Leitura: educadores e
escritores avaliam inclusão pelo livro
Democratizar o acesso aos livros e aos computadores e investir maciçamente na educação, sobretudo na formação de professores que estimulem o hábito da leitura, tornando-a uma ferramenta de transformação do cidadão. Essas são algumas das sugestões apresentadas por conferencistas do 14º Cole (Congresso de Leitura), realizado na semana passada na Unicamp. As propostas invariavelmente foram formuladas com o objetivo de buscar atenuantes para as desigualdades, algumas delas traduzidas em números apresentados por participantes do congresso. Os dados mostram, sobretudo, os contrastes de um país que busca sua inserção num cenário cada vez mais competitivo. Pesquisa nacional feita com pessoas de 15 a 64 anos, pelo Instituto Ação Educativa/Ibope, por exemplo, revela que apenas 25% dos brasileiros têm "habilidades mais refinadas", como dizem os educadores, para ler um texto e compreendê-lo. Transformada no livro "Letramento no Brasil" (Editora Global), lançado no Cole, a pesquisa revela outro componente não menos dramático da realidade brasileira: apenas 17% da população tem acesso ao mundo digital. Por outro lado, o mercado editorial nacional experimenta um crescimento sem precedentes: o país ocupa hoje o oitavo lugar em produção de livros no ranking mundial, o que não significa, de acordo com especialistas, que o brasileiro está lendo mais. O que fazer para mudar esse quadro? As respostas estão nos depoimentos de oito conferencistas do Cole ouvidos pelo Jornal da Unicamp. Divergentes nas formulações, os entrevistados convergem num ponto que consideram fundamental: a leitura precisa ser uma atividade prazerosa.
Números da exclusão
Os números da pesquisa nacional feita pela Ação Educativa coincidem com algumas das informações divulgadas recentemente pelo IBGE, entre elas os índices de analfabetismo absoluto e de alfabetismo funcional, respectivamente em 9% e 25%. Mas o levantamento, realizado pela ONG sediada em São Paulo, em conjunto com o Instituto Paulo Montenegro, ligado ao Ibope, ultrapassou os limites meramente censitários. Trata-se de uma ampla prospecção dos hábitos de leitura e escrita dos brasileiros. Foram entrevistadas duas mil pessoas com idades entre 15 e 64 anos. Os resultados, publicados no livro "Letramento no Brasil", lançado durante o 14º Cole, jogam luz sobre um universo pouco estudado no país e fornecem pistas para a formulação de políticas públicas, sobretudo na área educacional.
Segundo a coordenadora do trabalho, a educadora Vera Masagão Ribeiro, da Ação Educativa, um fator que precisa ser revisto é o tempo de escolaridade preconizado pela Unesco, de quatro anos, como indicador do chamado alfabetismo funcional. "Observamos que para se tornar um leitor de textos mais básicos do cotidiano, e incorporar isso às suas práticas sociais, são necessários pelo menos oito anos de escolaridade básica". Uma tarefa difícil, reconhece, já que, pelos dados da pesquisa, 50% dos brasileiros não têm sequer o ensino fundamental. "Existe uma forte correlação entre escolarização e habilidade de leitura".
Qual seria a saída? "Investir fortemente na garantia do ensino fundamental para todos, inclusive para aqueles que já passaram da idade adequada", sugere Vera Masagão, lembrando que as exigências do mercado de trabalho são cada vez maiores. A opinião é reforçada por outras duas constatações do levantamento. A primeira, relacionada ao ambiente de trabalho, onde o índice de leitura é considerado baixo para os padrões vigentes. A segunda revela que apenas 25% dos entrevistados conseguem assimilar corretamente as informações contidas em um texto.
A educadora sugere a democratização do acesso aos materiais impressos como o primeiro passo para mudar esse quadro, promovendo a distribuição de jornais, revistas e livros em escolas e centros comunitários, e atualizando acervos de bibliotecas públicas, que, segundo ela, são na maioria das vezes espaços anacrônicos.
Outro dado da pesquisa que impressionou seus organizadores, segundo a educadora, foi a dimensão da chamada exclusão digital no país: 83% dos brasileiros jamais usaram um computador. "É um número alto, já que se trata de um importante meio de escrita associada à imagem e à interatividade", constata. "É fundamental o investimento em telecentros comunitários, que são experiências pontuais que precisam ser expandidas".
Verdades e mentiras
Pesquisas recentes revelam: o consumo de livros no Brasil apresenta índices crescentes consideráveis. A informação é confirmada pelo professor Luiz Percival de Britto, coordenador do 14º Cole. Segundo ele, o consumo brasileiro atual está em torno de dois livros per capita por ano. Isso não significa, necessariamente, um bom indicador do quanto as pessoas estão lendo. "Um número relativamente baixo se comparado com outros países como Estados Unidos, França e Inglaterra, por exemplo, cujos índices de consumo estão, em média, de 10 unidades por pessoa", diz.
Britto avalia que, quando se refere ao consumo de livros, geralmente fala-se do quanto se produziu e quanto se comprou, o que representa um indicador que pode mostrar a pujança econômica, política ou cultural do estado da economia do país. "Mas não funciona necessariamente como bom indicador do quanto as pessoas lêem. Isso por duas razões: a primeira, as pessoas podem ler e lêem muitas outras coisas, além de livros; segunda, porque a distribuição da leitura, como outros bens sociais, culturais e econômicos é muito desigual no país, em termos de consumo".
Em relação ao quanto o brasileiro lê- não apenas livros, revistas, gibis, jornais e outras publicações populares- verifica-se que há um senso comum que vem se reproduzido há muito tempo pela mídia, não apenas no Brasil mas também em outros países da Europa. Ou seja, as pessoas hoje lêem pouco, antes liam mais; e há aquele público que deverá ler mais, caso encontre prazer na obra que vai manusear. "Todavia isso não acontece. Esses argumentos se configuram em três mitos, três axiomas falsos, que representam o senso comum e que, sob o meu ponto de vista, infelizmente a mídia vem sistematicamente reproduzindo esse discurso cansativo, que o brasileiro não é afeito aos livros, ou que não gosta de ler", argumenta Percival. É preciso salientar, de acordo com o professor, que o Brasil possui um dos maiores parques gráficos do mundo, o que não quer dizer que por aqui esteja tudo bem, maravilhoso, e, com isso, o brasileiro se transforme num grande consumidor de livros, segundo avalia Percival.
Desmistificando a escrita
Os professores precisam priorizar a leitura e a escrita, e se dedicar menos ao ensino de regras gramaticais. A opinião é do escritor e lingüista Marcos Bagno, autor do livro "Preconceito lingüístico: o que é, como se faz", entre outras obras dedicadas ao tema. "Precisamos desmistificar a questão da escrita, que é um dever do Estado e um direito de todo o cidadão, mas que ficou reservada às elites durante muito tempo no país", opina.
Para Bagno, o equívoco começa na idéia de que, para ler, falar e se comunicar bem, o indivíduo precisa conhecer todas as regras da gramática normativa. "As pessoas podem fazer tudo isso sem precisar saber o que é uma oração subordinada substantiva objetiva direta ou a listinha de dígrafos. Aprender a ler e escrever depende do contato com a leitura e com a escrita".
O lingüista acredita que estão ocorrendo mudanças, embora "lentas", sobretudo após a publicação dos parâmetros curriculares nacionais, em 1998. "É uma cultura que está muito enraizada. Justamente por isso é preciso que os professores recebam uma formação que dê uma visão mais ampla do seja a tarefa de ensinar e ler e escrever".
Dificuldades históricas
Estudos desenvolvidos pelo Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) revelam que 59% das crianças da quarta série do Ensino Fundamental não possuem os conhecimentos básicos de leitura e de letramento (termo utilizado para designar essa concepção mais ampla de conhecimentos e habilidades) para a idade. Os testes, aplicados pelo Sistema revelam resultados bastante negativos para a qualidade de ensino no Brasil. Mas não chegam a surpreender técnicos e professores ligados à área de educação do Ministério da Educação. "São crianças não-alfabetizadas ou semi-alfabetizadas, com sérios problemas de leitura, que não conseguem interpretar um texto, não conseguem detectar as informações nele contidas, por mais simples que fossem para a idade delas", explica Maria José Feres, secretária do Ensino Fundamental do MEC.
Segundo a pesquisadora, embora com o passar dos tempos os índices de analfabetismo estejam caindo em boa parte dos estados brasileiros, ainda há sérios problemas. Maria José diz que 52% das crianças têm dificuldades profundas com relação às quatro operações de aritmética.
São vários os motivos que levam as crianças a adquirir esse tipo de problema, cujas causas estão sendo devidamente avaliadas pelo governo federal. No entanto, a pobreza da família não pode ser considerada como uma das causas primordiais para que a criança não assimile o ensino da matemática ou do letramento. "Todas as crianças podem aprender independentemente de sua condição sócio-econômica, do lugar onde residem e do tipo de vida que levam", acredita a secretária do MEC. Ela explica ainda que o Brasil é um país com muitas diferenças regionais. Há estudos em desenvolvimento nesse sentido. O grande foco para reverter esse quadro, o grande investimento que o governo brasileiro tem que fazer, refere-se à valorização de professores.
"Se conseguirmos valorizar e desenvolver uma política nacional compatível de formação de professores, nós vamos conseguir inverter essa situação. Para isso, a política de valorização do professorado, que deverá entrar em vigor já no ano que vem, na rede pública de ensino fundamental de todo o país, prevê a criação de um piso salarial nacional com o propósito de reduzir as desigualdades salariais existentes hoje no Brasil, e a criação do Fundo da Educação Básica (Fundeb), visando aumentar os recursos para outros setores da educação", explica Maria José. Ela adianta ainda que está propondo a criação de uma rede nacional de pesquisas e desenvolvimento da educação envolvendo as universidades e instituições de ensino e pesquisa, que ficariam responsáveis pela criação de cursos de formação continuada a distância.
A partir desse esquema, os professores deverão fazer exames de avaliação e terão acesso a uma bolsa nacional de incentivo para dar continuidade ao seu aperfeiçoamento.
No campo das teorias
Por que nos perguntam se existimos, título do novo livro da escritora e poetisa Mariana Colassanti, parece responder o que há muito a obriga à eterna pergunta: existe de fato a tão propalada literatura feminina? "Há anos me questionam sobre isso e sempre respondo que se trata de uma pergunta um tanto ofensiva", diz Marina, que está para lançar Outras Palavras, pela Editora Record. Em sua conferência no 14º Cole, ela diz que não se pode fazer distinção entre literatura feminina e masculina. "Ou é literatura ou não é", diz.
Para Marina, o importante não é surgimento de nomes de peso, mas sim o aparecimento de mulheres que façam uma literatura que se pode classificar como de qualidade. No entanto, ela argumenta que o não surgimento de novas boas escritoras ocorre basicamente por duas razões: "de um lado está a formação do autor e, de outro, o mercado consumidor de livros. Ora, um país de mercado livreiro precário e de formação de escritores ainda mais precária, dificilmente pode virar um país de leitores", explica. Diz ainda que há algum tempo os Estados Unidos haviam publicado num ano 365 novos autores, quer dizer, um novo autor por dia. No Brasil não havia informações a respeito. Para a poetisa, o Brasil é um país que peca por não ter cursos freqüentes de formação literária; não se ensina na universidade a se fazer ficção. "Estuda-se, e com profundidade até, apenas teorias literárias, o que também é válido, mas não para quem quer ser escritor. Não há tradição nas nossas universidades, não existem oficinas de criação literária ou cursos que tratem desse assunto
Uma experiência de alegria
"Não importa quantos livros você lê por mês, ou por ano. Tudo vai depender do que se faz com aquilo que se lê, o que se pode absorver da leitura, que tipo de transformação provoca no leitor". O argumento é do professor, educador e psicanalista Ruben Alves, autor de dezenas de livros infantis e infanto-juvenis e que está para lançar mais um título: Conversas sobre Educação, pela Editora Verus.
Sua obra, como diz, não se destina a um público específico. "Tanto pode ser lida por uma criança quanto por um adulto, pais e alunos". Ele admite que sua obra é muito apreciada também por jovens, porque eles sentem que, de alguma maneira, o autor insere palavras ou situações que eles vivenciam no cotidiano. "Você pode imaginar um menino de periferia, tendo que aprender o nome das enzimas, que tomam parte da digestão, o que é oração subordinada, análise sintáxica? Não tem nada a ver com o seu mundo. Pura perda de tempo. Então, os adolescentes, os professores, de modo geral, apreciam a mensagem que tento passar para eles com toda a honestidade".
Há um herói num dos livros de Herman Hesse, O Jogo das Contas de Vidro, que era um homem maravilhoso, líder de uma ordem monástica chamada Castália. Quando ficou velho foi dominado por uma nostalgia absurda que o atormentava: quis abandonar tudo o que havia conseguido para ensinar a uma única criança que ainda não tivesse sido deformada pelas escolas de então. "O que quero dizer com isso é que freqüentemente nos vemos diante das estruturas arcaicas de educação das escolas de hoje, que matam a criatividade dos estabelecimentos de ensino. As atividades são várias, mas sem criatividade. Quando escrevo algo é porque alguma coisa está me incomodando. A partir daí, procuro sugerir possibilidades diferentes, de modo que os livros estão recheados de perspectivas alegres. Minhas críticas são sempre bem-humoradas. Acredito mesmo que a educação pode ser uma experiência de alegria".
Da auto-ajuda ao clássico
A indústria do livro espírita é um dos segmentos que mais crescem no Brasil. Há leitores fiéis, que lêem até um livro a cada dois dias. E as obras de auto-ajuda seguem o mesmo caminho. Até que tudo bem, se o público que lê tais obras não deixasse de apreciar também obras da chamada literatura erudita, os clássicos, os grandes autores. A opinião é do professor Paulo Franchetti, diretor da Editora da Unicamp e crítico literário. Com isso, conclui-se que o mercado editorial brasileira está em franca expansão.
Ele observa que as pessoas estão cada vez lendo mais no Brasil. "O que acontece é que diversificaram o tipo e o gênero de leitura. Quando se diz que um indivíduo não gosta de ler, que dizer que não aprecia textos geralmente prescritos na escola ou textos considerados de alta literatura", argumenta. Ele explica esse fenômeno dizendo que o que falta na verdade não é o leitor, mas livros, obras adequadas ao perfil de determinado leitor.
"Seria viável que livros não destinados a um público específico fossem colocados no mercado a preços mais acessíveis, de modo que as pessoas pudessem experimentar e desenvolver o gosto por um produto que não tenha uma linha definida, como os de auto-ajuda ou de uma literatura mais ligeira". Franchetti acredita que para criar no hábito de leitura é preciso que haja contato direto do indivíduo com a obra. Com isso, o indivíduo pode usufruir de uma inesgotável fonte de prazer, que vai, também, lhe proporcionar um enriquecimento de reflexão interiorizada, "ora colocando-se na pele dos personagens, ora deslocando-se para outros tempos e espaço, classes sociais e outros costumes".