bota de gesso, conseqüência de uma queda de motocicleta sofrida dias antes, ao atravessar um campo de futebol. Foi claudicando que desceu a escadaria interna do teatro, sob intensa vaia dos estudantes. A zoada prosseguiu quando ele iniciou a leitura de seu discurso, aumentava quando ele subia o tom, para em seguida baixar a uma espécie de cantilena que despertava o riso, mas também o constrangimento da platéia. Nesse ponto Pinotti deu um golpe de mestre e, por assim dizer, inaugurou ali seu estilo florentino de comandar, capaz de aliar a autocracia à sedução. Um cronista da cidade resumiu assim o episódio:
Aquele salão de Campinas, nessa noite abafada de abril de 1982, era bem o retrato da universidade conflagrada, dividida e imobilizada que espera o seu novo reitor – sob litígio, sempre! – como a tribo que consagra seu novo chefe para em seguida contestar-lhe a autoridade. Compreendi que não lhe passavam somente a toga, mas também um barril de pólvora. Ao iniciar as saudações de seu discurso de posse, o novo reitor viu-se impossibilitado de continuar, tal a zoeira que vinha das galerias. Tememos pelo que poderia acontecer. Elevando a voz, mas sem perder a serenidade, ele disse: “Vocês foram respeitados em seu direito de entrar e participar; exijo agora que respeitem o meu direito de falar e de ser ouvido”. A platéia incrédula viu as galerias silenciarem. O princípio da autoridade havia recuperado alguns pontos.4
A partir dali, Pinotti discursou até o fim sem ser interrompido. O público, tomado da exultação que freqüentemente acomete as multidões quando identifica a figura de uma autoridade nova, passou a aplaudir de um modo tão frenético as melhores (e as piores) passagens do discurso que terminou por inibir (literalmente, destruir) a resistência dos estudantes. Um ponto alto foi quando o novo reitor, já com a toga nos ombros, citou a teórica Mary Parker Follet, renovadora do pensamento administrativo nos Estados Unidos a partir da década de 20 do século XX:
— Conflitos não devem ser eliminados, mas integrados. Há uma força construtiva nos embargos conflituosos. Há uma dinâmica de criatividade nos conflitos: discuti-los é chegar a algo novo.
No parágrafo final dirigiu-se a Zeferino Vaz como se ele estivesse presente, o mesmo Zeferino com quem tantas vezes conflitara, mas que chegara a pressagiar que Pinotti seria reitor um dia:
— Meu caro Zeferino Vaz, abrigado em sua capa e protegido por seu espírito, prometo dar o melhor de mim para dirigir a universidade que o senhor construiu, dirigiu e respeitou.
Foi aplaudido de pé.
1 “Como Pinotti pretende dirigir a Unicamp — uma escola em crise”. O Estado de S. Paulo, 2 de fevereiro de 1982.
2 Com efeito, na gestão Pinotti (1982-1986) Maurício Prates foi coordenador do Núcleo de Automação Industrial, criado especialmente para ele e seu grupo; Eduardo Chaves foi seu assessor especial para convênios e contratos; e Rubem Alves atuou como assessor de relações internacionais.
3 James Wrigth, pastor evangélico que organizou o projeto Brasil Nunca Mais com o arcebispo de São Paulo, D, Paulo Evaristo Arns, entre 1979 e 1985.
4 Eustáquio Gomes, introdução ao livro Ação de Reflexão, coletânea de artigos e discursos de José Aristodemo Pinotti, Papirus, 1986.
AGRADECIMENTOS |
Este livro só se tornou real graças à colaboração de umas quantas pessoas. Sou grato aos mais de setenta personagens da história viva da Unicamp que me relataram suas experiências, o que foi uma prova de confiança, quando não de amizade. Além destes, agradeço a ajuda constante e competente dos funcionários do Arquivo Central da Unicamp (Siarq), em especial de sua coordenadora Neire do Rossio Martins, de Márcia Aparecida Marques Silveira e Cristina Correia Dias Barbieri; à Dra. Patrícia Morato Romano e a Lêda Fernandes, da Secretaria Geral da Unicamp; à coordenadora do Centro de Memória da Unicamp, Olga von Simson; aos funcionários do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e em especial a seu criador, o poeta Carlos Vogt; ao professor Edison Hiroyuki Shibuya, que se deu ao trabalho de corrigir vários trechos deste livro em que comparece a figura ímpar de César Lattes; e aos colegas de imprensa que trabalham a meu lado na universidade e que em mais de uma ocasião se envolveram com este projeto: Álvaro Kassab, Antoninho Perri, Antônio José Scarpinetti, Dulcinéia Aparecida Bordignon, Clayton Levy, Edson Lara, Luiz Paulo Silva, Luiz Sugimoto, Neldo Cantanti, Oséas Magalhães e Roberto Costa. (E. G.) |
Epílogo
Interrompe-se aqui esta narrativa sem que dela tenha resultado, bem o sei, a biografia de seu protagonista ou um retrato da instituição que ele engendrou. Para ser biografia, havia que contemplar traços mais amplos de uma vida à qual não faltaram peripécias; e para que a instituição emergisse de corpo inteiro era preciso um esforço mais que jornalístico que desse conta dos esplendores e misérias da universidade no plano da cultura, da ciência e da complexidade de suas relações humanas. Outros o farão melhor quando for o momento. Afinal a história das universidades se conta por séculos – assim diz sua tradição européia já quase milenar – e este relato cuida apenas dos primeiros quinze anos de uma escola brasileira que ainda nem completou seu meio século.
Não vivi pessoalmente o período que escolhi narrar, salvo sua página final, que justamente marca minha entrada neste mundo peculiar de matemáticos e artistas, físicos e filósofos, engenheiros e cientistas sociais, químicos e lingüistas, biólogos e teóricos da literatura, economistas e médicos, educadores e geólogos, dentistas, informatas e tecnólogos. Logo compreendi de onde vinha seu fascínio: do variado e incessante cruzamento de códigos. Em tal mundo poder-se-ia reclamar de muita coisa, menos de monotonia.
Havia, porventura, a vantagem de não ser parte interessada. Nem mesmo conheci pessoalmente Zeferino Vaz. Arlinda Rocha Camargo, a fiel servidora que o acompanhou até aos últimos instantes, assegurou-me que, se houvéssemos coincidido no tempo, era certo que nos daríamos bem. É possível. Mas tenho dúvidas se ele ia gostar desta narrativa.
Em compensação, conheci e privei com todos os reitores que o sucederam até o ano do aparecimento deste livro: Plínio Alves de Moraes (1978-1982), José Aristodemo Pinotti (1982-1986), Paulo Renato Souza (1986-1990), Carlos Vogt (1990-1994), José Martins Filho (1994-1998), Hermano Tavares (1998-2002), Carlos Henrique de Brito Cruz (2002-2005) e José Tadeu Jorge, cujo mandado, neste ano do quadragésimo aniversário, ainda vai a meio. Excetuando o período Plínio e três quartos da gestão Tavares, partilhei com os demais a experiência exultante de ver a universidade emergir da crise, crescer, adensar-se e ganhar musculatura.
Dessa parte da história, por tê-la vivido pessoalmente, tenho uma visão distinta. Fui testemunha ocular de muitos de seus fatos e a estes vejo sob uma luz mais crua, em todo caso mais verdadeira. O certo é que nunca o fascínio desse mundo peculiar me abandonou. Sempre soube que uma vida mais rica flui por baixo do registro institucional. Às vezes me perguntam se darei continuidade a esse relato. Quem sabe, um dia, como matéria de memória. (E. G.)