Edição nº 574

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de setembro de 2013 a 15 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 574

Estudo decifra mecanismos do Banco Mundial para ter influência e legitimidade

Tese mostra que instituição articulou rede mundial de interlocutores para respaldar políticas de desenvolvimento

 

Dizer que o Banco Mundial impõe unilateralmente sua agenda ao financiar projetos e disseminar políticas em diversas áreas pelo mundo é, de fato, desconsiderar uma das suas habilidades diferenciais, construída ao longo de décadas de história: a capacidade de encontrar interlocutores alinhados às ideias e políticas que defende e de articular uma “rede de apoio” nos países com os quais se relaciona por meio do financiamento de projetos.

Esse mecanismo foi analisado pela pesquisadora Hivy Damasio Araújo Mello, na tese de doutorado “O Banco Mundial e a educação no Brasil: convergências em torno de uma agenda global”, orientada pelo professor Renato Ortiz no Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Na pesquisa, o objetivo era analisar a atuação do Banco Mundial levando em conta o papel de um grupo de pessoas, policy makers, professores universitários, especialistas da área de educação, na “acomodação e circulação de ideias” disseminadas pelo Banco Mundial, no debate internacional, em torno das políticas educacionais. “Esses interlocutores nacionais, mobilizados em cada contexto e área, ajudaram e ajudam a fundar a legitimidade do Banco Mundial, essencial para influenciar as mais diversas temáticas no debate sobre o desenvolvimento”, explica a autora.

O Banco Mundial surgiu em meio à Segunda Guerra e, de lá para cá, cresceu em tamanho, abrangência e escopo de atuação, segundo a pesquisadora, tornando-se importante financiador, formulador e disseminador de políticas transnacionais em várias regiões do mundo. Na análise que realizou, Hivy destaca a capacidade dessa organização de “reinventar as suas práticas, seus mecanismos de atuação e, sobretudo, o seu discurso no intuito permanente de integrar os países à economia mundial e combater a pobreza”.

A partir dos anos 60, o banco começou a atuar na área da educação. “Permanente foi a defesa da educação como central para o crescimento econômico. Nos anos 1990, na esteira dos debates sobre o Consenso de Washington (desregulamentação do mercado, redução do Estado, privatizações), e tendo a educação como medida compensatória das políticas de ajuste estrutural, o Banco Mundial se tornou o maior financiador externo em educação, além de divulgar valores ligados à gestão, avaliação, eficiência e maior participação do setor privado. Nesse contexto, o Banco Mundial era visto, ao lado do FMI, como o maior defensor de políticas neoliberais e suas ações viraram alvo de crítica de vários lados.”

Para a autora, muito se analisou sobre como o Banco Mundial impôs políticas aos países, mas comumente as convergências e os alinhamentos entre os lados envolvidos ficaram à margem do debate. “O Banco Mundial tem utilizado largamente mecanismos de coerção, entre os quais as condicionalidades – sobretudo atreladas às políticas de ajuste estrutural. No entanto, é perceptível também o crescente uso de mecanismos menos coercitivos e mais persuasivos, sobretudo após meados da década de 1990”, escreve Hivy. Isto é, as conexões entre o Banco Mundial e os países clientes são complexas, remetendo também a instituições e pessoas em solo nacional com interesses similares aos da organização.

No caso do Brasil, um dos maiores clientes históricos do Banco Mundial, a análise do papel de uma intelligentsia, termo da sociologia que a autora resgata para remeter à “ideia de um grupo de intelectuais que partilha uma visão de mundo”, foi ponto chave para refletir sobre as influências dessas relações no setor educacional. “A minha hipótese é a de que, a partir dos anos 1970, a intensificação da circulação de pessoas e ideias entre as instituições e países, mais pontualmente no caso brasileiro, entre algumas instituições de ensino e/ou pesquisa, esferas do governo e organismos internacionais por parte de uma intelligentsia, que assume o papel de policy makers, possibilita identificar uma série de convergências entre as ideias defendidas por esses grupos e as do Banco Mundial. Nos anos 1990, o alcance de posições de poder dessa intelligentsia que analisei criou as condições sociais para que a agenda do banco se confundisse com a do próprio governo brasileiro, mostrando sinais ainda mais claros de articulação”, diz a autora no trabalho.

Educação

Os financiamentos do Banco Mundial para a educação no Brasil começaram nos anos 70, durante o período do regime militar, e atingiram seu ápice nos anos 90. Segundo a autora, a fatia de recursos injetados em projetos de educação saltou de menos de 2% do total de investimentos do Banco no país nos anos 1980, para 22,1% (de 1991 a 1994), o que, naquele contexto, ajudou a colocar o organismo no centro do debate. “O Banco Mundial é uma instituição com dada competência técnica e que adquiriu legitimidade, capital simbólico, para opinar, dar diagnóstico e influenciar em várias áreas, a educação é uma delas”, afirma a pesquisadora. “Essa influência, no entanto, não deriva apenas do montante de recursos emprestados, sendo esses, em geral, pouco representativos se comparados ao orçamento total do Ministério da Educação brasileiro. Mas o financiamento dá acesso às decisões e possibilita influenciar. Ainda, apesar das diretrizes globais do organismo quando da escolha dos temas e áreas financiáveis, chama a atenção como foi necessário ao Banco Mundial a existência de intelectuais orgânicos, desses interlocutores em solo nacional, que possuíssem uma concepção de mundo semelhante, para instituir a sua legitimidade.”

Na prática, os agentes envolvidos emprestam legitimidade entre si, em um processo que envolve instituições e pessoas que produzem relatórios, estudos e discursos que sustentam as políticas, práticas e projetos incentivados pelo Banco Mundial. Essa “intelligentsia” exerceu papel fundamental na acomodação e divulgação de ideias que, se sugeridas pelo organismo, não eram estranhas aos seus interlocutores nacionais. “Eles reforçam argumentos, antecipam diagnósticos, valores e crenças disseminados pelo Banco, compartilham pressupostos e firmam um solo receptivo às suas políticas e recursos.”

A autora dividiu a investigação em três partes: na primeira delas, buscou entender o processo que possibilitou ao Banco Mundial assumir uma posição tão central no debate sobre desenvolvimento; depois, analisou a evolução da forma de tratamento dada à educação pelo Banco e sua influência no surgimento de uma agenda global para o setor; por fim, avaliou a atuação do organismo na educação no Brasil e os seus principais interlocutores. Para isso, recorreu a documentos e relatórios produzidos e encomendados pelo Banco Mundial, entrevistou funcionários e consultores, entre outras fontes.

“O Banco Mundial tem uma capacidade de se reestruturar, de se apropriar de discursos de interesse na academia, de encontrar esses interlocutores, e de reformular o seu próprio discurso, fruto das suas características como organização, mecanismos de atuação e rede de relações que consegue estabelecer em cada contexto ao longo do tempo.”

 

De acordo com a pesquisadora, “a presença do Banco Mundial nos projetos traz [no Brasil], além dos recursos financeiros para os componentes do projeto propriamente dito, recursos para estudos e publicações, viagens, consultoria especializada (assistência técnica), legitimidade, e, às vezes, até propaganda”. “Apesar das críticas, o Banco Mundial segue encontrando brechas para influenciar nas mais diversas áreas quando da elaboração de políticas nacionais, e isso merece ser acompanhado de perto”, explica a autora.

 

Publicação
Tese: “O Banco Mundial e a educação no Brasil: convergências em torno de uma agenda global”
Autora: Hivy Damasio Araújo Mello
Orientador: Renato Ortiz
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento:CNPq