Reforma: consultores legislativos
dizem para onde devem se inclinar os parlamentares
O que o Congresso
vai decidir sobre a Previdência?
EUSTÁQUIO GOMES
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Cinco anos depois da última reforma previdenciária, que impôs regras de transição e dilatou o prazo para a concessão de novas aposentadorias, o governo federal promete enviar até maio ao Congresso um novo projeto de reforma que tem em mira sobretudo os servidores públicos.
Embora esse projeto ainda não exista - ele deve passar, antes, pelo recém-criado Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social - alguns de seus pontos gerais já foram delineados. O governo gostaria, por exemplo, de fixar novas regras de transição para os servidores públicos - esticando a idade mínima para 60 anos ou criando um fator previdenciário que leve o servidor a se aposentar mais tarde -, criar um teto constitucional para as aposentadorias e estabelecer uma contribuição para os inativos, entre outras medidas.
Saber como reagirão os 513 deputados federais e os 81 senadores é, sobretudo neste início de governo, um exercício de especulação. Os consultores legislativos Flávio Freitas de Faria e Gilberto Guerzoni, respectivamente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, ambos especialistas em direito administrativo com ênfase na Previdência, são profissionais que, no Congresso, têm a função de orientar os parlamentares em matéria constitucional e jurídica. Eles são talvez o termômetro mais acurado para especular sobre o que farão os parlamentares diante dos pontos mais polêmicos dessa reforma que tanto preocupa o setor público e em particular as universidades.
Que receptividade terá no Congresso um novo projeto de reforma da Previdência?
Faria - Na Câmara, é preciso considerar primeiramente que houve uma razoável renovação. Os parlamentares que entraram sequer tiveram tempo de absorver a idéia da reforma e de expressar sua opinão a respeito. Qualquer opinião é portanto muito precária. Outra coisa a levar em conta é que, formalmente, a base parlamentar do governo continua não tendo número suficiente para aprovar uma emenda - o que exige dois terços dos votos - apesar das negociações com o PMDB para chegar a essa maioria. Então o grau de aceitabilidade vai depender de fatores assim.
Guerzoni - Dá para sentir que o governo tem tido uma receptividade grande de suas idéias no Congresso. Há uma certa lua de mel. Mas isto acontece sempre nesta fase em que as idéias ainda estão um pouco soltas. Certamente, quando o governo diz que é preciso ajustar o sistema, nesse grau de generalidades a concordância é ampla. Porém, na hora em que o governo escrever no papel o que ele quer exatamente, dizendo qual será a idade mínima, que a pensão que hoje é de 100% passará a ser de 70%, que haverá contribuição dos inativos, aí nós vamos ter um posicionamento mais claro dos parlamentares.
O governo pretende consolidar seu projeto até maio e aprová-lo no Congresso ainda no primeiro semestre de 2003. Isso é possível?
Faria - Eu acho difícil. É claro que um governo que entra sempre tem um cacife muito grande, mas para tirar proveito desse momento forte o projeto deveria ser encaminhado hoje mesmo. Enviando em maio ou junho, o governo estará consumindo o seu tempo mais precioso em termos de força política. Então aí já há uma dificuldade. É verdade que o governo Fernando Henrique Cardoso aprovou algumas emendas constitucionais com extrema rapidez em seu primeiro período, mas eram emendas constitucionais referentes a quebras de monopólio, polêmicas do ponto de vista político mas estruturalmente muito simples. Era dizer sim ou não. Qualquer emenda da Previdência é mais complexa, tem uma multiplicidade de aspectos e atinge grupos diferentes de maneiras diferentes. Basta ver que a emenda constitucional anterior sobre a Previdência, a emenda 20, teve uma tramitação bastante demorada. Sinceramente, eu não vejo que esta seja uma matéria de tão rápida tramitação.
Guerzoni - Já houve alguns precedentes de aprovação rápida de emendas da Constituição, mas normalmente é um processo bastante lento e o tema da Previdência é muito complexo. Eu acho que o governo está excessivamente otimista. Penso mesmo que ele terá dificuldade até de apresentar uma proposta em maio, se de fato pretende que essa proposta tenha um certo consenso. Não acredito que uma coisa dessas tramite em menos de um ano. Acho muito pouco provável e na verdade não é necessário, exceto como demonstração para o mercado. Do ponto de vista das contas públicas não há essa pressa, primeiro porque o problema previdenciário não se resolve em um, dois ou três exercícios, mas em 20, 30 ou 40 anos. Então, do ponto de vista do efeito sobre as contas públicas, aprovar hoje ou daqui a seis meses ou um ano não faz muita diferença.
O governo a princípio pretendeu unificar os sistemas de previdência, mas os governadores resistiram diante do alto custo de transição. Em sua opinião, a unificação dos regimes está descartada?
Faria - Eu acho que se o governo enveredar por esse lado ele vai ter muitíssima dificuldade. Vamos dizer, se o governo centrar seus esforços na idéia de unificação existe uma grande chance de ele não conseguir absolutamente nada. Além disso, a tentativa de unificação é a meu ver pouco produtiva porque teria que respeitar um critério de proporcionalidade com a complicação de ter que gerenciar uma queda sensível no nível da arrecadação (já que a nova contribuição terá que ser coerente com o teto da Previdência), além da obrigatoriedade do recolhimento patronal de 20%. Isso inviabilizaria num curto prazo todos os Estados, que ficariam ilegais perante a lei de responsabilidade fiscal. Eu penso que a unificação ocorrerá, mas a longo prazo.
Guerzoni - Os governadores já disseram que não têm condições financeiras de arcar com o custo de transição em direção a um regime unificado. Então, para esses servidores, o que provavelmente vai ocorrer, e eu acho que talvez seja a melhor solução, é um ajuste nos limites de idade e nas regras hoje existentes.
Você acha que o aumento da idade mínima também para os servidores em atividade será mesmo o eixo da reforma?
Guerzoni - Eu acredito que sim, já que os limites de idade da transição atual (53 anos para homem e 48 anos para mulher) vêm sendo considerados baixos, ainda que tenham sido um ajuste duro. Realmente receio que as pessoas que ainda não estão em condição de se aposentar sofrerão outro baque com essa reforma. É por isso que eu pessoalmente acho que esse aumento da idade não deve vir de uma vez só, ainda que isso fosse melhor do ponto de vista das contas públicas. Do ponto de vista dos direitos o ideal é que nós tenhamos um critério progressivo, por exemplo: a cada dois anos que falta, aumenta-se um ano no limite. Este "dois para um" é uma especulação, pode ser qualquer outro critério. De todo modo, eu acho que haveria resistência no Congresso a qualquer coisa muito radical, que desconsidere os direitos e o processo de aquisição. A questão da idade certamente será objeto de destaque e de muita discussão.
E quanto aos que já reúnem condições para a aposentadoria (tempo de serviço mais idade mínima): os senhores acham que estes podem ficar tranqüilos?
Guerzoni - Indiscutivelmente. Quanto a esses a jurisprudência é tranqüila. Os servidores nessas condições podem, se quiserem, aposentar-se pela regra da data em que adquiriram direito à aposentadoria. No que concerne aos parlamentares, não vejo ninguém disposto a abrir mão disso. E mesmo que tentassem mudar essa regra, o Supremo [Tribunal Federal] derrubaria. Eu acho que isto é absolutamente pacífico: tanto aqueles servidores que já estão aposentados quanto aqueles que já adquiriram direito mas não se aposentaram estão em igualdade de condições - tanto para a integralidade quanto para a proporcionalidade.
Nem mesmo no Supremo há consenso sobre o princípio de direito adquirido. O ministro Marco Aurélio Mello, por exemplo, entende que o direito à aposentaria dos servidores públicos é adquirido desde o ingresso na carreira, enquanto que o ministro Carlos Velloso defende a tese de que, antes do prazo decorrido, existe apenas expectativa de direito. Qual tese deve prevalecer no Congresso?
Guerzoni - Penso que a tese do ministro Marco Aurélio não é majoritária nem mesmo dentro do Supremo, não é? Creio que a tese que deve vigir no Senado é a de que o direito adquirido é aquele que a pessoa já pode exercer, é a visão clássica dessa questão. É bom lembrar que a emenda 20 [de 1998] modificou o regime de aposentadoria e o Supremo absolutamente não derrubou nada. Agora, eu entendo também que se o direito do processo de aquisição tender a ser desrespeitado de forma irrazoável, haverá uma resistência jurídica no Supremo e uma resistência política no Congresso.
Faria - Veja, acho que tem uma graduação aí. Quem já está aposentado ou já reuniu condições para se aposentar, este é intocável. A questão é sobre quem está na ativa: sobre este receio que não prevaleça no Congresso o conceito do direito adquirido. Prova é que no passado já foram feitas mudanças para estes, o pedágio, a exigência da idade mínima; portanto, para nós que estamos em atividade, eu acho que poderão ser feitas algumas mudanças, claro que tudo dentro de uma certa razoabilidade. Naquela época foram mudanças no sentido de acrescentar exigências para que você tivesse aquele mesmo regime de aposentadoria que lhe estava prometido. O que me parece difícil é interferir no tipo de regime que estava prometido ao servidor para quando ele se aposentar. Isto sim eu penso que vai ser muito difícil deixar de ser considerado um direito adquirido. Já acrescentar ou modificar exigências para que o direito venha a ser implementado, acho que as demonstrações anteriores até antecipam o que deve prevalecer.
Guerzoni - Acho pouco provável que prevaleça a tese do ministro Marco Aurélio. Lembro que quando se iniciou essa discussão da extensão do regime complementar aos atuais servidores, o ministro entendia que só mediante prévia e expressa autorização o servidor em atividade pode ser incluído em tal regime. Eu acho que nem essa tese teria maioria no Supremo e mesmo no Congresso. Essa questão acabou ficando um pouco prejudicada e parece até que o governo a abandonou pelo custo imediato do processo de transição, mas eu não acredito que no Congresso se entenda que aqueles limites de idade da emenda 20 se constituam em direito adquirido ou que não devam ser mexidos. Quando se aprovou a emenda 20 se sabia que aquilo não teria uma vida muito longa.
Mas no artigo 60, parágrafo 4, a Constituição proíbe emenda constitucional que venha a abolir direito e garantia individual, a chamada cláusula pétrea. Saulo Ramos chamou a atenção para isso num artigo recente em O Globo. O artigo 60 terá de ser alterado para que haja quebra de direitos?
Faria - Não, o artigo 60 não deve ser alterado e acho que Saulo Ramos exagerou. Penso que o artigo dele não condiz com o que tem sido a interpretação do Supremo. É uma opinião dele e vamos dizer agora que como advogado militante, como tantos outros advogados militantes, ele tem o direito de publicar artigos até como um instrumento para causas de seu interesse. Francamente, eu não vejo, não só eu como colegas com quem tenho conversado, que o artigo 60 determine um absoluto imobilismo, que não se possa mexer em regras e tanto isso não é verdade que várias coisas já foram mexidas. Por que é não prosperou nenhum ato jurídico que derrubasse o pedágio? O pedágio nitidamente interferiu com quem já estava no sistema, então vamos dizer que pela tese do Saulo Ramos isso não poderia acontecer, só que aconteceu e permanece.
Guerzoni - Não creio que seja necessário mudar o artigo 60. Na verdade é discutível se você pode mudar o próprio artigo 60. Portugal tinha cláusulas pétreas também, e quando eles quiseram mudar cláusulas pétreas eles mudaram primeiro o dispositivo que fixava as cláusulas pétreas e depois as próprias. Foi a chamada dupla reforma, que é uma tese que foi vitoriosa lá mas que no Brasil acho muito pouco provável. Mas o que o artigo 60 coloca é que os direitos e garantias individuais não podem ser abolidos, ou seja, o direito adquirido, que é um dos direitos de garantias individuais assegurados no artigo 5º, não pode ser abolido nem sequer em tese... Ou seja, não se poderia fazer uma emenda constitucional dizendo que os atuais aposentados não têm mais direito à aposentadoria que eles recebem, porque aí é um direito adquirido, ou dizer que aqueles que não requereram aposentadoria, tendo direito a ela, não poderão obtê-la.
Em sua opinião, os partidos vão fechar questão nas votações da reforma ou os parlamentares vão votar de acordo com sua consciência?
Faria - Historicamente, dois partidos votam de forma bastante coesa, o que lhes dá um certa força de conjunto: o PT e o PFL. Esses dois partidos, por tradição e estrutura, têm conseguido manter sua unidade. Quanto aos demais partidos, creio que seus parlamentares votarão segundo critérios individuais.
Guerzoni - Talvez com exceção do PT, não vejo os grandes partidos (PMDB, PFL e mesmo PSDB) fechando questão em torno de um assunto que dificilmente vai ter consenso dentro da própria agremiação.
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Colaborou Dulcinea B. Souza
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