Acervo do Ibope mostra
como era a vida nos velhos tempos
Na primeira de uma série de reportagens, algumas das preciosas opiniões dos cidadãos brasileiros, pinçadas dentre a infinidade de pesquisas que compõem o acervo doado pelo instituto à Unicamp
LUIZ SUGIMOTO
Há 60 anos, quando uma família paulistana de classe média acordava, pairava logo na casa o aroma do café Jardim, enquanto se punha a mesa com o pão francês, a manteiga Aviação, o açúcar União e a marmelada Peixe. No banho, sabonete Gessy. Pasta de dentes, Kolynos. O pai lia O Estado de São Paulo, mas a mãe deixaria para mais tarde a revista O Cruzeiro, pois já devia pensar no almoço feito com óleo Salada e conferir se nada faltava para a limpeza - a cera Record, o saponáceo Radium, o sabão Pinheiro.
Se fosse um dia festivo, mãe e filha embelezavam-se ainda mais com pó-de-arroz Coty, rouge Royal Briar, baton Michel e esmalte Cutex. Para proteger a pele, creme Leite de Colônia ou Pond's. A água de colônia preferida era Valery; a loção, Quina Petróleo Sandar. Se as crianças estivessem fracas ou resfriadas, Biotônico Fontoura e xarope São João; se doía a cabeça, Cafiaspirina. E toda a preparação se dava ao som do rádio, com o dial girando entre Record e Bandeirantes.
Essas preferências foram detectadas na pesquisa sobre produtos de mercado dos meses de novembro e dezembro de 1942, que abre o acervo doado pelo Ibope (Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística) ao Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp. A partir daí, foram levantados milhares de itens de consumo: alimentícios, farmacêuticos, beleza e limpeza, vestuários feminino e masculino, eletrodomésticos, equipamentos residenciais e de trabalho, transportes, publicações, lazer etc. Através dos números do Ibope é possível relembrar, por exemplo, os lançamentos do aparelho de barbear descartável, da esferográfica, do zíper, da pílula anticoncepcional ou do receptor de televisão.
O acervo doado à Universidade em 1989 traz, na primeira parte, as pesquisas de opinião pública realizadas até 1973; uma segunda remessa, de 1999, encontra-se em fase de organização. Entre os volumes encadernados está a Coleção de Boletins das Classes Dirigentes, que transcende o mercado de consumo, enfocando temas como família, comportamento, política nacional e internacional, economia, saúde e educação.
Com a colaboração fundamental de Elaine Zanatta, Silvia Modena Martini e Maria Cimélia Garcia, todas da Seção de Pesquisa do AEL, o Jornal da Unicamp inicia esta série de reportagens para oferecer ao menos uma idéia de acervo tão extenso, selecionando, num passar de olhos e sem muito critério, temas que chamam a atenção nos primeiros dez anos de pesquisas do Ibope (1942 a 1952). São transcritos comentários do próprio Instituto acerca dos resultados, em que se fez a atualização ortográfica para facilitar a leitura, mas se preservou a construção dos textos para enaltecer o lúdico.
Primeira contestação aos números do Ibope
A pesquisa de audiência das rádios apontando índices médios de 24% para a Record e de 20% para a Bandeirantes, mencionada no texto de abertura, pelo visto motivou a primeira crítica aos números do Ibope, que responderia a outras dúvidas sobre metodologias de pesquisa no decorrer de sua história. O levantamento envolveu 10.403 visitas domiciliares em dezembro de 1942, com amostragem hora a hora, e nele apareciam as rádios São Paulo, Difusora e Tupi em 3º, 4º e 5º lugares, respectivamente.
O que motivou a acusação de falsidade nos números foi um programa de meia hora da Record, em que o Ibope encontrou 46,5% de ouvintes para o primeiro quarto de hora e somente 24,2% para o segundo. A explicação do instituto, em boletim de janeiro de 1943, era complicada e se baseava na migração de ouvintes adultos e infantis de uma rádio para outra no referido horário, e vice-serva.
Mais vale registrar o preâmbulo da resposta do Ibope, acusando a pouca estrutura e amadorismo em emissoras de rádio e admitindo "a mágoa com que encaramos a incompreensão ou ignorância daqueles que, por dever de ofício, ao invés de colaborarem com nosso trabalho, fizeram o possível para destruí-lo".
Exemplos de ignorância, para o instituto, eram que "Galileu foi condenado, a vacina hostilizada, o seguro de vida considerado imoral, os automóveis apedrejados". E se acrescentava: "Nossas pesquisas de rádio são uma espécie de exame de sangue para as estações. Apurada a existência do vírus infeccioso, nada lhes resta senão iniciar o tratamento. Entretanto, preferem ignorar a situação, como certas senhoras retrógradas que se recusam sempre a abrir e ler telegramas, pelo receio de que contenham uma notícia de morte".
SERVIÇO
Arquivo Edgard Leuenroth
Local: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Horário: das 9h às 17h
Período letivo: 2ª e 6ª feiras, das 9h às 17h; 3ª, 4ª e 5ª feiras, das 9h às 20h
Seção de Atendimento: 3788-1626. E-mail: ael-cpds@unicamp.br
- Sabonete
Gessy 30%
Lever 25.5%
Lifebuoy 11%
Palmolive 8%
Eucalol 5%
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- Xarope
São João 14%
Bromil 4%
Limão Bravo 4%
Bromofórmio 1.5%
Cognac Alcatrão Xavier 1.5%
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- Analgésico
Cafiaspirina 15.5%
Veranon 15.5%
Rhodine 14%
Fontol 8%
Melhoral 7%
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- Jornal
O Estado de SP 29.5
A Gazeta 17.5
Diário da Noite 8
Folha da Manhã 7.5
Diário de SP 6.5
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- Revista
O Cruzeiro 14
Carioca 8.5
Jornal das Moças 5.5
Life 4
Parati 4
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- Água de colônia
Valery 13%
Regina 5,5%
Royal Briar 4%
Coty 3,5%
Flamour 3,5%
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- Creme para pele
Leite de Colônia 12.5%
Pond's 9%
Rugol 7%
Elisabeth Arden 4%
Dagelle 1.5%
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- Óleo de cozinha
Salada 30
Yandara 18
Saúde 9
A Patrôa 8
Sublime 8
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- Manteiga
Aviação 36.5
Mococa 10.5
Viaduto 9
Vigor 6.5
União 6
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- Cera
Record 39
Parquetina 17
Clemant 8
Inca 5
Fidalga 4.5
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- AUDIÊNCIA DE RÁDIO
Record 24%
Bandeirantes 20%
São Paulo 14.2%
Difusora 12.8%
Tupi 10.3%
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Avaliação da programação de março de 1943
(...) De modo geral, as estações que melhoraram seus programas, ou antes, as estações que aproximaram seus programas do gosto médio do ouvinte, obtendo assim melhores colocações, foram Tupi, Cultura, Bandeirantes e São Paulo.
(...) A Tupi acertou com o gosto do público em certos programas que lhe virão a dar, com certeza, índices mais altos. A propósito, não é ocioso evidenciar "Manolita". Essa velhíssima valsa que no seu tempo fez grande sucesso, volta agora ao cartaz provocando verdadeiro furor.
A Bandeirantes, em 2º lugar na colocação geral, também apresentou melhora. Deve-se salientar que o principal responsável é o programa "Aquarela", com o maior índice que já apuramos desde junho de 1942 até esta data, ou seja, 70,6%.
Acusamos também um fato bastante agradável para muitos ouvintes de gosto apurado: a sensível decadência do programa "Saudade", que cedeu seu primeiro lugar a outros programas.
Na Excelsior, os dois programas básicos são ainda "Humilia" de Monsenhor Bastos e "Ave Maria" de Manoel Victor. Na São Paulo prosseguem, por evidência, os teatros.
Avaliação dos anúncios
No serviço "X", as alterações observadas se prendem, ora à falta dos produtos na praça, ora às condições econômicas excepcionais que atravessamos. A especulação e o açambarcamento atingiram ao auge, de sorte que o público principia a reagir aos preços, deixando de comprar o dispensável e até mesmo o indispensável, ou procurando marcas mais baratas.
Nota-se sensível irritação entre as donas de casa contra a carestia. Crêem que o comércio intermediário é quem se aproveita dos boatos para elevar os preços em proveito próprio. Os tabelamentos, de um modo geral, não são respeitados. E tal fato acontece porque o público não mantém necessário sangue frio para enfrentar com calma as manobras dos especuladores.
Vejamos um caso típico: o fio nichel-cromo, para resistências elétricas. Há dois anos que se diz estar esgotado o estoque desse material; seu consumo cresceu enormemente com a saída de aquecedores, fogareiros e fogões elétricos, no entanto, ainda aparece fio nichel-cromo na praça, aos dois e três quilos, mas a peso de ouro. Trata-se apenas de açambarcamento.
Assim acontece com o álcool, com o açúcar, com o sal. O público, já dissemos, principia reagir. Pelo menos foi o que observamos nas 500 visitas domiciliares que realizamos este mês.
A família idealizada
Pesquisa internacional realizada pelos filiados ao Instituto Gallup (Ibope, inclusive), em 1950, colocava o povo brasileiro entre os mais crentes em Deus, índice próximo aos 70%. Nem por isso a população via o casamento como um elo para o resto da vida, como pregava a maioria das religiões, pois a Lei do Divórcio, que Getúlio Vargas colocava em debate, tinha a aprovação de 68% dos entrevistados no Rio de Janeiro, então capital federal.
No lar, o casamento era uma instituição defendida ardorosamente. Na ausência do divórcio, casais iam ao Uruguai ou ao México regularizar juridicamente a separação, mas enfrentavam o preconceito quando voltavam, principalmente por parte das mulheres, casadas ou não: 53% delas, conforme pesquisa, se recusavam a manter relações sociais com quem optava pela nova situação conjugal.
O marido ideal para as solteiras seria aquele capaz de demonstrar compreensão, tolerância e carinho para com elas, dedicação aos filhos e bom nível cultural, sem deixar de observar o bom ordenado; as casadas já sacrificavam a inteligência e cultura por um companheiro mais presente e dedicado aos filhos. As mulheres, em geral, viam o marido brasileiro como bom, carinhoso, trabalhador e cumpridor dos deveres, embora algumas lhe atribuíssem adjetivos como "infiel", "volúvel" e "muito safado". Para os homens, a esposa ideal, além de compreensiva, tolerante e carinhosa, precisava ser boa administradora do lar.
Quanto aos filhos, eram aconselhados por um terço dos pais a namorar somente a partir dos 16 anos, havendo os mais severos que só o permitiam a partir dos 18 anos. Os pais, na média, tiveram os primeiros namorados com 16 anos (mulheres) e 17 anos (homens). Como profissão, o filho homem era incentivado a seguir a engenharia (22.2%), a medicina (16.7%) e a carreira militar (6.7%). A filha deveria ser dona de casa (31.7%) ou professora (25.2%).
Homicídio por amor
O povo carioca teve muitas oportunidades durante o ano de 1951 para reconsiderar as suas idéias sobre amor e casamento. Dois fatores sobretudo devem ter alertado as consciências dessa população para a existência do problema das obrigações conjugais: o projeto do deputado Nelson Carneiro, defendendo a introdução de mais um caso de anulação do casamento na nossa legislação; e a verdadeira onda de homicídios de maridos ou de mulheres por seus respectivos cônjuges.
(...) Com efeito não é sempre pelas razões de Otelo que um homem mata a sua mulher. Muitas vezes há mais cupido na história do que o pecado do mouro, e o homicídio nada mais é do que uma tentativa bárbara, reconheçamos de reorganizar uma vida fracassada ou evitar a frustração de um amor.
O Ibope considera que os dados apresentados a seguir revelam o que as normas jurídicas não podem revelar: o grau de aprovação ou de repúdio moral da população carioca a tais crimes passionais.
Não obstante o elevado índice de reprovação ao princípio de "justiça pessoal", não deixa de ser digno de nota o índice ainda muito representativo dos que admitem o uxoricídio [assassinato da mulher pelo próprio marido] por ciúme ou abandono do lar. Observe-se que os sentimentos femininos nem sempre são mais delicados do que os dos homens.
"Amar foi minha ruína"
Com as palavras do título começou sua entrevista aos repórteres cariocas, uma das muitas mulheres envolvidas durante o corrente ano em casos de homicídio por amor. O fato é muito significativo. Demonstra com bastante clareza a mentalidade novelesca da pessoa em questão. Esta simples observação conjugada à verificação de que são as mulheres que fornecem o maior contingente dos ouvintes de novelas radiofônicas, nas quais com freqüência indiscutível, o enredo amoroso está mesclado com incidentes criminosos (...) torna compreensíveis estes dados encontrados...
Tinturados pela imaginação do carioca com as cores dos melodramas novelescos, graças sobretudo aos artifícios sensacionalistas da imprensa, mas também em virtude de frases como a do título, estes casos de homicídio por amor foram capazes de arrastar às salas dos tribunais de júri uma multidão de curiosos que transformavam a emoção coletiva em apoteose do crime passional.
O que as classes dirigentes queriam saber dos cidadãos
Em 1950 o Ibope lançou os Boletins das Classes Dirigentes, publicação semanal com assinatura anual a 9 mil cruzeiros, em que o diretor responsável Auricélio Penteado e o diretor executivo Luiz Flávio de Faro atendiam a encomendas de pesquisas de opinião sobre temas que extrapolavam o mercado de consumo. As classes dirigentes queriam saber o que os cidadãos achavam, por exemplo, de aspectos da política, economia, saúde, transportes, matrimônio, sexualidade, racismo, guerra fria, novidades tecnológicas.
"Eu só queria poder sempre dar ao povo o que ele quer, a dificuldade está em saber o que o povo quer", é a frase do presidente Abraham Lincoln que ilustra o texto de apresentação dos Boletins. E ali se incluiu uma previsão do final do século 19, quando o jornalista americano James Bryce escreveu que a democracia daria um grande passo à frente se fosse possível "pesquisar-se com regularidade a vontade da maioria dos cidadãos". Somente no primeiro ano, o Ibope publicou 52 boletins, num total de 2 mil páginas com 367 pesquisas de opinião (198 nacionais e 169 estrangeiras).
Naquele início dos anos 1950, o Ibope fez um levantamento dos provérbios mais populares, que acabavam por caricaturar os tipos brasileiros: o conformado, para quem "devagar se vai ao longe" e "mais vale quem Deus ajuda do que quem cedo madruga"; o otimista, do "antes tarde do que nunca" e "quem quer vai, quem não quer manda"; e o pessimista, que "pretendia ter o que já gastei", "o pau rola, rola e vem quebrar na cabeça do pobre" e "no Brasil só se resolvem os problemas por gravidade". E ainda o brasileiro mal-humorado, que reagia à curiosidade do entrevistador do Ibope: "gente besta não tem o que fazer".
ARTIGO
Emergência cultural
O Jornal da Unicamp está publicando uma série de matérias sobre a Coleção Ibope. É um acervo riquíssimo para a realização de pesquisas variadas sobre história política e cultural do Brasil ao longo de toda a segunda metade do século 20. São milhares de pesquisas de opinião que acrescentam muito ao Arquivo Edgard Leuenroth e à própria Unicamp em sua missão de propiciar a produção do conhecimento.
É importante registrar que estivemos a ponto de perder grande parte deste acervo. Ele nos chegou em duas levas, a primeira em 1989. Depois, em 1999, quando o Ibope nos contatou para entregar a segunda remessa, o Arquivo Edgard Leuenroth vivia uma situação crítica, sem espaço para captar novos acervos, muito menos aquela quantidade de documentação.
Ocorre que o Ibope tinha pressa, era pegar ou largar. Historiadores e arquivistas não ficam inertes diante desses tesouros. Respondemos que estávamos prontos para receber o material e, fato consumado, restava correr atrás do espaço. A Reitoria se sensibilizou e, por dois anos, o acervo abarrotou 60 metros quadrados embaixo do Ginásio, até que se erguesse um depósito adequado e, agora, uma nova sede para o AEL, prestes a ser concluída.
Hoje, relembrando a tensão que passamos ao dar sinal verde ao Ibope, é obrigatório o agradecimento à equipe técnica do AEL, que trabalhou intensamente, e ao auxílio inestimável da Fapesp e do Cesop. Esforço bem pago com a felicidade de ver o material corretamente acondicionado, quase totalmente organizado, disponível para pesquisadores acadêmicos e imprensa.
Gostaria de ressaltar, porém, nesses nossos tempos tristes de eterna contenção de gastos e pudor de ousar, que a Unicamp conseguiu este acervo porque correu riscos, e porque houve sensibilidade da administração à época em acudir uma situação, por assim dizer, de "emergência cultural".
Sidney Chalhoub - Diretor do Arquivo Edgard Leuenroth
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