A demora no envio do projeto ao Congresso pelo governo tem alimentado boatos e cristalizado resistências, mas o clima ainda é de boa vontade para com a reforma. Há um consenso sobre a necessidade de se fazer as mudanças, sobretudo a da Previdência, embora não o haja quando se entra em detalhes. "Na verdade, parece um velho filme com roteiro novo", diz uma colunista política com livre trânsito nos gabinetes. "Lula já costurou a reforma com os governadores. O resto vai funcionar como moeda de troca".
O "resto", como sempre ocorre no caso de composições verticais, é um eufemismo para deixar fluir as propostas genéricas e consensuais, e negociar à exaustão os pontos mais agudos, sobretudo quando esses chegarem ao nível do detalhamento. O "resto" é, também, o exercício de especulação.
Jogo de adivinhação à parte, o certo é que o projeto enfrenta resistências - algumas veladas - no interior do próprio partido e da base governista. O deputado Walter Pinheiro (PT-BA) é uma dessas vozes dissonantes. Alinhado à esquerda do partido, o parlamentar baiano entende que a reforma tributária é, no momento, mais importante para o país que a da Previdência. "O combate à sonegação, as remessas de lucros para o Exterior e os ganhos ilegais que determinados setores vêm obtendo, inclusive com a chancela do Estado, são pontos mais importantes. Ajustar a carga tributária deveria ser a primeira meta do governo", disse ao Jornal da Unicamp.
Pelas contas de Pinheiro, as discussões sobre a reforma na Previdência incluindo aí as informações desencontradas - vêm causando "problemas sérios" na máquina estatal desde 1998. Dois problemas, de acordo com o parlamentar, saltam aos olhos. O primeiro deles é a "satanização" do servidor público, que tem sido apontado por alguns setores como o maior beneficiário da estrutura das aposentadorias. "Isso é uma falácia", queixa-se. "Na realidade, temos anomalias localizadas e pontuais. O Estado nunca teve coragem de comprar essa briga. Não é justo que o servidor pague a conta".
O outro problema diz respeito ao desestímulo que a reforma, tal como está colocada, pode vir a representar para as universidades. Pinheiro entende que a disseminação de boatos e a desinformação são ingredientes que vêm semeando "pânico, terror e medo" no setor, já sucateado no âmbito das universidades federais, em sua opinião. O deputado baiano argumenta que o Brasil está perdendo a oportunidade de ingressar pela porta da frente num mercado globalizado e cada vez mais competitivo. "Sem aplicação de conhecimento, sem pesquisa e sem universidade não há padrão tecnológico". Não lhe parece que as discussões sobre a reforma estejam contribuindo para reverter esse quadro.
Pinheiro defende um amplo debate sobre a reforma dentro de sua agremiação. De acordo com o deputado, muitos colegas petistas compartilham de sua opinião. Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho, é um deles. Embora cauteloso, o ex-presidente da Central Única dos Trabalhadores (CUT) deixa antever os problemas que uma mudança abrupta nas regras atuais causariam ao governo, eleito com o apoio maciço do serviço público e do sindicalismo de porta de fábrica. "Tudo aquilo que ferir os interesses do trabalhador será rejeitado", avisa.
Trabalhismo - A opinião de Vicentinho é endossada pelo deputado maranhense Neiva Moreira, líder do PDT na Câmara. Representante do velho trabalhismo brizolista, Neiva sabe que, na matemática das urnas feita na ponta do lápis, mexer com a base pode decretar a derrocada política. Ao ser instado a opinar sobre pontos polêmicos da reforma, Neiva alega que não se sente autorizado a falar por não conhecer o conteúdo do projeto - de resto, não sem razão, discurso comum da maioria dos deputados.
O parlamentar defende a reforma, sobretudo em pontos considerados "defasados", espera "uma legislação progressista, condizente com a história de Lula", mas bate na mesma tecla de Vicentinho: "Que todos saibam: não votaremos em nada que seja contra os interesses do trabalhador". Líder de um partido da base governista que conta com uma bancada de 17 deputados, Neiva intui como poucos que, na política, o tempo é um bem precioso - o deputado ingressa em sua sétima legislatura. Seu raciocínio segue uma lógica corrente nos corredores da Casa: sem projeto, o melhor a fazer é esperar para ver. Ou seja, as negociações prometem ser pesadas.
Jutahy Júnior (PSDB-BA), líder dos tucanos na Câmara, é enfático quanto à emissão de opiniões sobre a reforma. Pondera que tem "absoluta convicção da necessidade da reforma da Previdência", mas que não faz sentido falar sobre aquilo que não foi apresentado. "Detalharemos nossa posição a partir de propostas concretas. Não podemos fazer avaliação em hipótese." Na opinião do parlamentar, além de demorar para revelar suas intenções, o governo tem sido volúvel em suas posições, o que vem gerando uma "situação de insegurança" naqueles que precisam tomar um rumo na vida.
Concreto - A sensação de imobilismo que alguns evocam - o termo paralisia tem sido repetido por Jutahy - pôs em marcha alguns parlamentares com projeto próprio. O pernambucano Roberto Freire, por exemplo, líder da bancada do PPS, tirou da gaveta, a semana passada, a proposta do partido para o setor. Freire, também da base de sustentação do governo, mas com voz própria, adianta que o projeto do PPS tem poucos pontos em comum com os balões de ensaio lançados ao ar pelo Planalto. E aí está um problema, pois a Câmara terá que decidir a partir de qual base iniciará suas discussões.
"O principal ponto do nosso projeto é acabar com o sistema de repartição simples e criar um sistema de capitalização para o servidor público", revela Freire. Trocando em miúdos, o servidor prossegue contribuindo e o governo acrescenta a sua cota, formando um fundo que, em tese, seria capitalizado e garantiria a aposentadoria integral dos funcionários públicos. Na realidade, essa proposta já havia sido apresentada ao governo FHC pelo próprio Freire na década de 90, numa versão que foi agora aprimorada.
Não falta quem tenha soluções de outra ordem. O deputado José Aristodemo Pinotti, ex-reitor da Unicamp, chega a sugerir que os pontos polêmicos da reforma sejam decididos em plebiscito. O deputado lembra que vários países do mundo adotam essa modalidade de consulta. "Sempre fiz isso no Conselho Universitário (Consu) da Unicamp. Quando a pauta era extensa, os pontos comuns eram aprovados a toque de caixa. Já os polêmicos eram aprofundados por meio de amplas discussões". Segundo ele, é importante levar em conta a preservação da universidade. "O desenvolvimento está baseado na pesquisa científica, no desenvolvimento tecnológico e na educação. Que os companheiros da Unicamp não abandonem a universidade", apela, dando a entender que a reforma da Previdência precisa, de algum modo, levar isto em conta.