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Baixar versão em PDF Campinas, 27 de abril de 2015 a 10 de maio de 2015 – ANO 2015 – Nº 623A hora de um novo marco regulatório
Para especialista, crise abre caminho para a implementação de novas regras para o setorO Cantareira, maior sistema de captação e tratamento de água administrado pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) e responsável pelo abastecimento de 8,8 milhões de clientes na Grande São Paulo, entrou em abril de 2015 com ainda menos água do que no mesmo mês do ano passado, e a situação de poucas chuvas no verão, causa imediata da crise hídrica paulista, deve se repetir pelas próximas décadas, advertiu o professor Antonio Carlos Zuffo, especialista em Engenharia Hidráulica da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp.
“Devemos entrar num período seco pelos próximos 30, 40 anos”, afirmou ele, em entrevista ao Jornal da Unicamp. “Isso é o que vai fazer com que, daqui para frente, a história de falta de água seja mais recorrente: a situação vai voltar ao que aconteceu nas décadas de 30 a 70. Eu acredito nesse ciclo. É um ciclo que não é precisamente exato, varia entre 35 e 50 anos”.
“As décadas de 30, 40, 50 e 60 foram de baixas precipitações”, disse o pesquisador. “O que nós tínhamos de notícias, até metade da década de 70, era a de falta de água. Tanto que houve investimentos em projetos como o do Cantareira, que foi idealizado na década de 60 porque era necessário resolver o problema da falta de água para o abastecimento urbano da Região Metropolitana de São Paulo”.
Além do Cantareira, na mesma época foi planejado o Sistema Juquiá, que não saiu do papel. “Porque começou a chover mais em meados da década de 70, e o consumo per capita da população, de lá para cá, caiu praticamente pela metade. A produção de água dos sistemas aumentou, porque as chuvas, a partir do meado dos anos 70, aumentaram entre 20% a 30%. As vazões dos sistemas produtores começaram a aumentar. Então, fomos beneficiados no passado, nesses 40 anos, com o aumento da produção da energia elétrica e o aumento da produção de água de todos os sistemas de produção de água e energia hidroelétrica”.
Os planos para o Juquiá foram retomados neste ano, por conta da crise hídrica. “O Juquiá, hoje chamado de São Lourenço, originalmente previa a transposição para São Paulo entre 69 a 80 m3 por segundo. E o São Lourenço está sendo construído agora para 4,7 m3 por segundo. Menos de 10% do que o idealizado originalmente. E ele não vai dar resposta para a crise desse ano, mas só daqui a três, quatro anos”.
O pesquisador afirma que a seca de 2014 foi muito parecida com a registrada no Brasil em 1953. “Os impactos em 53 foram diferentes porque a população era muito menor. Então, a região metropolitana de São Paulo não era tão grande como hoje, nem toda a população era atendida por saneamento, 80% da população brasileira era rural, não urbana como atualmente. Não havia uma demanda por água, pelos sistemas, como hoje”.
Com o início do novo ciclo de seca, “devemos ter dois impactos”, disse Zuffo: “Na produção de energia elétrica, com a redução nas precipitações. E também com todos os outros sistemas produtores de água reduzidos. Então, agora a gente vai pagar o preço”.
ENERGIA
O pesquisador critica a política, de fundo ambiental, de desestimular a construção de grandes reservatórios de água, adotada a partir da década de 80. “Parece que virou quase um pecado mortal a construção de reservatórios de regularização”, disse.
Por conta disso, afirmou, hoje sofremos com a falta de energia. “A energia subiu muito de preço, porque tem de ser complementada pela geração térmica, que é muito mais cara e poluidora que a hidroeletricidade. Isso afeta também os sistemas de abastecimento. Ninguém construiu mais reservatórios, e na falta de chuvas a gente não tem de onde tirar água. Sem ter os reservatórios, quando há chuva você sofre com enchente e quando tem a falta de chuva você sofre com a falta d’água. Deixamos de investir na nossa segurança hídrica. Estamos sentindo o que é a falta de segurança hídrica”.
Os reservatórios, explica Zuffo, têm duas funções, armazenar água no período de abundância, evitando ou minimizando os efeitos das enchentes, e fazer do armazenamento da água, “uma poupança”. “É um seguro hídrico que diminui o risco de desabastecimento. E durante o período seco, você consome esse volume que foi acumulado, mantendo ao abastecimento de energia e o abastecimento público”.
Ele vê, na rejeição à construção de novos reservatórios, um reflexo dos impactos ambientais e sociais dos grandes projetos de engenharia da ditatura militar, mas diz que é necessário levar em conta, também, os benefícios trazidos por obras como a construção de usinas hidrelétricas. “Você tem o desenvolvimento da região onde existe esse empreendimento. Veja o caso de Ilha Solteira (SP). O canteiro de obras é uma cidade, tem uma universidade. E Três Lagoas (MG), que fica do outro lado da divisa, também se beneficiou muito com a represa”.
Usinas a fio d’água, que não contam com grandes reservatórios, representam um risco a mais em situações de estresse hídrico. “Trabalhando a fio d’água, baixou a vazão, diminui a produção de energia elétrica. Sem grandes reservatórios de regularização, nós comprometemos toda a produção de energia elétrica, e é isso que vivemos hoje: temos uma matriz renovável, mas estamos usando térmica, com impacto na nossa conta, que aumentou e ainda vai aumentar mais”.
GESTÃO
Zuffo vê na crise hídrica uma oportunidade para se definir um novo marco regulatório para o setor. “O instrumento de gestão que nós temos é a cobrança pelo uso da água bruta”, disse. “Todas as concessionárias, quando captam dos rios, têm que pagar por isso aos comitês de bacia. O instrumento previa que a arrecadação dessa cobrança seria suficiente para investir nas obras dentro da bacia: estação de tratamento de água, de esgoto, rede de drenagem”.
O pesquisador afirma que esse desenho foi “sabotado” com o congelamento do preço pago pelas concessionárias, a partir de 2004. “A política previa que a cobrança pelo uso da água bruta deveria ser investida em infraestrutura, não a tarifa cobrada do usuário final, que é o único preço que sobe. E a Sabesp é uma empresa público-privada que visa lucro, então com o aumento da tarifa você vai aumentar a margem de lucro da empresa”.
Quando é a concessionária que faz as obras de infraestrutura, essa infraestrutura passa a ser propriedade dela, e não mais da bacia, o que também viola o cenário previsto na política existente. “Em tese, se a concessionária de saneamento não estiver fazendo um trabalho satisfatório, você pode trocar de empresa. Agora, se ela for dona da infraestrutura, você não consegue trocar, porque teria de fazer a indenização do que ela construiu”.
Ele dá como exemplo o regime de concessão de estradas. “Você vai fazer uma concessão de estrada: a via é do Estado. Mas tem uma concessionária que tem que fazer a manutenção e operação e cobra pedágio para isso, para manter o serviço. Se ela não estiver operando bem, você pode tirar essa concessão e passar para outra. O Estado ganha quando vai fazer a concessão: a empresa tem de operar e é mais eficiente que o Estado”.
“Só que no setor da água você não tem esse marco regulatório”, disse. “Essa seria uma oportunidade para discutir o marco regulatório para o setor”.
ESPAÇONAVE
Com a redução prevista nas chuvas, a tecnologia passa a ser um importante aliado no gerenciamento dos recursos hídricos. “Vamos ter que entrar com pesquisas em cima de tecnologias para diminuir o consumo, vamos ter que ser mais eficientes no uso da água”, disse Zuffo. “Foi o que aconteceu, por exemplo, com a máquina de lavar roupa. Quando eu era criança, via propaganda na televisão de uma máquina de cinco ciclos: a cuba enchia de água cinco vezes. Hoje não, você vê praticamente lavagem a seco, o enxágue é feito centrifugando e com esguicho e água, então o que se economiza, comparado com o que se gastava antes com a lavadora de roupa, é uma redução muito grande”.
Os processos industriais também vêm se adequando à situação: “a indústria ganha eficiência porque a água está faltando e é cara, então quando se mudam processos, economiza-se água. Isso deve ser uma tendência daqui para frente”.
Quanto ao poder público, é preciso reduzir desperdícios e investir mais no tratamento de efluentes. “Vamos ter que investir muito na redução de perdas na rede, que supera os 40% em São Paulo”, disse. Quanto aos efluentes lançados em rios, o tratamento adequado gerará um aumento da disponibilidade de água por aumento de qualidade, numa situação em que a disponibilidade por quantidade está comprometida.
“O Rio Tietê em São Paulo, por exemplo, que tem uma vazão de 60 metros cúbicos por segundo, no período seco. Esse volume não está disponível por falta de qualidade. Então é preciso interceptar os lançamentos de efluentes, tratar e lançar o efluente tratado. Em vez de receber carga poluente, ele vai receber um efluente com qualidade melhor do que a própria água no leito, e gradativamente ele vai sendo recuperado. E aí sim nós teremos esse volume de água disponível, também, para utilização”.
Zuffo diz que “já entramos numa economia de espaçonave”. “Economia de espaçonave é quando o meio ambiente já não tem mais condições de autodepuração, porque a carga que se joga nele supera essa capacidade. Então, se nós diminuirmos isso, o rio consegue voltar a ter sua capacidade de autodepuração. Você lança uma carga bem pequena, ou já tratada, e um processo físico, químico, natural seria suficiente para recuperar o restante da qualidade. Mas esse seria também um processo para o longo prazo”.