A maioria das mulheres, mesmo as que cresceram sob condições financeiras precárias,
lembram com carinho das bonecas que as acompanharam durante
a infância. Não raro o nome dessas bonecas é o mesmo. Uma,
porém, destaca-se nesse universo. De tão vendida e conhecida
mundo afora, Barbie é considerada um ícone cultural, com
direito à réplica no Museu de Cera de Grévin, em Paris.
Desvelar os mecanismos que elevaram o status desse brinquedo
a sinônimo de beleza juvenil, elegância e ingenuidade foi
o que fez a pedagoga Fernanda Theodoro Roveri em sua dissertação
de mestrado intitulada “Barbie: tudo o que você quer ser...
Ou considerações sobre a educação de meninas”.
No
trabalho desenvolvido junto à Faculdade de Educação (FE),
Fernanda pesquisou uma possível história da boneca. A partir
dessa prospecção, ela analisou o sucesso mundial de Barbie,
os mecanismos publicitários que conferiram ao brinquedo
uma personalidade próxima à de uma pessoa real, e os modelos
de feminilidade apresentados às garotas. E o que se pode
constatar é que Barbie nunca foi muito ingênua, a começar
por sua criação.
A história oficial conta que a criadora de Barbie, Ruth
Handler, via sua filha brincar com uma boneca de papel quando
imaginou uma boneca 3D revolucionária com rosto e corpo
de adulto, inclusive seios. Teria, também, uma infinidade
de trajes elegantes, adequados ao gosto de cada criança.
O que a pesquisa de Fernanda traz de diferente nessa história
é o fato de que o sonho de Ruth só se concretizou depois
de uma viagem que a família Handler fez à Suíça, em 1956.
Lá eles conheceram Lilli. Alemã, Lilli era uma boneca feita
de plástico, adulta, magra e de lisos cabelos loiros. A
diferença entre Barbie e sua precursora é que esta última
era vendida em tabacarias, destinada a homens atraídos por
suas características eróticas.
A boneca Lilli era fruto de uma personagem de quadrinhos
do jornal alemão Bild. “Os desenhos no jornal sempre a mostravam
em trajes justos, decotados ou apenas de lingerie. E suas
histórias freqüentemente tratavam sobre relacionamentos
com homens endinheirados”, conta Fernanda.
Entusiasmada, Ruth Handler levou um exemplar de Lilli para
a sua fábrica de brinquedos nos EUA, chamada Mattel. Lá,
segundo Fernanda, é que se deu o processo de “desvulgarização”
da boneca, transformando-a em algo consumível por crianças.
Um maquiador profissional da Universal Pictures remodelou
o rosto de Lilli, retirando a sensualidade excessiva de
seu olhar. Já o corpo de Barbie teve que ser desenvolvido
no Japão, pois os engenheiros da Mattel alegaram que tal
processo na América seria muito dispendioso. Na verdade,
Ruth acreditava que seus funcionários alegaram isso por
achar estranha a idéia de produzir uma boneca com seios.
O trabalho inicial pela busca de inocência e ingenuidade
para Barbie terminou no seu lançamento na Feira Anual de
Brinquedos de Nova Iorque, em 1959, No entanto, a sociedade
norte-americana ainda achava a boneca um brinquedo vulgar.
Esse problema só foi resolvido depois que a publicidade
revolucionária da Mattel entrou em cena.
Fernanda lembra que, até a época do lançamento de Barbie,
os comerciais televisivos de brinquedos eram dirigidos apenas
aos pais. A inovação da Mattel consistiu em dialogar diretamente
com as crianças. “As primeiras imagens televisivas de Barbie
a sugeriam como uma modelo adolescente, uma pessoa real
que se mexia na propaganda”, destaca a autora da dissertação
de mestrado, que foi orientada pela professora Carmen Lúcia
Soares.
Em
pouco tempo, as crianças começaram a se enxergar na boneca
e a desejá-la por isso. Porém, muitas mães consideravam
“estimulante” demais a idéia de a menina despir uma boneca
adulta. Para combater esse pensamento, a Mattel deslizou
o sentido – como diriam os especialistas em análise do discurso
– de despir Barbie para outro, por meio do qual ela era
vestida pela menina. Uma das maneiras que o fabricante encontrou
para realizar tal tarefa foi incluir no pacote de roupas
de dormir da boneca uma calcinha – para mostrar que ela
dorme com roupas íntimas – e um cachorro que sugeria a inocente
idéia de que Barbie afagava seu cão enquanto dormia.
O forte trabalho de marketing do casal Ruth e Elliot Handler
deu certo. Pouco tempo após seu lançamento, Barbie já era
líder em vendas, posto que mantém até os dias de hoje. Fernanda diz que analisar a história dessa boneca nos mostra
como a sociedade tem voltado seus olhos para a criança,
para a infância, para o brinquedo, para o corpo da menina
e para o conceito de beleza padrão. “Na minha dissertação
discuto como essa boneca que está sempre na moda consegue
seduzir a menina, apresentando-lhe seu pressuposto do que
é ser mulher. Analiso também de que forma Barbie contribui
para um consumo excessivo que leva a criança a desejar o
exemplar mais recente, em detrimento do modelo antigo que
possui”.
Um dos capítulos da dissertação de Fernanda mostra uma
situação curiosa sobre a conhecida relação Barbie-consumo.
Uma comunidade virtual da Mattel chamada Barbie Girls convida a criança a brincar em seu universo virtual, semelhante
ao Second Life. A usuária cria uma personagem “transada”,
que conversa com outras barbie girls e que sai para gastar
seu dinheiro virtual em cinema, café, pet shop, salão de
beleza e parque. Para recuperar o dinheiro investido, as
meninas podem, entre outras atividades, assistir a trailers
dos novos filmes vendidos em DVDs. A partir deles, geram-se
freqüentes novas linhas de bonecas.
Contudo, alguns espaços em Barbie Girls só são acessados
por membros VIPs. Até pouco tempo atrás era considerado
VIP quem comprasse um MP3 Player da boneca, que possuía
uma chave de acesso a esses lugares especiais. “Para que
a criança pudesse adotar um cãozinho no pet shop de Barbie
Girls, seus pais tinham que desembolsar algo em torno de
R$ 200,00”, afirma Fernanda. Atualmente ficou mais fácil
ser VIP. Basta pagar no próprio site uma taxa mensal de
seis dólares.
Uma das conclusões da dissertação apresentada na FE é que
a boneca preferida das meninas de todo o mundo se molda
de acordo com o que a sociedade de cada época espera de
suas crianças. “Noções de domesticidade, independência e
diversidade étnica foram exploradas em Barbie sempre que
isso trouxe lucros maiores”, declara Fernanda.
No início da década de 90, por exemplo, a empresa lançou
bonecas em três cores diferentes. A idéia, segundo a empresa,
era refletir em seus brinquedos a beleza natural da mulher
afro-americana. Mas, o levantamento bibliográfico feito
por Fernanda aponta que o que a empresa queria mesmo era
aproveitar o incremento de 155% no potencial financeiro
de negros e hispânicos norte-americanos, ocorrido entre
1980 e 1990. Soma-se a isso o fato de que “a diferença entre
as bonecas ‘étnicas’ e Barbie se deu apenas na cor do plástico,
já que até o cabelo liso era o mesmo da loira. Mesmo assim,
elas não eram Barbies”, comenta Fernanda.
Hoje, segundo Fernanda, a tendência explorada pela Mattel
é que a menina não possua apenas uma Barbie e diversos trajes,
mas muitas bonecas e seus respectivos acessórios, sempre
impulsionados pelos filmes regularmente lançados pela Mattel.
“A Barbie Sereia não tira a cauda para usar as roupas da
Barbie Esportista. Se você quiser a Barbie Fadinha que aparece
no filme terá que comprá-la sabendo que suas asas não saem
das costas”, destaca Fernanda.
Barbie Tóxica
Um dos capítulos mais polêmicos do trabalho de Fernanda
aborda as relações de produção e exploração do trabalho
ocorridas em indústrias de brinquedos nos países do Terceiro
Mundo. Autores pesquisados por Fernanda, como a jornalista
canadense Naomi Klein, denunciam que do mesmo modo que os
tênis da marca Nike são produzidos por meio de trabalho
semi-escravo no Vietnã, roupas que vestem bonecas Barbie
de todo o mundo são costuradas por crianças no Sumatra.
“Hoje, as marcas interessam mais às grandes corporações
multinacionais do que os produtos por elas desenvolvidos”,
afirma Fernanda. Isso faz com que empresários optem por
investir em publicidade e minimizem gastos com manutenção
de fábrica, maquinário e trabalhadores.
Fernanda diz que atualmente 65% dos brinquedos da Mattel
são fabricados na China. O restante é feito na Indonésia,
Tailândia, Malásia e México. Nesses países, aponta a pesquisadora,
é imensa a lista de ações que atropelam os direitos trabalhistas,
a começar pelos baixos salários. Nos EUA e Alemanha são
pagos de U$ 10 a 18,50 por hora ao trabalhador industrial.
Na China paga-se, em média, U$ 0,87.
De acordo com o relatório Toys of Misery, divulgado em
2007 pelo National Labor Committe, de Nova Iorque, existem
5 mil operários na fábrica da Mattel em Shenzhen, na China,
trabalhando 15 horas por dia, seis dias na semana. Destes,
95% assinam novos contratos de trabalho a cada três meses
para que a empresa não tenha que pagar os devidos direitos
trabalhistas.
Os atentados contra trabalhadores industriais de países
pobres vão além. Diversos especialistas pesquisados por
Fernanda denunciam situações degradantes, como a de empregadas
filipinas grávidas que são forçadas a fazer aborto para
não perderem seus empregos. Em fábricas da China, empregadores
controlam o uso do banheiro como tempo improdutivo de seus
empregados, que não raro são obrigados a dormir sobre as
máquinas. Costureiras chinesas de uma fábrica de roupa das
marcas Gap, Guess e Old Navy usam sacos plásticos debaixo
das máquinas de costura quando precisam urinar. Em Honduras,
anfetamina é injetada nos funcionários quando turnos de
48 horas precisam ser cumpridos.
De um lado, a Mattel anuncia (em 2007) a retirada de quase
um milhão de brinquedos devido à possível contaminação por
chumbo na tinta. Do outro, em sua fábrica na Tailândia morrem
funcionários por conta de contaminação causada pela mesma
substância em razão do não fornecimento de máscaras de proteção.
Esses exemplos demonstram que, muitas vezes, o lucro vale
que o lúdico.