Estas reflexões são o resultado de minha participação em
quatro experiências recentes de pesquisa e docência na área
de Tecnologia, Transformações Sociais e Meio Ambiente, do
Programa de Pós-Graduação em Política Científica e Tecnológica
do Instituto de Geociências da Unicamp, envolvendo cooperação
científica nacional e internacional. Um dos temas dessa
linha de pesquisa é a realização de trabalhos comparativos
no âmbito nacional e internacional, tratando de mapear e
entender arranjos institucionais inovadores, que apontem
para soluções democráticas que contribuam para viabilizar
formas de desenvolvimento social e econômico sustentáveis,
tanto para enfrentar o desafio da necessidade de redução
das desigualdades, como de preservar o meio ambiente.
Já ao criar o Instituto de Geociências, o professor Amílcar
Herrera (in memoriam) insistia na necessidade de trabalhar
para além das fronteiras disciplinares e integrar conhecimentos
para pensar não só o presente, mas também o futuro de nosso
planeta. Ao trabalharmos no projeto “Prospectiva Tecnológica
para a América Latina”, ele insistia em que para pensar
o futuro da humanidade era preciso trabalhar pensando em
períodos longos (de, no mínimo, 50 anos), o que era como
um segundo se pensássemos em termos dos tempos geológicos.
No ano em que nossa pós-graduação em PCT completa 20 anos
e nosso curso de Ciências da Terra, dez anos, sua presença
entre nós parece mais forte do que nunca para nos ajudar
a enfrentar os problemas de pulverização e falta de solidariedade,
provocados, entre outros fatores, pela difusão dos princípios
da chamada “produção enxuta” no processo de trabalho das
universidades e institutos de pesquisa. Essa tendência promove
o aprofundamento do movimento de especializações, não deixa
espaço para a reflexão e promove epidemias de doenças ocupacionais,
repetindo o processo que assistimos no interior das empresas
industriais.
Huber (1989)2, assim como Amílcar Herrera (1984)3, associa
os ciclos longos de Kondratiev-Schumpeter aos movimentos
sociais. Segundo os dois autores, esses movimentos são recorrentes
pelo menos há 200 anos. Huber mostra que eles cumprem um
papel central no processo de modernização, ainda que pretendam
ser contra-hegemônicos e antimodernos. Eles provocam a readaptação
do sistema industrial e econômico ao seu contexto social,
histórico e natural.
Trata-se de tentar responder a questão formulada por Alain
Touraine4: “Podemos viver juntos?”, isto é, “como escapar
do inquietante dilema entre um modelo uniforme de globalização,
que ignora a diversidade das culturas, e o isolamento das
comunidades, que se afirmam pela exclusão do outro”. Isto
envolve um esforço para recuperar as relações entre as mudanças
das práticas cotidianas e a construção de instituições econômicas
e sociais orientadas pela solidariedade que nos conduzam
a “um mundo, onde caibam muitos mundos”5, ou o que Boaventura
dos Santos chama de “reinventar a emancipação social”.
Para isso, é preciso superar todos os traços do que Bettelhein6
(1991:264) chamou de mentalidade de gueto, compreendendo
que “todos nós necessitamos expandir o nosso sentimento
de comunidade além do nosso próprio grupo ... não porque
todos os homens são essencialmente bons, mas porque a violência
é tão natural no homem, como sua tendência à ordem”. Para
o autor em The Informed Hearth7, para superar os riscos
e desafios de nosso tempo: “não mais podemos nos satisfazer
com uma vida em que o coração tem suas razões, que a razão
desconhece. Nossos corações precisam conhecer o mundo da
razão, e a razão precisa ser guiada por um coração informado”.
O projeto Globalização, estratégias gerenciais e respostas
operárias: um estudo comparativo da indústria de linha branca envolveu a participação de equipes em sete países: África
do Sul, Brasil, China, Coréia do Sul, Inglaterra, Taiwan
e Turquia. A pesquisa, utilizando a mesma metodologia (qualitativa
e quantitativa) foi realizada em plantas industriais de
cinco países. Em cada planta foram entrevistados cerca de
50 gerentes e 50 trabalhadores. No Brasil, trabalhamos com
três plantas e a equipe envolveu pesquisadores e estudantes
de graduação e pós-graduação de quatro instituições (IG
e IFCH/Unicamp, DEP/UFSCar e Facamp)8. Foi muito interessante
constatar as diferenças e semelhanças entre as experiências
de gerentes e trabalhadores das plantas estudadas (Turquia,
Taiwan, Coréia e Brasil) e a importância do modelo de relações
industriais e a força dos movimentos sociais em cada um
desses países para determinar as condições de vida e trabalho
nessas fábricas.
Já a cooperação com a Espanha e Argentina viabilizou não
só a realização da tese de doutorado de Alessandra Azevedo,
Autogestão e Competitividade. Um estudo Comparativo de Cooperativas
Brasileiras e do País Basco9, comparando a experiência de
plantas de Mondragón com a de empresas recuperadas pelos
trabalhadores a partir da década de 90 no Brasil, como também
uma dissertação de mestrado quase concluída comparando experiências
de inclusão de digital em diversas regiões10 e diversos
artigos11.
Já a pesquisa realizada no âmbito de um projeto Minter
em cooperação entre o Programa de Pós-Graduação em Política
Científica e Tecnológica IG/Unicamp e o Cefet/MT, com apoio
da Fapemat, que resultou na dissertação de mestrado Inclusão
social na Universidade: Experiências na
Unemat, de Iraci Aguiar Medeiros12, viabilizou minha imersão
no interior do Mato Grosso. O trabalho aborda de forma extremamente
criativa o tema da inclusão social na universidade por meio
da análise de experiências realizadas na Unemat, que apontam
para a democratização do acesso (inclusão de pessoas) e
também da inclusão de saberes no ensino superior, a partir
de demandas da sociedade e da articulação de redes heterogêneas
de atores, entre os quais se destacam os movimentos sociais
de professores, indígenas13 e do campo14.
O mapeamento destas redes revelou a mobilização e empenho
de professores de várias universidades do país, entre as
quais a própria Unicamp15, prefeituras, igreja, governo
estadual e federal, ONGs e diversos tipos de Associações
e formas de governança norteadas pela prática da democracia.
O foco foi a análise das experiências de Formação de Professores
Indígenas – 3º Grau Indígena e o Curso de Agronomia para
os Movimentos Sociais do Campo (Camosc) 16.
A pesquisa envolveu diversas entrevistas com atores-chave
e visita a escolas de aldeias indígenas. Esses projetos
estão não só alterando as formas tradicionais de se realizar
cursos de graduação, mas também as formas de se produzir
e socializar conhecimentos, aproximando a instituição das
necessidades e do cotidiano desses integrantes e suas comunidades.
Essas experiências utilizam a metodologia da alternância,
e os projetos de pesquisa dos alunos envolvem a solução
de problemas das comunidades, ou seja, a realização de pesquisa-ação,
o que implica a adoção de um modo de produção e socialização
do conhecimento, situadas num contexto de aplicação.
Nestas experiências, a pesquisa dos alunos parte da necessidade
de resolver problemas práticos ou de atender às demandas
econômicas ou sociais dos estudantes e de suas comunidades.
Essa articulação de saberes universitários e não-universitários
(tratados simetricamente) pode ter um grande poder transformador
da própria vida universitária. Dessa forma, a relação social entre a universidade e a
sociedade pode ser transformadora, não só no sentido da
busca da melhoria da qualidade de vida, mas de inovação
nas formas de produção do conhecimento. Na interação com
diferentes grupos sociais numa relação de mão-dupla e de
troca de saberes, há uma tendência a produzir e a socializar
conhecimentos novos que contribuam para a superação das
desigualdades sociais, temas centrais no debate atual sobre
o papel da universidade pública.
A pesquisa-ação e a ecologia de saberes transcendem a atividade
de extensão na universidade, uma vez que tanto atuam ao
nível desta, como ao nível da pesquisa e da formação. Para
Boaventura dos Santos (2004:75-81)17: “A pesquisa-ação consiste
na definição e execução participativa de projetos de pesquisa,
envolvendo as comunidades e organizações sociais populares
a braços com problemas cuja solução pode beneficiar dos
resultados da pesquisa. A ecologia dos saberes é um aprofundamento
da pesquisa-ação. É algo que implica uma revolução epistemológica no seio
da universidade”. Trata-se de uma abertura da universidade
de “fora para dentro”, de modo a promover o diálogo com
a multiplicidade de saberes produzidos na sociedade, os
saberes leigos, populares tradicionais, ou seja, “obrigar
o conhecimento científico a se confrontar com outros conhecimentos
para, assim, rebalancear aquilo que foi desequilibrado na
primeira modernidade, a relação entre ciência e prática
social”.
Em um contexto em que a experiência de cursos multidisciplinares
em ambientes culturalmente homogêneos já é complexa e difícil,
o caráter extremamente inovador das experiências analisadas
induziu a elaboração de um capítulo sobre a história da
constituição da Unemat, para poder entender o espaço obtido
por práticas que seriam praticamente inviáveis em universidades
mais tradicionais e consideradas “de ponta”.
Otávio Velho18 aponta a presença e a capacidade de articulação
das universidades e dos movimentos sociais, como propulsores
de mudanças que têm alterado significativamente a paisagem
social no interior do país. Segundo ele, isso vem ocorrendo
“porque cada vez mais – especialmente no caso das universidades
que, também elas, eram consideradas periféricas – a produção
do conhecimento mostra-se inseparável daquilo que se denomina
“extensão” universitária”. Para o autor, “essas universidades
tornam-se vanguarda neste processo, inclusive na crítica
à concepção de extensão e a sua posição marginal na vida
acadêmica”. Para ele, a extensão promove não só a articulação
genérica da vida universitária com a sociedade envolvente,
mas também de saberes universitários e não-universitários
tratados simetricamente, passando a ter um grande poder
transformador da própria vida universitária, ao que é possível
acrescentar das próprias formas de produção de conhecimento,
o que Boaventura do Santos chama de “ecologia de saberes”
e Edgar Morin da construção do paradigma da complexidade.
A América Latina em geral e o Brasil em particular, como
apontou Touraine (1989:16-17), em Palavra e Sangue,19 dada
por um lado por sua enorme heterogeneidade política, econômica,
social, cultural, étnica e religiosa20, e por outro, a grande
tentação do populismo, isto é, “o desejo de mudança dentro
da continuidade, sem as violentas rupturas que caracterizaram
a industrialização capitalista e socialista” é um campo
fértil para analisar as transformações em curso em nosso
planeta.
Trata-se de superar “as linhas cartográficas abissais que
separavam o Velho do Novo mundo na Era colonial” e que,
segundo Boaventura dos Santos (2007:71)21, “subsistem estruturalmente
no pensamento moderno ocidental e .... a injustiça global
estaria ... estritamente associada à injustiça cognitiva”,
produzindo, em nossas Universidades, o que ele chama de
cosmopolitismo subalterno.
Será que a nova revolução científica virá da “periferia”?