Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de setembro de 2013 a 15 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 574Aprisionados à baianidade
Os nomes são fictícios, as trajetórias verdadeiras. Jaime, Manoela, Cibele, Kauã, Roberto, Iara. Maísa, Lucas, Ana Maria. Todos declarados negros, idades variadas. Com ensino superior completo, apenas Verônica. A maioria tem apenas ensino médio, às vezes incompleto. Gente de Salvador, que cresceu sonhando com a arte. Cresceu já se sentindo artista, por ser baiano. E, nas organizações culturais, teve acesso a um instrumento, a um grupo, ou às aulas de dança afro-brasileira. A formação e o contato com uma rede de relacionamentos garantiram convites para apresentações fora de Salvador e do Brasil. Com o passar do tempo, alguns se cansaram das idas e vindas e procuraram se fixar no exterior. A França foi um dos países que receberam os artistas brasileiros, muitos deles atraídos pelo regime especial de trabalho que assegura remuneração na entressafra de temporadas, o chamado estatuto do Intermitente de Espetáculo.
Mas a situação na Europa e na França, em particular, já não é a mesma. Hoje há quem pense em voltar ou, o mais comum, mudar de atividade. “O cenário na França dos últimos anos vai dificultar o processo migratório. Além do mais, o próprio estatuto passa por reformulações que dificultam o recebimento de benefícios”, avalia a assistente social Cacilda Ferreira dos Reis. Ela ressalta que, sobretudo os artistas que tiveram filhos na França, começam a reorientar a carreira, deixando de dançar para produzir espetáculos, ou participando de cursos na área de serviços. São brasileiros acima dos 35 anos, sem formação superior, que acreditam na dificuldade de reinserção no mercado de trabalho, caso retornem ao país de origem.
A assistente social é autora da tese de doutorado “Sonhos, incertezas e realizações: as trajetórias de músicos e dançarinos afro-brasileiros no Brasil e na França”. Cacilda percorreu o mesmo caminho de seus 17 entrevistados no trabalho de pesquisa: de Salvador para a França. Foram nove meses de estágio em Paris, além de ter percorrido outras cidades francesas como Nice, Lyon e Nantes, para acompanhar de perto os artistas migrantes. “O objetivo do meu trabalho é refletir sobre as atividades artísticas. Quais são as especificidades dessas atividades e como se distinguem de outra forma de trabalho. E, a partir dessas trajetórias, queria investigar as condições sociais e históricas que acabaram impulsionando jovens pobres no Brasil e nascidos na Bahia, a escolher a música e a dança como tentativa de subverter as condições socioeconômicas e garantir a ascensão social”.
Entender como foi o processo de formação dos bailarinos e músicos na Bahia seria o início da pesquisa acadêmica. “Em campo fomos percebendo que a formação dessas pessoas se dá nas organizações e grupos culturais baianos. São grupos que fazem shows, e também alguns órgãos do Estado como, por exemplo, a Fundação Cultural do Estado da Bahia. Essas organizações recebem os jovens e crianças de bairros periféricos de Salvador”, complementa. Para as famílias, se a criança integra um grupo, está ocupando seu tempo. A música percussiva ou dança afro-brasileira são opções comuns.
Quando adultos, prossegue a pesquisadora, começam a enxergar as atividades artísticas como estratégia de sobrevivência e ascensão social. “Essas atividades podem representar uma forma de rendimento maior do que aquelas a que eles poderiam ter com a formação de ensino fundamental e médio”. Há três décadas a Bahia viveu a explosão da indústria do turismo e surgiram grandes produtores na área do axé music. Cacilda ressalta que houve, portanto, uma ampliação do número de músicos e de dançarinos, e a consequente ampliação do mercado de trabalho e de shows no exterior. A migração passou a ser uma possibilidade.
Ainda no cenário da década de 1980, agenciadores pagavam as passagens, faziam um contrato, forneciam alojamento e o artista fazia shows em várias partes do mundo. Um exemplo, de acordo com a autora da tese, foi o grupo “Brasil Tropical”, que fez turnês por vários países levando o show típico brasileiro. Um espetáculo brasileiro, e não baiano. Cacilda explica que as dançarinas de dança afro-brasileira precisavam aprender o samba carioca, que é o carro-chefe das atrações ainda hoje. “É o modelo de show do samba carioca, de plumas e paetês, é o carnaval. A dança afro é muito diferente, dança-se com pés descalços, está vinculada ao candomblé e aos orixás. No samba, as artistas precisam alongar os cabelos, exagerar na maquiagem. Todos acreditam que não há espaço para a dança afro exclusivamente”.
Havia também o artista que migrava por conta própria, ou aquele que viajava agenciado, mas sem contrato formal. Mais recentemente, entre os anos de 1990 e 2000, os artistas passaram a viajar como turistas ou estudantes. “Encontrei pessoas que vivem na França há 15 anos e que escolhem o país por considerá-lo mais acolhedor para a cultura brasileira, além de oferecer melhores condições de trabalho”. Os entrevistados na pesquisa conseguiram visto de residência por até dez anos, renovando os contratos de trabalho. “Mas, por conta das mudanças das políticas migratórias, alguns começam a ter a necessidade de buscar o visto de permanência. E hoje tem aumentado a dificuldade de fazer trabalhos dentro de uma situação legal”.
Baianidade
Cacilda desenvolveu uma pesquisa qualitativa e sua tese detalha e analisa as 17 entrevistas com músicos e bailarinos baianos. “Eu aciono as redes de relações, visitando algumas instituições e organizações de Salvador como, por exemplo, o bloco cultural Ilê Aiyê, Bagunçaço, ou a Fundação Cultural. Recebo indicações de pessoas e começo a fazer entrevistas. Dessa forma chego aos artistas que estão na França. Trabalho a rede de relações”, afirma.
A pesquisadora verifica que a formação dos jovens ocorre em vários grupos, por meio de cursos gratuitos. “Mais de 60 entidades ligadas à dança afro-brasileira e/ou à música afro-percussiva recebem financiamento da prefeitura de Salvador ou do governo do Estado para o carnaval, em 2013, e em contrapartida realizam projetos sociais”, explica. Cacilda avalia que essas pessoas acreditam estar cumprindo uma vocação natural. “É o conceito de baianidade que aprisiona. Todos acham que há uma inclinação natural do baiano para a música e a dança. É o que está acessível”.
Mas a reflexão é maior porque a arte também envolve a questão do trabalho, preocupação do grupo de pesquisa coordenado pela professora Liliana Segnini, orientadora da tese. “O artista também é um trabalhador e a atividade exige condições concretas e materiais”, diz. Segundo Cacilda, muitas vezes os percussionistas que fazem os cursos nos grupos baianos não têm os instrumentos necessários para aprender os novos ritmos, e não conseguem passar em um curso de aptidão em uma faculdade de música, assim como os dançarinos que dominam a dança afro. “Por esse motivo, para aprender instrumentos diferentes, os músicos transitam muito entre as instituições, já que cada uma tem uma ‘especialidade’. Quem quer aprender o samba reggae vai para o Olodum, samba afro é no Ilê Aiyê, a Timbalada é outra possibilidade”. Quem toca apenas um ritmo ou instrumento tem maior dificuldade para ingressar em uma banda como percussionista, a autora exemplifica.
Há os artistas que depois de migrarem apenas dão cursos ou estágios de percussão e não fazem shows. “Os percussionistas, principalmente, alugam um estúdio, você se matricula e o fato de ser baiano e ter passado por essas entidades atrai os interessados. Já na propaganda do curso eles dizem que se trata de artista nascido na Bahia, em Salvador ‘a cidade mais negra do Brasil’”.
Modelo
O desejo de migrar permanece no imaginário dos jovens baianos que se iniciam no meio artístico, mas há um debate sobre o esgotamento desse modelo, pois além das barreiras criadas pelos países, há mais “oferta” de shows culturais pelo mundo, segundo a pesquisadora. Todas as condições verificadas por Cacilda reiteram a característica de precariedade do trabalho artístico. “O trabalho no campo das artes é intermitente, independentemente do artista ser músico ou dançarino. E no Brasil ainda há o agravante da atividade estar desprotegida. Os músicos e dançarinos que conseguem ter uma rede de contatos potencializam as possibilidades de trabalhar tanto no Brasil como no exterior. De um modo geral, os entrevistados da pesquisa estão em melhores condições socioeconômicas do que em relação ao que tinham antes, particularmente aqueles que conseguem migrar. Mas a amplitude da formação que tiveram será determinante no destino de cada um.”
Publicações
Artigo:Música e dança afro-brasileira: os caminhos da formação e profissionalização artística; In: Diversidade e sistema de ensino brasileiro / Maria Alice Rezende Gonçalves, Ana Paula Alves Ribeiro (organizadores). Rio de Janeiro: Outras Letras, 2012. 16 224 p. (A Lei nº 10.639/03 e a formação de professores; v.2)
Tese: “Sonhos, incertezas e realizações: as trajetórias de músicos e dançarinos afro-brasileiros no Brasil e na França”
Autora: Cacilda Ferreira dos Reis
Orientadora: Liliana Segnini
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Capes e Cofecub