Especialista defende interação entre Ministério da Defesa e Forças Armadas
Muito além da retórica nacionalista
PAULO CÉSAR NASCIMENTO
No início deste mês, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi condecorado com a Ordem do Mérito Militar em solenidade no Quartel-General do Exército, em Brasília (DF). Ele aproveitou a cerimônia (da qual também participaram representantes da Marinha e da Aeronáutica) para tentar desfazer o mal-estar provocado logo em seu primeiro dia de governo, quando suspendera por um ano a compra de caças para a Força Aérea e dissera que os US$ 700 milhões destinados ao negócio seriam mais bem empregados no combate à fome. Em um esforço para amenizar o ressentimento dos militares com o novo governo, Lula recorreu ao tom nacionalista tão ao gosto castrense, anteriormente explorado na campanha eleitoral, e prometeu que as restrições orçamentárias são momentâneas e não representarão o adiamento indefinido do reaparelhamento das tropas.
Para o cientista político Eliézer Rizzo de Oliveira, entretanto, os problemas da defesa nacional não se esgotam na aquisição de material bélico em maior número e exigem soluções que vão além da retórica do novo presidente.
Recursos orçamentários são, é claro, indispensáveis. Ele lembra como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não valorizou as Forças Armadas e lhes impôs tão graves restrições orçamentárias que até a formação de reservistas e a participação em missões internacionais ficaram prejudicadas. Por isso, o novo governo não pode prescindir do aprimoramento da remuneração e da aposentadoria dos militares, fatores de estabilidade profissional e de segurança de suas famílias.
Porém, tão importante quanto a atenção aos interesses profissionais dos membros das Forças Armadas é o comprometimento dos poderes Executivo e Legislativo na implementação de uma adequada e efetiva política de defesa nacional, enfatiza Eliézer.
"Para tanto, é preciso vontade e orientação que emanem do presidente da República na condução das questões estratégico-militares. É também imperativo que o Ministério da Defesa cumpra a função de interlocutor entre as Forças Armadas e a sociedade civil para que esta possa se interessar e influir num tema decisivo para os destinos do País, que é a definição do papel dos militares", salienta.
Falta de conteúdo - Membro do Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp e estudioso da questão militar há mais de duas décadas, Eliézer lembra que a histórica criação do Ministério da Defesa, há quatro anos, com um civil à sua frente, alterou radicalmente a relação de poder dos comandantes das Forças Armadas com o governo (agora subordinados ao titular da Defesa e não mais ao presidente da República) e deveria ter proporcionado a inserção da temática militar em um lugar de destaque na pauta dos grandes temas nacionais.
É o que se espera agora do atual ministro José Viegas Filho, após a performance do advogado Geraldo Quintão, seu antecessor no cargo, considerada inexpressiva no diálogo com a sociedade civil.
"O Ministério da Defesa é adequado ao País. O problema é que ainda lhe falta conteúdo", sentencia Eliézer, que aborda o papel da pasta em Democracia e Defesa Nacional: a criação do Ministério da Defesa, título provisório do livro que pretende lançar este ano. Para ele, o ministro deveria se empenhar mais em conhecer as Forças Armadas e conviver com elas.
Estimular as universidades ao intercâmbio com as Forças Armadas para a produção de conhecimento sobre a defesa nacional e aperfeiçoamento da preparação dos recursos humanos militares, freqüentar a mídia com entrevistas e artigos esclarecedores sobre os riscos existentes para a segurança nacional e incentivar a participação mais ativa dos militares em missões internacionais são outras providências que contribuiriam para consolidar a atuação da pasta.
Também é urgente, de acordo com o pesquisador da Unicamp, que o ministério elabore o Livro de Defesa Nacional, um instrumento do qual o Brasil ainda carece e que deverá reunir informações detalhadas sobre unidades militares, distribuição territorial, equipamentos bélicos e estratégias de defesa.
Apatia do Legislativo provoca equívocos
Os assuntos de caserna raramente despertam o interesse do Poder Legislativo Federal. Mas essa apatia dos congressistas nas questões militares precisa mudar rapidamente, para evitar que equívocos continuem contribuindo ao desvirtuamento do papel das Forças Armadas, adverte Eliézer.
"O presidente da República comanda as Forças Armadas e dirige a política externa, havendo pouco a compartilhar com o Poder Legislativo quanto à formulação de conceitos e objetivos. No caso da defesa nacional, passa-se como se não devesse constar dos grandes temas que compõem a pauta parlamentar", afirma.
A acanhada participação do Congresso Nacional na condução dos destinos das Forças Armadas foi tema de pesquisa temática desenvolvida por Eliézer com financiamento da Fapesp. O estudo "Democracia, Legislativo e Ministério da Defesa" abarcou o assunto desde a restauração do regime democrático no País, em 1985, com José Sarney na presidência, até o segundo mandato do governo de Fernando Henrique Cardoso.
Cultura estratégica - Eliézer observa que falta cultura estratégica aos dirigentes civis, decorrente da percepção social equivocada da ausência de riscos para a defesa do País. "Há quem até pergunte, de maneira depreciativa, para que existem as Forças Armadas", lembra. Mas ele aconselha: embora não haja ameaças clássicas ao Brasil no contexto sul-americano, é essencial ser previdente e abrir os olhos.
O ambiente amazônico, ilustra o cientista político, contém efetivas ameaças militares, decorrentes da situação colombiana, de tendências antidemocráticas do processo venezuelano e de graves problemas de segurança pública com implicações para a defesa nacional, tais como narcotráfico, crime organizado, atividades mineradoras ilegais, contrabando, violação do espaço aéreo, agressão ao meio ambiente e à biodiversidade.
Por isso, o presidente deve configurar uma liderança conceitual na América do Sul no plano militar e consolidar a presença militar e estatal na Amazônia, sem descuidar da defesa marítima e do espaço aéreo.
Auxílio momentâneo - Ainda segundo Eliézer, freqüentemente deputados e senadores confundem os conceitos de defesa nacional (proteger o território e os cidadãos contra ameaças externas) e de segurança pública (combater a violência, o crime e o tráfico de drogas), e acreditam que as Forças Armadas devem se preocupar mais em zelar pela lei e pela ordem, realizando operações de policiamento ostensivo ou controlando greves, do que em defender o País de um inimigo externo.
"Essa visão dos parlamentares é equivocada. Não se deve militarizar a segurança pública. As Forças Armadas não podem substituir organismos civis ineficientes. Podem, no máximo, contribuir momentaneamente", pondera Eliézer. "Nesse aspecto, é vital que o presidente Lula resista às pressões pela transformação das Forças Armadas em forças auxiliares das polícias."
O pesquisador observa que algumas parcerias são factíveis e outras não. Querer delegar para as Forças Armadas a tarefa de recuperar estradas em lugar das empreiteiras, como pretende o ministro dos Transportes Anderson Adauto, é ignorar o estado de desatualização do maquinário militar.
Já o esforço nacional pela superação da miséria e da fome é uma ação social efetiva que deve, sim, contar com o apoio das unidades militares.
"Foi o que encontrei em Roraima. Lá, visitei um batalhão que, com parcos recursos, cuida da saúde de pessoas até da Guiana", ilustra.