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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de setembro de 2013 a 15 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 574Experimentos em tempo real
Estudo desenvolvido na FEEC cria ferramenta que programa atividadescom sistemas biológicos em laboratório
No laboratório do Centro de Engenharia Biomédica (CEB) da Unicamp, uma aluna muito competente na área de biologia, ao estudar a interferência de estímulos ultrassônicos no coração de animais in vitro, viu-se cercada de inúmeros instrumentos com os quais tinha pouca afinidade: além do excitador para gerar e transmitir o estímulo de forma controlada, ela precisava manipular outros instrumentos que faziam as medições dos parâmetros alterados pelo estímulo, como a frequência cardíaca, a força de contração, a temperatura e, detalhe, tendo um cronômetro em uma das mãos.
É assim, recorrendo a uma linguagem meio figurada, que o professor Sérgio Santos Mühlen procura tornar claro o objetivo da pesquisa de seu orientado Leard de Oliveira Fernandes: desenvolver uma “Plataforma de controle e análise para dispositivos de aquisição e estimulação de sistemas biológicos”, em dissertação de mestrado apresentada na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC). “As dificuldades enfrentadas pela aluna para ‘pilotar’ os equipamentos foi o que motivou o trabalho. O olhar de um engenheiro de sistemas permitiria fazer com que os instrumentos utilizados no experimento biológico funcionassem de maneira programada”, explica o docente do Departamento de Engenharia Biomédica da FEEC.
Leard Fernandes atualmente é professor da Faculdade Independente do Nordeste (Fainor), em Vitória da Conquista (BA), onde leciona as disciplinas de processamento digital de sinais e de introdução à engenharia, além de coordenar o curso de engenharia de computação da instituição. “A plataforma de software que criamos foi capaz de controlar a geração e a aplicação de estímulos (pulsos de ultrassom) em preparações in vitro de corações de ratos, tornando possível automatizar todo o protocolo experimental de estimulação, bem como capturar os sinais de resposta ao estímulo em tempo real; os sinais também podem ser pós-processados”, informa por e-mail o mestre em engenharia elétrica.
De acordo com o professor Mühlen, seu orientado observou que a maior parte dos erros cometidos em experimentações laboratoriais desse tipo devia-se à operação simultânea de instrumentos e que esta dificuldade era crônica entre os pesquisadores de biomédicas. “Erros implicam perda de tempo e também de experimentos, alguns complexos e muito caros. Para estudar um coração de animal é preciso extraí-lo e mantê-lo em ambiente biologicamente estável. Quem se atrapalha no uso dos equipamentos pode perder o órgão, sendo obrigado a refazer todo o trabalho e gastar verba adicional com outro animal de laboratório, que no Brasil não é barato.”
O docente da FEEC explica que a partir de perguntas sobre a rotina desejada – tipo, intensidade e duração do estímulo; em que momento acionar cada equipamento – fez-se todo o trabalho de programação, sem interferir no poder de decisão do pesquisador. “Todos os instrumentos são controlados por meio de um único software. Quando o experimento está montado, o aluno simplesmente aperta a tecla para rodar o programa, podendo concentrar a sua atenção no evento fisiológico em curso. As reações aparecem na tela em tempo real e é possível repetir o experimento quantas vezes forem necessárias.”
Brinquedo Lego
Resolvido o problema pontual da aluna, Sérgio Mühlen e Leard Fernandes se deram conta do valor da ferramenta também para outros tipos de experimentos. “Propus ao aluno tornar nosso software mais generalista, com capacidade de controlar maior quantidade de equipamentos e programações biológicas que nem imaginávamos existir.Depois de entrevistar biólogos sobre as montagens em laboratório que julgavam mais complicadas, passamos a incorporar essas rotinas ao software, que possui hoje muito mais aplicações do que originalmente.”
Mühlen afirma que a ferramenta ainda foi enriquecida com sistemas para permitirem o tratamento estatístico dos sinais de retorno, a partir de um pacote completo de funções estatísticas; a possibilidade de ampliar um trecho do sinal no tempo para observar os detalhes e compará-lo com outro sinal; ou de compactar todos os sinais para gravá-los. “Há uma infinidade de recursos que podem ser acrescidos e o aluno, que é extremamente criativo, a cada ideia corria para incorporá-la.”
O passo seguinte sugerido pelo professor foi que o orientando, mantendo as características desejadas, reescrevesse o software inteiro, tornando-o, do ponto de vista da engenharia de software, elegante e robusto para não travar. “O aluno apresentou uma solução digna da reputação da FEEC no campo da pesquisa. Já tendo uma primeira versão, ele recomeçou do zero desenvolvendo um software todo modulado, sendo que os módulos trabalham em paralelo, ou seja, cada função é independente da outra: se uma travar, as outras continuam funcionando. Não há nada mais desesperador para um biólogo que perder os resultados de uma pesquisa.”
Sérgio Mühlen compara o software a um brinquedo Lego, visto que possibilita pôr e tirar funções, ativá-las ou desativá-las, conforme as necessidades de determinado experimento. “Foi essa característica que mereceu elogios da banca examinadora: diante de um novo experimento biológico, não é preciso reescrever todo o software; fazemos uma análise e rapidamente ativamos os módulos a serem utilizados; e, se for o caso, escrevemos um módulo com outra funcionalidade.”
Grande generalidade
Uma informação adicional enviada por Leard Fernandes é que o software é compatível com diversos equipamentos, dos mais modernos aos mais antigos, dando ao pesquisador maior flexibilidade na utilização da ferramenta, sem a necessidade de investir em equipamentos de alto custo. “A plataforma serve ao estudo de diversas preparações biológicas e, graças à sua grande generalidade, é possível aplicá-la em outras áreas, como em testes de equipamentos, circuitos elétricos e automação de processos de baixa complexidade. Esse sistema vem sendo utilizado no CEB para o estudo dos efeitos contráteis da aplicação do ultrassom de alta potência (USAP) em corações de ratos isolados.”
Trabalhando há 30 anos com instrumentação médica, o professor Mühlen explica que o objetivo do grupo de pesquisadores do seu departamento na FEEC, em geral, é detectar problemas na área médica para tentar resolvê-los construindo ferramentas de engenharia: softwares e, por vezes, hardwares. “Já pude assistir a várias cirurgias de porte e percebo como os médicos se confundem com a quantidade de equipamentos que precisam gerenciar, quando deveriam estar atentos ao paciente. Este software, portanto, nasceu da observação de experimentos biológicos e procedimentos médicos que ganham certa complexidade e roubam muito da atenção do médico ou pesquisador.”
De acordo com o docente, o trabalho de Leard Fernandes foi apresentado em dois congressos internacionais e, em ambos, embora a ferramenta não tenha causado surpresa inicialmente, despertou grande curiosidade do público quando se explicou a sua generalidade. “Existem outros softwares com a mesma finalidade, mas se este não é inédito no seu conceito, traz inovações que o tornam muito versátil. Já houve uma primeira discussão quanto a patenteá-lo ou não. Sou de opinião que inovações devem ser repassadas, não vamos ficar desenvolvendo produtos para ganhar dinheiro individualmente. A ideia é fazer com que a propriedade desse software seja da Universidade, disponível para todos os laboratórios interessados. Eventualmente, havendo interesse comercial, podemos discutir a questão dos royalties.”
Publicação
Dissertação: “Plataforma de controle e análise em tempo real para dispositivos de aquisição e estimulação de sistemas biológicos”
Autor: Leard Fernandes
Orientador: Sérgio Santos Mühlen
Unidade:Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC)