Ao longo de 12 meses a cientista social Rosana Horio Monteiro permaneceu nos Estados Unidos levantando dados para sua tese de doutorado Videografias do coração. Um estudo etnográfico do cateterismo cardíaco, defendida no Instituto de Geociências da Unicamp, no Departamento de Política Científica e Tecnológica. Durante cinco meses Rosana freqüentou o laboratório de cateterismo cardíaco do Albany Medical Center, hospital-escola americano considerado de referência na região de Troy, norte do Estado de Nova York. Acompanhando um grupo de sete jovens médicos, com três anos de residência médica, e em fase de especialização em áreas específicas da cardiologia através do programa de fellowship, Rosana investigou como o conhecimento médico é produzido e reproduzido por meio do uso de imagens no contexto da prática médica. Com base em estudo etnográfico, a pesquisadora focalizou esse grupo de cardiologistas que realiza cateterismo cardíaco para diagnosticar obstruções coronarianas no Albany Medical Center.
Combinando elementos da literatura sobre mundos sociais e da sociologia e antropologia da medicina, Rosana explica que a interpretação das imagens pode estar ligada à posição social, ao status, ao gênero, à experiência e à formação acadêmica do médico, à sua hierarquia profissional e posição na instituição em que atua.
“Na minha tese, argumento que a imagem bidimensional do coração que o médico ‘vê’ produzida pelo cateterismo não é simplesmente a representação objetiva e neutra de um processo que ocorre no coração. O médico enxerga o que aprendeu a ver, o que disseram para ele que tem que ser visto”, afirma Rosana. Aí é que ocorrem algumas divergências de opiniões. Os médicos vêem a imagem do funcionamento do coração através de filtros que dependem de seus compromissos, suas crenças e preferências de todos os tipos. “Todos esses filtros são mobilizados e modificam o que se vê no filme”, deduz a pesquisadora.
Diagnósticos O que a preocupava, no entanto, é como as imagens fornecidas pelo cateterismo eram lidas pelos profissionais daquele hospital americano, como eles interpretavam os exames de forma a elaborar seus diagnósticos. Ou seja: “Eu estava interessada em entender como o conhecimento médico é construído e produzido a partir da leitura das imagens específicas do cateterismo cardíaco”. Foi por isso que Rosana optou por um hospital-escola, porque estava interessada não apenas em acompanhar o ambiente onde os exames eram realizados. Isto é, o laboratório de cateterismo cardíaco, mas também um lugar onde fosse possível observar o trabalho de jovens médicos que estão no processo de aprendizagem da leitura desse tipo de imagem.
“Pude perceber como é que se dá o relacionamento desses jovens médicos com outros mais experientes, com mais tempo de prática na leitura das imagens produzidas pelo cateterismo”. Rosana revela que procurou aperfeiçoar o estudo da etnografia de laboratório, metodologia ainda pouco desenvolvida e explorada no Brasil. Além disso, ela explica que queria trabalhar com um grupo de cientistas-pesquisadores acostumados com esse tipo de estudo de campo e de observação. Os médicos do hospital reuniam-se uma vez por semana para discutir as imagens produzidas pelo laboratório de cateterismo estudado. Os jovens médicos, cirurgiões, cardiologistas, juntamente com técnicos de raios-X, técnicos em informática e enfermeiros, entre outros especialistas, se reuniam para observar e discutir as imagens produzidas pelo cateterismo. Tais imagens traziam, de certo modo, alguma peculiaridade ou porque eram casos atípicos ou porque configuravam casos freqüentes ou casos que poderiam gerar dúvidas com relação a diagnósticos e prognósticos apontados pelos médicos responsáveis pelo caso em discussão.
O que Rosana buscava era exatamente identificar que tipo de divergência ocorria entre os médicos com relação à leitura e à interpretação das imagens. “Pude observar que em casos em que as obstruções coronarianas eram em torno de 90%, por isso mesmo bem visíveis, praticamente não havia divergência entre os profissionais do hospital”, explica. No caso de leitura de obstruções mínimas, menos de 40%, não havia necessidade de intervenção cirúrgica. No entanto, Rosana observou que eram as lesões intermediárias que geravam as principais divergências, em que o discurso dos médicos estudados dependia, entre outros fatores, de sua área de especialização. Por exemplo, se era um profissional com larga experiência que realizava cateterismo como ferramenta de intervenção para desobstruir a artéria (angioplastia), se fazia o exame somente para diagnóstico (cardiologia invasiva’), se era um clínico-geral.”.
Com isso, Rosana conclui que a interpretação das imagens parece estar ligada à posição social, à experiência e á formação acadêmica do médico. Como se não bastasse, essa interpretação está intimamente relacionada à posição do médico na hierarquia profissional e à reputação da instituição em que ele atua. O que esses médicos “vêem” é o que “aprenderam a ver” com base em compromissos, vínculos com determinadas tradições de pesquisa, adquiridos durante a formação acadêmica, na prática profissional com a instituição em que atuam, em suas áreas de especialização, e como integrantes de determinados mundos sociais”, avalia a pesquisadora.
Uma viagem no interior do corpo
Em medicina, sobretudo a partir do século 20, o conhecimento visual, as imagens e a tecnologia que as produz tornaram-se amplamente difundidas. A ciência médica contemporânea se encontra hoje, em grande parte, organizada em torno da produção e da interpretação de imagens. A partir dos anos 60, com a união entre os computadores e a tecnologia do raio-X descoberto por acaso em 1895 pelo físico alemão Wilhelm Conrad Roentgen (1845-1923) e incorporado à prática médica tem sido possível a criação de imagens das estruturas internas e das funções do corpo humano, que vêm se somar à habilidade do médico na obtenção de diagnósticos de determinadas doenças. De acordo com Rosana, com essas imagens os médicos podem evitar a cirurgia exploratória e visualizar os órgãos vitais em atividade, de forma a identificar bloqueios e detectar sinais de possíveis desordens futuras. E um desses extraordinários recursos da medicina é o cateterismo, embora existam outros meios mais sofisticados, como a cintilografia computadorizada. O cateterismo dá-se com a introdução de um cateter num canal ou num conduto natural do organismo (uretra, esôfago, trompa e vasos etc.) com objetivos terapêuticos. No caso do cateterismo cardíaco, o cateter é introduzido no paciente, conduzido até as artérias coronárias, possibilitando a visualização das artérias através de imagens de raios-X, captadas em filmes de 35 milímetros.