Edição nº 574

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 09 de setembro de 2013 a 15 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 574

O acaso que deu certo

Tese revela que as primeiras hidrelétricas de São Paulo foram construídas sem qualquer planejamento

O Brasil possui a matriz energética mais renovável do mundo, com 45% da produção proveniente de fontes como biomassa, etanol e recursos hídricos. Sozinhas, as hidrelétricas respondem por algo como 15% da energia ofertada. Embora a hidroeletricidade tenha grande importância para o país na atualidade, a construção das primeiras usinas em território nacional ocorreu ao acaso, sem qualquer planejamento, a despeito do gigantesco potencial hídrico brasileiro. Este e outros aspectos estão detalhadamente narrados na tese de doutorado da arquiteta Débora Marques de Almeida Nogueira Mortati, defendida recentemente na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp. No trabalho, a autora mostra como surgiram as Centrais Hidrelétricas em São Paulo e de que forma elas contribuíram para o processo de urbanização das cidades do interior do Estado.

O trabalho de Débora foi orientado pelo professor André Munhoz de Argollo Ferrão e coorientado pelo professor Paulo Pinho, da Universidade do Porto, em Portugal, onde ela realizou parte das pesquisas. O recorte temporal definido no estudo compreende o período que vai de 1890 a 1930, ocasião em que São Paulo dá início ao seu processo de industrialização. “Na minha tese, procuro demonstrar que a disponibilidade de energia foi fundamental para a mudança da economia rural do café para a urbano-industrial no Estado. Nesse contexto, as centrais hidrelétricas constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro”, considera a pesquisadora.

De acordo com Débora, a primeira hidrelétrica do Brasil e da América Latina foi instalada em Juiz de Fora, Minas Gerais, em 1889. A Usina Marmelo Zero foi uma iniciativa do empresário do setor têxtil Bernardo Mascarenhas. No ano seguinte, começou a ser construída a primeira hidrelétrica paulista – a segunda da América Latina –, a Usina de Monjolinho, na cidade de São Carlos, que entrou em operação em 1893. A unidade, hoje sob a responsabilidade da CPFL, ainda mantém os prédios e equipamentos. Logo após a implantação da Monjolinho, outras pequenas hidrelétricas passaram a ser construídas em solo paulista, numa velocidade impressionante. Em vinte anos, metade do Estado já tinha cidades acesas utilizando energia elétrica.

No período tomado para análise por Débora, foram instaladas 115 usinas em São Paulo, fato sem paralelo até mesmo em países mais desenvolvidos. “O interessante é que as hidrelétricas foram implantadas inicialmente no interior, nas cidades que tinham relevância econômica para o Estado. Curiosamente, nos municípios de São Paulo e Rio de Janeiro a iluminação pública permaneceu sendo a gás por um bom tempo ainda”, informa a arquiteta. O esforço para levar eletricidade aos mais diferentes pontos do território paulista, conforme a autora da tese, partiu especialmente dos integrantes das elites locais, que estavam em busca de modernização.

Baseados nos padrões europeus, notadamente os franceses, os moradores das cidades paulistas queriam romper com o paradigma rural e migrar para o urbano. “A iluminação era o símbolo da modernidade nas cidades da belle époque. Foi esse desejo de modernização que determinou a disseminação das hidrelétricas pelo interior de São Paulo, antes mesmo da chegada da indústria”, afirma Débora. O processo de eletrificação do Estado, continua a pesquisadora, seguiu os caminhos da ferrovia. Com isso, novas fronteiras foram estabelecidas e as cidades, reconfiguradas. “As indústrias, que eram nascentes na ocasião, foram ocupando o espaço entre a ferrovia e a energia. Uma das consequências desse processo foi a criação das vilas industriais”, relata Débora.

Segundo a arquiteta, esse processo teve sequência até 1930, quando a economia cafeeira entrou em crise e a indústria começou e se consolidar. “Com o início da era Vargas, e com a necessidade crescente de energia por parte do parque industrial brasileiro, o ciclo das pequenas centrais hidrelétricas chega ao final e tem início o das grandes hidrelétricas”. O dado curioso que está na base dessa trajetória é que, a despeito de o Brasil dispor de um gigantesco potencial hídrico, a geração de eletricidade através dessa fonte natural ocorreu sem qualquer planejamento tanto por parte dos investidores quanto dos gestores públicos da época.

Débora explica que o desejo de eletrificação esbarrou inicialmente na indisponibilidade de carvão no Brasil para alimentar as termelétricas, como ocorria na Europa. Diante dessa dificuldade, os fornecedores estrangeiros de equipamento, notadamente dos Estados Unidos, como a General Eletric, decidiram enviar ao país turbinas para serem movidas pela força da água. “Os compradores brasileiros não sabiam muito ao certo o que estavam adquirindo, nem como esses equipamentos funcionavam. Tudo foi feito de forma bem empírica. Assim, os engenheiros, normalmente aqueles que trabalhavam na ferrovia, assumiam a responsabilidade de construção da usina e tratavam de ler o manual de instrução dos equipamentos para saber o que fazer”, relata a autora da tese.

As primeiras experiências, como seria de se esperar, não deram bons resultados. Conforme Débora, ocorreram problemas de diversas ordens durante a implantação das usinas. Houve caso, por exemplo, de equipamentos que ficaram presos na alfândega. No caso da Monjolinho, os responsáveis técnicos depararam com algumas dificuldades, o que fez com que recorressem aos conhecimentos de Thomas Alva Edison, o cientista inventor da lâmpada elétrica incandescente. Não se sabe, porém, qual teria sido a resposta do Edison ao pleito. “Muita coisa não deu certo nesse início. A hidrelétrica de Rio Claro, por exemplo, pegou fogo no dia da inauguração. Além disso, no levantamento que fiz, foi possível apurar que, na primeira década do estudo, algumas usinas foram construídas concomitantemente, mas uma não sabia da existência da outra. As pessoas que tocaram esses projetos promoveram atos heroicos”, avalia a arquiteta.

Mudança de hábitos

A chegada da energia elétrica não modificou somente o perfil das cidades paulistas, que cumpriram uma espécie de rito de passagem para o contexto urbano-industrial. A novidade também promoveu mudanças nos hábitos e costumes dos moradores. Uma alteração importante foi o advento das atividades noturnas. Com a disponibilidade da iluminação pública, as pessoas passaram a sair de casa à noite e a assumir compromissos nesse período. “O mesmo ocorreu em relação à criação de mais um turno de trabalho, o noturno, nas indústrias”, destaca Débora.

No rastro da eletrificação das cidades, surgiram também inventos dotados de motores e dispositivos elétricos, o que facilitou a vida das pessoas, a da mulher inclusive. Graças às então denominadas “máquinas do conforto”, os atuais eletrodomésticos, as donas de casa puderam substituir o emprego da força física no cumprimento de inúmeras tarefas domésticas, como limpar e lavar. “Mas, a energia elétrica não proporcionou somente bônus às sociedades de então. Trouxe também ônus, visto que as obras para a colocação de postes e os cortes no fornecimento, indispensável para a execução de determinados trabalhos, incomodavam e geravam queixas por parte dos moradores. Alguns chegaram a escrever para os jornais para reclamar dessas inconveniências”, acrescenta a pesquisadora.

Para dar embasamento ao seu trabalho, Débora recorreu a diversas fontes, como revistas da área elétrica, livros históricos, documentos e a literatura científica, tanto no Brasil quanto em Portugal, onde cumpriu parte do doutorado sanduíche. “Grande parte do material utilizado na tese encontra-se no arquivo da Fundação Energia e Saneamento, que fica em São Paulo e que mantém um rico acervo bibliográfico e imagético”, informa. A Fundação dispõe de aproximadamente 1.600 metros lineares de documentos técnicos e gerenciais, 260 mil documentos fotográficos, cerca de 3.500 objetos museológicos, 50 mil títulos na biblioteca, além de documentos cartográficos, audiovisuais e sonoros, reunidos a partir de meados do século XIX. Para desenvolver a tese, a autora contou com bolsa concedida pela Euro Brazilian Windows (EBW), Programa Erasmus Mundus para doutorado sanduíche e, no Brasil, pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

 

  

Publicação
Tese: “A arquitetura da eletricidade: o surgimento das pequenas centrais hidrelétricas e o processo de urbanização das cidades do interior de São Paulo - 1890-1930”
Autora: Débora Mortati
Orientador: André Munhoz de Argollo Ferrão
Coorientador: Paulo Pinho
Unidade: Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC)
Financiamento:Euro Brazilian Windows, Erasmus Mundus e Capes