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Mestres em cidadania
Nas classes da Unicamp eles são alunos; no mundo do voluntariado, professores
MANUEL ALVES FILHO
ANTONIO ROBERTO FAVA
RAQUEL DO CARMO SANTOS
Para Josefa Maria da Silva, juntar letrinhas, compor palavras e frases e depois ler o que foi escrito nunca passou de um sonho. Aos 77 anos, mãe de sete filhos, esta alagoana de Palmeiras dos Índios está prestes a transformar o que antes era uma idéia vã em realidade. Dona Josefa integra o grupo de alunos que freqüenta os cursinhos de alfabetização ministrados por alunos da Unicamp. "Dentro de pouco tempo, quero mandar cartas para parentes e amigos, coisa que eu sempre quis e nunca consegui", afirma ela, com o entusiasmo próprio daqueles que tomam gosto pelas descobertas.
O esforço para apresentar dona Josefa e seus colegas de classe ao maravilhoso mundo da escrita e da leitura é uma das muitas ações voluntárias executadas pelos estudantes da Universidade junto à comunidade. Os trabalhos vão da oficina de artes plásticas junto a crianças carentes ao compartilhamento de experiências de organização rural com pequenos produtores agrícolas. Todos, porém, convergem para um mesmo objetivo: a promoção da cidadania.
As atividades desenvolvidas por calouros e veteranos têm um largo alcance social, como reconhecem os beneficiários e os próprios voluntários. Seria difícil, porém, traduzi-las em números frios e exatos. Uma das razões dessa dificuldade está na gênese do trabalho. Por não exigir qualquer tipo de gratificação, além da satisfação por estar contribuindo para a criação de uma sociedade menos desigual, os estudantes normalmente não fazem marketing de suas ações. Alguns calculam que existam, hoje, cerca de 20 grupos atuando nas mais diversas áreas. "Mas esse número pode ser maior, uma vez que alguns grupos sequer se conhecem", afirma o professor Sandro Tonso, do Centro Superior de Educação Tecnológica (Ceset), que tem coordenado várias atividades de extensão comunitária.
Tonso destaca que já são dados passos importantes para melhor interação entre as equipes. Em 2002, um Congresso de Extensão possibilitou aos "agentes comunitários" trocar experiências. Além disso, o Diretório Central dos Estudantes (DCE) promove periodicamente reuniões entre os grupos. "O esforço é para sistematizar as ações. Acredito que as discussões estão amadurecendo", opina.
Os ganhos proporcionados são amplos e significativos. "Ganha o público alvo do trabalho, porque passa a ter o seu universo de conhecimento ampliado. Ganham os alunos, que alcançam uma formação que não encontrariam normalmente nas disciplinas formais. Por fim, ganha a cidadania, pois fica estabelecido um diálogo rico entre culturas diferentes, que são a popular e a científica", analisa o professor.
Sandro Tonso considera que instituições como a Unicamp são muito competentes na produção de conhecimento, mas que o mesmo ainda não ocorre quando se trata da produção em parceria com a sociedade. "Uma parte importante do saber nasce dessa interação", diz. As atividades comunitárias dos estudantes não implicam em nota, mas podem resultar em créditos acadêmicos e, em alguns casos, em concessão de bolsas. "Mas existe um movimento nacional em favor da flexibilização curricular para incluir a disciplina Trabalho Comunitário na grade da graduação", informa.
Personagens
"Nas primeiras aulas, eu não sabia nada de nada. Hoje já sei ler um monte de coisas e também escrever", lembra dona Josefa, uma espécie de "mascote" do Movimento Abrindo Portas (MAP). Mulher risonha e extrovertida, já lê livrinhos de histórias infantis "desde que não sejam muito grossos". Até os 10 anos, as interrupções nos estudos eram freqüentes. "Entrava e saía", conta. Por um longo tempo, dona Josefa nunca mais pisou numa escola, até que há três anos retomou o antigo sonho e começou a freqüentar o MAP. "O que eu não aprecio muito é que eles [os professores] dão coisas que às vezes a gente não quer saber; coisas que acontecem no estrangeiro. Prefiro ler coisas que falem do nosso país", diz.
Dona Josefa admite que os serviços domésticos tomam quase todo o seu tempo, mas quando pode pega lápis e papel e tenta, com gestos lentos e infantis, desenvolver uma pequena redação, que ela chama de "história". Num caderno de lição de casa, escreveu: "Os outros pássaros vieram em bandos e tentaram socorrê-lo, mas não puderam fazer nada, lamentaram a perda da mais bela música até então ouvida. Agora, quando a floresta está triste, todos sabem que é porque iurutaiú está cantando". Tal pássaro que não existe. Mas está lá na sua imaginação, que agora já expressa por meio da escrita.
Ponto-e-vírgula
Maria Ribeiro de Oliveira, 70 anos, mãe de cinco filhos, residiu em Rio Branco, no Acre. Aos 10 anos, freqüentou a escola por curto período e, aos 58, fez novas incursões, mas depois nunca mais tocou num lápis. Bem articulada e boa de prosa, dona Maria voltou a estudar por sugestão de dona Josefa, quando fazia ginástica no salão da Igreja de Santana. Comprou lápis, caderno, caneta e borracha e, dias depois, lá estava a dona-de-casa na carteira, pronta para aprender.
Dona Maria agora se diverte lendo placas com nomes de ruas, rótulos de embalagens e títulos de reportagens de jornais. Mas gosta mesmo é de história do Brasil e até possui alguns livros sobre o assunto. Prefere ler porque escrever não é o seu forte. "Meu problema mesmo é a pontuação: nunca sei quando devo pôr vírgula, ponto-e-vírgula ou dois pontos. Só sei do ponto final", confessa.
O sagrado
Sobre a mesa da casa de Helena Conceição Castilho Tonello, a Bíblia Sagrada. Ela gosta de ler as mensagens sagradas quando não está às voltas com a lida doméstica. Dá graças aos professores que lhe permitiram entender melhor o que diz o Livro Sagrado. Mas diz que tem boa cabeça para fazer contas. "Tenho até certa rapidez com as contas de somar e dividir. Agora, leitura e escrita não são coisas que me agradam muito, não". Quando escreve, sempre deixa faltar alguma letra. Outras vezes, fica na dúvida entre usar "s" ou "z". Detalhe quase insignificante para quem está concretizando um sonho escrito com "esse" maiúsculo.
Adultos aprendem mais que rudimentos da escrita
O Movimento Abrindo Portas (MAP), que atua no distrito de Barão Geraldo, onde a Universidade está localizada, é formado por estudantes das mais diversas áreas. Sua tarefa é alfabetizar jovens, adultos e idosos. Atualmente, mantém duas turmas: uma no período da manhã, no salão paroquial da Igreja de Santana; e outra à noite, na Moradia Estudantil. São 22 "aprendizes", com idade entre 15 e 83 anos.
Francisco Carneiro de Filippo, formado em economia pela Unicamp, é um dos doze professores do MAP. Segundo ele, a alfabetização dessas pessoas precisar ir além dos rudimentos da escrita e leitura. "Para alunos com esse perfil, constatamos que apenas conhecer as letras e formar palavras não corresponde às suas necessidades, nem às suas potencialidades como leitores, trabalhadores e cidadãos. Também temos que ajudar a desenvolver o espírito crítico e a capacidade de reflexão e de exposição de opiniões, de modo a estimulá-los a transformar o meio social em que vivem", afirma.
A alfabetização no MAP está fundamentada no método do educador Paulo Freire (1921-1997), cuja meta, além de ensinar a ler e escrever, é desenvolver uma visão crítica da sociedade a partir do uso de palavras e temas ligados à realidade do aluno. Nas classes há alunos de níveis diferentes. Existem os que já sabem ler e escrever, mas precisam melhorar a escrita ou ler com um pouco mais de velocidade. E os que estão no início do aprendizado, com os quais os professores trabalham menos a temática e mais o processo de alfabetização propriamente dito. "Procuramos evitar textos para decorar. Quando eles começam a associar as letras e formar sílabas, ao invés de treinarmos a escrita via ditado, preferimos usar as manchetes de jornais ou outras ferramentas do dia-a-dia, como a leitura de rótulos de embalagens", explica Filippo.
Cursinho - Lígia Lopes Gomes, estudante do 4º ano de Ciências Sociais, e Paulo Roberto Jansen, do 3º ano de Matemática, são os responsáveis pelo cursinho Vivência Educacional de Jovens e Adultos (Veja). Eles explicam que há autonomia por parte dos educadores em relação à técnica e aos métodos de ensino aplicados. "Cada professor tenta desenvolver seu método. É lógico que, antes de tudo, ele precisa conhecer bem a matéria que vai lecionar", explica Paulo Roberto.
"Outro ponto importante é gostar de dar aulas e ter habilidade para lidar com pessoas de diferentes níveis culturais e conhecimentos", acrescenta Lígia. As aulas do Veja também são inspiradas na metodologia de Paulo Freire. Atualmente são dez alunos, com idade entre 23 e 53 anos. Alguns pararam de estudar há cinco, outros há dez ou trinta anos, o que provoca considerável desnível de conhecimento, especialmente no conteúdo de português.
Lígia, que ensina inglês, conta que a sua turma começou com trinta alunos e esse número foi diminuindo. Motivo: devido às atividades profissionais ou domésticas, nem todos têm disposição para acompanhar as aulas. "A gente procura estimular a participação, tornando as aulas mais agradáveis. Os resultados têm sido bons", avalia Lígia.
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