| Edições Anteriores | Sala de Imprensa | Versão em PDF | Portal Unicamp | Assine o JU | Edição 333 - 14 a 20 de agosto de 2006
Leia nesta edição
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Artigo: Burocracia e Biodiversidade
Cartas
Geociências e nova era
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Aroma e prevenção de doenças
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Jabuti
Ajuda de cão-guia
Desfibrilador em estabelecimentos
Prêmio Bunge
 

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Dissertação de mestrado publicada em livro
revela nuances do movimento zapatista

‘Por um mundo onde
caibam muitos mundos’

Guilherme Gitahy de Figueiredo, autor do livro e professor na Universidade do Amazonas: mergulhando na história do zapatismo (Foto: Antoninho Perri)Entre dezembro de 1998 e fevereiro de 1999, o professor, antropólogo e cientista político Guilherme Gitahy de Figueiredo arrumou as malas e partiu para o México. O período correspondia às suas férias no curso de pós-graduação do Departamento de Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH). Não era apenas o México idílico que o atraía. Figueiredo vislumbrou no horizonte a oportunidade de aprofundar suas pesquisas sobre a trajetória e a atuação do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN). Chiapas era o seu destino.

Na bagagem teórica levava noções com as quais teve contato ainda na iniciação científica. Na bagagem propriamente dita, gravador e fitas. Figueiredo levava, na alma – generosa, como veremos adiante –, a esperança de compreender melhor um fenômeno que seria inspirador de movimentos sociais espalhados pelo mundo e não por acaso deflagrador de mudanças que marcariam – de Seatle a Porto Alegre – o que restava da última década do século XX e o alvorecer do milênio.

O resultado, visto à luz da academia, não poderia ter sido melhor. A pesquisa, pioneira no país, rendeu uma dissertação de mestrado apresentada no IFCH em fevereiro de 2003, sob orientação do professor Tom Dwyer, e recém-publicada no livro A Guerra é o Espetáculo – Origens e Transformações da Estratégia do Exército Zapatista de Libertação Nacional ( RiMa Editora/Fapesp). A obra, que será lançada no próximo dia 15 na Unicamp, reúne densidade científica e relatos que remetem a trabalhos jornalísticos de referência. A aposta no multidisciplinar, por sua vez, fez emergir abordagens inéditas que vão da história à economia, passando pela antropologia e ciência política, entre outras áreas.

Processo eleitoral na cidade de Mazatlán Villa de Flores: caciques locais ligados ao PIR resistem a pleito limpoUm outro resultado, porém, apenas o autor pode revelar (e sentir), mesmo que as aspas sejam desnecessárias – as boas histórias dispensam o declaratório. Figueiredo, nascido no Chile em 1973 durante o exílio de seus pais, cresceu sabendo que a história verdadeira raramente é aquela trombeteada pelo discurso oficial. Veio morar no Brasil apenas aos 5 anos de idade. Até por isso, sempre acreditou na transformação das coisas.

Democracia – Na conversa de quase três horas, ficou claro que a passagem por Chiapas fortaleceu as convicções democráticas do entrevistado, hoje envolvido com ONGs e coletivos na cidade amazonense de Tefé, onde atua como professor da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Não seria exagero deduzir que o zapatismo exerceu uma forte influência sobre ele.

Entretanto, a leitura de seu trabalho revela um rigor analítico que está longe do cheque em branco. Ao tatear o terreno em busca do foco – inicialmente centrado na autonomia e na auto-gestão das comunidades indígenas, abordagem descartada ao longo da pesquisa – Guilherme empreendeu uma viagem sem concessões à indulgência. O antropólogo fugiu da armadilha do estereótipo e da visão idealizada, mergulhando na história do zapatismo, cujas origens remontam a 1983, quando guerrilheiros da FLN (Forças de Libertação Nacional), grupo de orientação marxista-leninista fundado em 1969, se instalaram na Selva Lacandona.

Ao dar voz a atores em seu estudo, o pesquisador indireta e sutilmente expõe as contradições do movimento, revela o maniqueísmo de teses da direita e da esquerda e dessacraliza mitos existentes sobre as lideranças. Na entrevista, comentou os riscos da mistificação ao analisar como os indígenas chiapanecos precisam colocar máscaras para serem admirados.

Essa base teórica não surgiu do nada. Guilherme voltou do México com uma bibliografia escorada em pelo menos 70 livros, uma dúzia e meia de vídeos e 40 horas de depoimentos gravados. O pesquisador ouviu guerrilheiros, feministas, sindicalistas, indígenas, estudantes, professores, representantes de ONGs, jornalistas etc.

Cerimônia em homenagem a lideranças indígenas assassinadas na região de Mazatlán Villa de FloresNo campo – A pesquisa de campo, narrada na primeira das três partes que compõem o livro, é um capítulo à parte. Guilherme enfrentou o desconhecido e o espectro da repressão para entender as transformações de um movimento que surpreendeu o mundo no levante organizado no primeiro dia de 1994, quando cerca de três mil homens, de seis etnias maia, ocuparam sete cidades do então praticamente desconhecido Estado de Chiapas, conforme números registrados em A Guerra é o Espetáculo. Entre outras coisas, os integrantes do EZLN reivindicavam democracia, autonomia, reforma agrária e melhores condições de vida. Sua ida à terra do zapatismo, reconhece, fez com que pela primeira vez intuísse o que a geração de seus pais sentiu na pele depois do golpe militar de 64.

O pesquisador ficou inicialmente na casa de um professor na Cidade do México, onde manteve os primeiros contatos com intelectuais e estudantes. Sua condição era a de um pesquisador semiclandestino, fato agravado pelo clima geral do país, vivendo sob a sombra da repressão histórica que ainda perdura, talvez em menor intensidade, nos dias de hoje.

Figueiredo atravessou o país de ônibus munido apenas de um visto de turista e com documento de aluno especial do Colegio do México. Entretanto, a instituição, tradicional formadora de quadros públicos para o governo mexicano, sugeriu que só apresentasse o documento em último caso. Até segunda ordem, no caso de uma abordagem policial, o melhor que Figueiredo tinha a fazer, segundo a orientação, era alegar que estava ali na condição de turista.

Sua primeira parada foi em Mazatlán Villa de Flores, município indígena localizado no Estado de Oaxaca, na região fronteiriça de Chiapas. Guilherme acompanhava uma caravana de observadores que iriam acompanhar as eleições municipais locais. Zona de conflito, Mazatlán era sede de movimentos indígenas cuja orientação diferia do zapatismo, muito embora, em última instância, o apoiasse. Mas não só: a cidade abrigava também os chamados caciques ligados ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), agremiação secular que décadas antes incorporou as massas num sistema corporativo e autoritário que começava a ruir no fim do século. Sem credencial de observador por ser estrangeiro, Guilherme recebeu uma orientação que traduzia a atmosfera reinante: o melhor que tinha a fazer era manter-se de “boca fechada”. Muitos indígenas tombavam executados por caciques locais que resistiam a perder o poder municipal em eleições limpas.

O contato inicial de Guilherme com Chiapas deu-se em San Cristóbal de Las Casas, a cidade mais importante das ocupadas pelo EZLN em 1994.

“Zapata”, de Adriana, 13 anos: renda obtida com venda de postais é revertida em benefício das crianças indígenas da etnia tzotzil.Roteiro obrigatório de milhares de simpatizantes e ativistas que visitavam as comunidades zapatistas, a região onde se localiza o município, ex-capital de Chiapas, foi palco, segundo o pesquisador, de sucessivas revoltas indígenas ao longo da história. Na primeira delas, ocorrida em 1534, diz a lenda que a etnia chiapaneca, varrida do mapa mais tarde, chegou ao extremo de promover um suicídio coletivo depois de resistir dois anos à fúria colonizadora.

A opressão atravessaria os séculos subseqüentes. Até os anos 60, explica o pesquisador, havia toque de recolher para os indígenas de San Cristóbal, cuja elite é tida como a mais racista do Estado. Nesse ambiente, a atuação da ala da igreja ligada à teologia da libertação foi fundamental para a organização de movimentos que mais tarde engrossariam as fileiras do EZLN e do zapatismo, que agregava outras agremiações.

De San Cristóbal, Guilherme partiu para Las Margaritas, cidade também ocupada no levante. Lá, ficou hospedado na casa de um miliciano. Nas bordas das matas da região, diziam, estaria o subcomandante Marcos, importante líder do EZLN. Guilherme pretendia visitar três comunidades zapatistas, mas num primeiro momento evitando passar pelas chamadas Aguacalientes (centros políticos e culturais zapatistas) e por acampamentos de paz, locais que abrigam grupos ligados aos direitos humanos e que funcionam, segundo Guilherme, como uma espécie de escudo contra a repressão. Bloqueios militares eram freqüentes na região, também tomada por informantes do governo. Além disso, queria fazer um roteiro menos conhecido por pesquisadores e estrangeiros.

Os planos do pesquisador, entretanto, foram abortados em razão de conflitos internos ocorridos na primeira das comunidades a serem visitadas. Com o auxílio de uma organização de projetos produtivos que trabalha com mulheres de comunidades zapatistas, Figueiredo conseguiu entrevistar membros do EZLN. Por outro lado, conheceu a comunidade Cruz Del Rosário, berço de importante movimento indígena independente, mas cujas lideranças não se alinharam com o zapatismo.

De volta ao Brasil, o pesquisador foi digerindo os dados. Primeiro na Unicamp, depois no Cebrap, onde participou do Programa de Formação de Quadros Profissionais. Reconhece que recomeçou seu trabalho inúmeras vezes, até chegar ao formato atual. Figueiredo pretendia priorizar a etnografia, mas acabou por equilibrá-la com elementos de história oral.

A mudança mais significativa, entretanto, seria registrada no âmbito dos objetivos da pesquisa. Guilherme optou por ajustar seu foco em dois componentes para explicar as mudanças na estratégia da organização liderada pelo subcomandante. São eles a participação popular e a comunicação. Ao trocar os fuzis pela “palavra”, explica Figueiredo, o EZLN abriria um flanco que nunca mais seria fechado, redirecionando a partir de então a forma de atuação dos movimentos sociais e, em última análise, da prática política. Demonstrava também, graças aos mesmos mecanismos de participação e comunicação, forte conexão com a realidade contemporânea. Os aspectos democráticos e midiáticos vinham para ficar.

Não por acaso, lembra o pesquisador, a eclosão do levante de 1994 e seu momento imediatamente posterior coincidiram com o advento da internet. Os comunicados começaram a ser replicados mundo afora, dando início a um tema que ajudaria a pôr em contato horizontalmente os mais variados grupos. A participação popular passou a ser indissociável da comunicação, no pensamento político. Incentivou-se a busca de novas maneiras de se fazer política que, entre outros aspectos, confere ao zapatismo uma incrível capacidade para se transformar e se adaptar às dificuldades encontradas. Entre as novas práticas vale destacar a catalisação de amplas redes, dentre as quais algumas Figueiredo passou a integrar. Ele acredita ser necessário construir aqui e agora “um mundo onde caibam muitos mundos”.

A Guerra é o Espetáculo

O livro A Guerra é o Espetáculo – Origens e Transformações da Estratégia do Exército Zapatista de Libertação Nacional (RiMa Editora/Fapesp) vai ser lançado na Unicamp no próximo dia 15 (terça-feira), durante a jornada de seminários “A flor da palavra”, evento que ocorrerá durante todo o dia no Auditório do IFCH. Pedidos para a compra do livro podem ser feitos no endereço www.rimaeditora.com.br

 

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