Faltando dez dias para o primeiro turno das eleições de 2006, o Centro de Políticas Sociais da Fundação Getúlio Vargas (FGV) anunciava que o período 2003-2005 registrou a maior queda do nível de pobreza no Brasil em dez anos. O estudo intitulado Miséria, desigualdade e estabilidade: O segundo Real foi baseado nos dados de 2005 da Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (Pnad) do IBGE. A notícia, repercutida pela mídia, virou destaque em vários sites de campanha política, como por exemplo, do Diretório Nacional do PT, do candidato a governador Olívio do Dutra e do candidato a deputado federal e ex-ministro da Fazenda Antonio Palocci.
Professor
não vê fatores
para salto de
8,28% na
renda total
De acordo com o estudo da FGV, a miséria, que atingia 28,2% da população brasileira em 2003, caiu de forma expressiva para 22,7% em 2005. O coordenador da pesquisa, Marcelo Néri, explicava esta redução da pobreza com fatores como o reajuste real do salário mínimo, a retomada da oferta de empregos, os programas de redistribuição de renda e a expansão dos gastos previdenciários. A comparação com o Plano Real, sugerida no título do estudo, deve-se ao fato de que, entre 1993 e 1995, o índice de miseráveis foi reduzido de 35,3% para 28,8%. Pelos cálculos de Néri, de 1993 para cá, o Brasil já atingiu a “meta do milênio” de reduzir a miséria à metade, o que estava previsto somente para 2015.
Os dados surpreendentes de 2005 levaram analistas a adotar o termo “Pnad chinesa”, em referência à potência emergente oriental onde 300 milhões de pessoas estão saindo da extrema pobreza. Contudo, embora esta Pnad efetivamente sustente tais análises, o professor Waldir José de Quadros, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, mantém um pé atrás. Aposentado como docente, mas em plena atividade como pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho (Cesit), ele esperou a passagem das eleições para apontar alguns índices que considera intrigantes.
A pesquisa de 2005 mostra um salto espantoso de 8,28% na renda total captada pela Pnad, quando o PIB cresceu apenas 2,28%. Se puxarmos os números dos anos anteriores, veremos sempre uma certa relação da renda total com a variação do PIB – a exemplo de 2004, quando a renda da Pnad aumentou 4,57% e o produto interno bruto, 4,94%. De onde sai esta renda que vai para as pessoas, se não for do PIB? Para mim, este aumento da renda de mais de 8% é difícil de entender, ao contrário do que ocorre na China, onde o PIB tem crescido 10% ano”, compara o professor.
Na opinião do pesquisador do Cesit, o governo pode ter tributado e transferido muita renda no ano passado, mas não nesta magnitude. “O ano de 2005 apresentou alguns efeitos positivos que explicariam em parte esta elevação na renda total, como o reajuste do salário mínimo de 8,5% acima da inflação, os dissídios coletivos – que nas categorias mais fortes resultaram em aumentos reais nos salários de 1,5%, 2% e até 2,5% –, o certo crescimento do número de postos de trabalho no mercado formal, além da pequena mas positiva evolução do PIB. Mas, a meu ver, é muito complicado explicar a magnitude do aumento da renda total por este conjunto de fatores. Francamente, eu não consigo entender”, argumenta.
Da mesma forma, chama a atenção de Waldir Quadros que a renda média do conjunto dos declarantes tenha crescido 5,16% em 2005, uma taxa totalmente fora do padrão dos últimos anos: + 0,57% em 2001, – 3,15% em 2002, – 7,40% em 2003 e + 0,83% em 2004. “Ocorre então a mesma pergunta: de onde vem isso?”, questiona.
O pesquisador lembra que a Pnad repercute em inúmeras análises do cenário social e econômico e, por isso, teme a possibilidade de alguma inconsistência na metodologia da pesquisa, embora o IBGE negue que tenha promovido qualquer mudança nesse sentido (leia texto na página). “Estes dados e o cenário que apontam caem como uma luva para aqueles que argumentam que o país não precisa crescer para reduzir a desigualdade, ou seja, o contrário do que apregoamos”.
Escala social – Waldir Quadros é autor de uma metodologia que permitiu retratar com clareza, por exemplo, o grande tombo que a classe média levou na escada social nestes últimos anos – tema de matérias recentes do Jornal da Unicamp. Em seus estudos, o pesquisador do Cesit constata uma redução da proporção de miseráveis no país ainda mais expressiva do que a anunciada pela FGV, e maior não apenas em relação ao Plano Real, mas também ao Plano Cruzado de 1986, o que contextualiza seu espanto com o cenário de 2005 num período de duas décadas.
“Esses números da Pnad refletem uma melhora nunca vista em relação à população miserável, maior do que aconteceu no Cruzado, quando houve o congelamento, a queda abrupta da inflação e um aumento da renda devido também a um abono de 8% no salário mínimo. Naquele período, em 1986, a renda média que era de 700 reais [cruzados convertidos e deflacionados] explodiu a 1.250, embora seja verdade que tudo tenha vindo abaixo depois”, assinala Waldir Quadros.
É este comportamento totalmente atípico que leva o professor a estranhar quadro e a se dispor, agora, a dissecar os dados da Pnad transportando-os para sua metodologia. “Vamos fazer todo o mapeamento que a Pnad permite, mas não sei se vou ter explicações para esse fantástico aumento de renda em 2005. De qualquer forma, vamos nos preparar para analisar a Pnad de 2006, quando foi maior o reajuste do salário mínimo e a inflação ficou baixa”.
IBGE nega mudanças na metodologia |
Não houve alterações na metodologia da Pesquisa Nacional de Amostragem por Domicílio (Pnad) de 2005, segundo a consultora Vanderli dos Santos Guerra, da Coordenação de Trabalho e Rendimento (Coren) – subordinada à Diretoria de Pesquisas do IBGE. Vanderli é uma das responsáveis pelo texto e pelas análises do documento sobre a Pnad disponibilizado no site do IBGE. Segundo o relatório, em 2005, o nível de inflação foi mais baixo do que no ano anterior e houve crescimento em segmentos importantes da economia, embora alguns fatores adversos tenham afetado o setor da agroindústria. Ainda de acordo com o documento, na distribuição das remunerações de trabalho, constatou-se crescimento real em todos os segmentos.
A Coren diz no relatório que um fator que influenciou positivamente na elevação dos rendimentos da faixa da metade inferior das distribuições dos rendimentos de todas as fontes de trabalho foi o aumento real de 9,9% no salário mínimo, segundo cálculo do órgão. O aumento um pouco maior nesta metade inferior provocou pequena queda na concentração das remunerações, contribuindo para a lenta tendência de declínio na concentração dos rendimentos. O documento atesta que embora a remuneração média real das pessoas com rendimento de trabalho, em 2005, tenha apresentado ganho real em relação à do anterior, ainda teve perda real de 15,1% em relação a esse rendimento de 1996, ano em que alcançou seu ponto máximo desde o início da década de 1990. |