A polêmica criada em torno do uso de contraceptivos hormonais com o objetivo de suprimir a menstruação é o tema da dissertação de mestrado da antropóloga Daniela Tonelli Manica, defendida recentemente junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. No trabalho, a autora procurou analisar a maneira como ginecologistas e laboratórios farmacêuticos tratam a questão. Conforme Daniela, os argumentos contrários e favoráveis ao método normalmente baseiam-se nos conceitos de natureza e cultura, o que, na sua opinião, não são suficientes para explicar a relação da mulher com seu próprio corpo e com as inovações proporcionadas por uma sociedade cada vez mais tecnológica.
De acordo com Daniela, a supressão da menstruação já era possível desde o advento da pílula, nos anos 1960. Em virtude da polêmica gerada na oportunidade, porém, os laboratórios decidiram "naturalizar" o medicamento para que ele fosse mais bem aceito, ou seja, fizeram com que não tivesse a função de estancar o sangramento. Quase quatro décadas mais tarde, em 1999, contraceptivos hormonais com a proposta de livrar a mulher do que seria um incômodo mensal passaram a ser mais amplamente divulgados e comercializados. Daniela analisou os folhetos de divulgação desses novos contraceptivos, elaborados por laboratórios farmacêuticos.
Neles, conforme a antropóloga, textos e imagens associam a supressão da menstruação a mais uma das necessidades da mulher moderna. Personagens bem-sucedidas profissionalmente, ao lado de passaporte, telefone celular e laptop, apresentam os novos métodos como a solução de um problema. "Se considerássemos a dicotomia natureza x cultura, essa mulher estaria muito mais associada ao mundo da cultura", explica Daniela. Uma parcela dos médicos tem, inclusive, se utilizado do conceito de cultura para explicar a ocorrência dos sangramentos mensais, argumentando que a menstruação não é um fenômeno natural. A mulher, defendem, nasceu para parir uma vez ao ano. Sendo assim, jamais sangraria mensalmente. Como dar à luz todo ano está fora de cogitação, pois isso colide com uma série de exigências da vida moderna, as mulheres lançaram mão de métodos para controlar a reprodução, o que teria, segundo eles, resultado na menstruação.
"A supressão do sangramento obedece à lógica que coloca a natureza em uma posição hierárquica superior, pois ao evitar os sangramentos mensais, as mulheres estariam reproduzindo o estado de natureza [gravidez e amamentação contínuas]", esclarece a autora da dissertação. A tese a favor da supressão da menstruação é reforçada por meio do apelo à saúde feminina. Além de não ser natural, afirma esse segmento, é uma potencial causadora de doenças. É o caso da endometriose, enfermidade que acomete o endométrio, mucosa que forra o interior da cavidade uterina. Já a corrente contrária a esse pensamento considera o sangramento mensal natural. E tudo o que é natural, sustentam seus defensores, é melhor ou "mais seguro" do que o artificial.
A antropóloga também acompanhou as discussões travadas pelos especialistas no 49º Congresso Brasileiro de Ginecologia e Obstetrícia. Seu objetivo foi entender melhor a questão do mercado e da legitimidade científica. Entre a classe médica, diz, os debates restringem-se aos benefícios e riscos dos métodos contraceptivos, não avançando tanto nessa discussão natureza x cultura, embora fique claro que a narrativa científica em favor e contra a supressão da menstruação coincide com o surgimento dos novos contraceptivos hormonais no Brasil.
Daniela conclui a dissertação procurando mostrar que os conceitos de natureza e cultura não são suficientes para explicar o ser humano contemporâneo. "Nossa relação com a tecnologia é cotidiana e envolve uma série de situações, o que exige outras possibilidades conceituais. É preciso entender melhor, por exemplo, como produzimos e incorporamos essas inovações", explica. A polarização entre cultura e natureza, sustenta, não tem, no caso estudado, somente a intenção de explicar fenômenos, mas também de convencer pessoas, seja a favor ou contra essas novas tecnologias.