Literatura
Cazuza ou a cartilha das virtudes
Antonio Roberto Fava
Tese mostra como o escritor Viriato Corrêa transformou seu personagem, protagonista de livro homônimo publicado em 1938, em arquétipo do “cidadão dos novos tempos”
Um menino narra as amargas experiências escolares com um professor autoritário no minguado povoado onde nasceu, encravado no fundo do Maranhão, até os dias de colégio na capital, São Luiz. Esse o núcleo do livro Cazuza, do escritor maranhense Viriato Corrêa, objeto de dissertação de mestrado Literatura infantil, história e educação: Um estudo da obra de Viriato Corrêa , de Ana Elisa de Arruda Penteado, defendida na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp.
Analisando a relação entre literatura infantil, história e educação, a pesquisadora procura resgatar das páginas de Cazuza como estavam sendo discutidas questões como pátria, trabalho e educação, temas de grande relevância na construção da ideologia do Estado Nacional, que se pretendia arquitetar no momento em que a obra foi escrita. De acordo com Ana Elisa, Viriato Corrêa certamente pretendia, ao escrever sua obra máxima, ir além de um simples romance. Podendo ser visto como um livro de formação, o escritor planejava, com Cazuza, constituir “o cidadão dos novos tempos”. Além de escrever um belo romance, desejou denunciar práticas abomináveis de disciplina nos estabelecimentos de ensino da época. Como a prática do “bolo”, castigo por meio da palmatória.
Publicado pela primeira vez em 1938, em pleno regime do Estado Novo, logo após o golpe de 37, “o livro insere-se no amplo projeto empenhado em construir o Estado Nacional e o novo cidadão que a ele convinha. Um projeto que começou a ser esboçado nos primórdios da República”, explica Ana Elisa. O país passava por um processo de modernização equipando-se para ingressar numa nova era do desenvolvimento do capitalismo e a educação era, obviamente, um eficiente instrumento de controle social e de consolidação de um regime autoritário, perpetrado por Getúlio Vargas.
Jornalista, contista, romancista, teatrólogo, dramaturgo, autor de uma série de livros infanto-juvenis, Viriato Corrêa foi ainda professor de história do teatro, de história e geografia no ensino público e membro da Academia Brasileira de Letras. A pesquisadora diz que, com Cazuza, o escritor faz uma crítica à escola do início do século, que ainda conservava o ranço do Império. Quer dizer, os alunos, em classe, apenas ouviam a voz do professor, principalmente nos estabelecimentos de vilarejos, espalhados pelas cidades do interior. “O professor constituía a única pessoa na sala com o poder absoluto da palavra. Só ele falava e as crianças apenas ouviam e copiavam as lições, no mais completo silêncio. Se porventura respondessem de forma errada, os alunos apanhavam”, revela o livro.
O cotidiano de uma sala de aula da escola de primeiras letras, no povoado, era como uma prisão: “qualquer movimento, qualquer olhar de esguelha, qualquer cochicho era motivo para que a criança fosse punida freqüentemente com castigos físicos. O vilão da história de Cazuza era o professor João Ricardo, criatura de cara amarrada, intratável e feroz”, que costumava segurar os alunos pelas orelhas e fazer vibrar a régua em suas cabeças. “O professor passeava pela sala de mãos para trás, vigiando-os através dos óculos pretos, com ar terrível de quem está com vontade de encontrar um pretexto para castigar”, conta o personagem Cazuza. As crianças ofereciam as mãos para que o professor batesse nelas com a palmatória.
Certa vez Cazuza levou tanto “bolo” do professor que suas mãos ficaram inchadas e sangrando; isso revoltou seus pais, que decidiram tirá-lo da escola do povoado. “A questão do ‘bolo’ e a precariedade da escola do povoado, assim como a hostilidade do professor, retratam um quadro negro da educação no País do final do século 19”, observa Ana Elisa. É nesse contexto político e ideológico que o livro Cazuza é elaborado. Destinada às crianças, a obra traz, num tom fortemente didático, questões que envolvem a moral, o enaltecimento de virtudes que devem a todo custo ser seguidas. “Como a tolerância, a generosidade, a obediência, o respeito e a piedade, assim como o repúdio aos vícios a mentira, a soberba, o autoritarismo a exaltação do amor à família, célula a ser mantida, pois é no seu seio que se inicia a formação do cidadão, posteriormente lapidado pela escola”, acredita Ana Elisa.
TRECHO
"Cada par copiava um mesmo trecho de prosa e vencia o aluno que apresentasse a letra mais bonita. O prêmio que se lhe dava era meter-lhe na mão a palmatória para que castigasse o vencido com uma dúzia de “bolos”. O professor chamou o meu nome e o nome do Doca. Aproximamo-nos da grande mesa. Eu tremia. Durante três minutos o velho examinou e comparou as duas escritas. Depois disse:
As duas letras são bem parecidas. Não se pode dizer que uma seja melhor do que a outra. Ambas são boas.
E lançou o julgamento:
“Empate”.
Respirei livremente.
O professor entregou-me a palmatória.
“Para que isso?”, perguntei.
“Para que há de ser?”, disse-me. Os dois não empataram?”. Você dá seis ‘bolos’ nele, e ele lhe dá seis ‘bolos’”.
Achei aquilo um disparate. Olhei o velho com surpresa.
“Que é que você está olhando?”, roncou ele asperamente.
A minha língua travou.
“Não posso compreender isso!, exclamei. Por que houve empate? Porque o Doca tem letra boa e eu tenho letra boa. Então quem tem letra boa apanha?”
João Ricardo ergueu-se da cadeira com um berro.
“Não quero novidades! Sempre e sempre foi assim. Atrevido! Quem é aqui o professor?
E entregou a palmatória ao Doca.