Edição nº 623

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 27 de abril de 2015 a 10 de maio de 2015 – ANO 2015 – Nº 623

O mapa da Giardia em Campinas

Pesquisa publicada na PLoS ONE revela diversidade genética do protozoário nas águas da cidade

Córrego na Via Norte-Sul, em Campinas, onde foi feita coleta de amostraspequena ilustracao de uma torneira e o personagem do jogo come-comeA diversidade genética encontrada em amostras do parasita Giardia duodenalis recolhidas em pacientes e nas águas da cidade de Campinas (SP) é alta e surpreendente, disse ao Jornal da Unicamp o pesquisador Maurício Durigan, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMEG) da Universidade, principal autor de artigo sobre o assunto publicado no periódico internacional PLoS ONE. O autor afirma que sua descoberta chama atenção para o fato de que a contaminação das águas é um problema que precisa ser tratado em escala metropolitana, regional ou estadual, e não apenas municipal.

A presença da Giardia – protozoário causador da infecção giardiose, que provoca diarreia e outros problemas intestinais, sendo especialmente perigosa quando infecta crianças – nas águas da região de Campinas já era conhecida, mas a diversidade genética, descoberta por meio do uso de marcadores moleculares, representa uma novidade importante, explica o autor, destacando que existem vários subtipos diferentes do parasita.

“Há, por exemplo, subtipos de Giardia que são específicos de cães, existem que são específicos de gatos”, disse ele. “A gente tem uma colaboração na Sanasa [Sociedade de Abastecimento de Água e Saneamento S/A, empresa responsável pelo saneamento em Campinas], e eles têm interesse em saber isso: se eu falasse para a Sanasa que só há Giardia de cão, digamos, a resposta seria diferente”. 

A maioria dos subtipos identificados no trabalho de Durigan tem o chamado “potencial zoonótico”, o que significa que podem ter mais de uma espécie de hospedeiro, com o potencial de circular entre humanos e animais. “As ferramentas genéticas permitem não só conhecer os subtipos, como também quantificar quanto tem ali naquele determinado local, então são respostas que antes não tínhamos”, explicou o pesquisador. “Agora começamos a saber, de maneira mais acurada, o que tem ali, e quais os riscos daquilo. Que existe contaminação humana e também que esses  subtipos, que estão lá, podem circular entre animais e humanos”.

 

DOENÇA REEMERGENTE

Giardia duodenalis é transmitido por via fecal-oral: cistos do protozoário são eliminados nas fezes de pessoas ou animais portadores, de onde podem chegar à água ou a alimentos, reiniciando o ciclo da infecção. Saneamento adequado, com captação de esgoto e tratamento da água, é o melhor modo de evitar a doença.

No Brasil, dados de 2014 do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), do Ministério das Cidades, mostram que apenas 39% dos esgotos gerados são tratados, com graves desigualdades regionais – indo de 43%, no Sudeste, para 14% no Norte.

O Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos estima que cerca de um terço da população dos países em desenvolvimento já sofreu com contaminação por Giardia, considerada pela ONU uma doença negligenciada. “O Brasil não tem um sistema de notificação de surtos de Giardia, como há em países como os EUA. Então, grande parte dos surtos que acontecem, não sabemos”, disse Durigan. “Giardia é considerada um protozoário reemergente, porque há alguns anos começaram a aparecer muitos casos em muitos países, principalmente em creches”. 

Artigo publicado em 2000 no “International Journal of Parasitology” pelo pesquisador australiano R.C. Andrew Thompson, ligado à Organização Mundial da Saúde (OMS), explica como a giardiose, que afeta milhões de pessoas em países em desenvolvimento, onde as condições de saneamento básico são precárias, passou a ser vista como uma “doença reemergente” no mundo desenvolvido. Escreve Thompson: “Inicialmente, isso se deu por causa da associação entre Giardia e surtos de diarreia em creches, cuja utilização vem aumentando nos países desenvolvidos e representam um importante fator na emergência de doenças (...) Como resultado, muitas crianças são expostas a infecções numa idade onde têm poucos hábitos de higiene e são imunologicamente suscetíveis”.

A professora Anete Pereira de Souza, do CBMEG, orientadora da tese de doutorado de Durigan – da qual a pesquisa com a Giardia faz parte – explica que doenças reemergentes “são aquelas doenças já conhecidas, que recebem essa denominação por conta de seu reaparecimento, ou do aumento do número de casos, nos últimos anos”. Ela acrescenta: “Pelo fato de terem causado poucas infecções em anos anteriores, já não eram consideradas mais um problema importante de saúde pública. Assim, uma doença reemergente pode ser explicada como uma doença que está ressurgindo em importância. E a cada ano, mais pessoas são detectadas com giardiose”.

 

DIVERSIDADE

O material usado no estudo de Durigan foi coletado em vários pontos da cidade, e inclui tanto amostras clínicas – obtidas de pacientes – quanto água retirada de rios e esgotos. Como diz o artigo na PLoS: “Amostras ambientais foram obtidas de fontes de água correlacionadas, incluindo rios, córregos urbanos, esgoto hospitalar, uma instalação de tratamento de esgoto e o ponto de captação de água para a cidade no Rio Atibaia. Amostras clínicas foram obtidas através de parcerias com hospitais, uma creche, uma clínica veterinária e uma fazenda”. Parte das amostras veio do Hospital de Clínicas da Unicamp (HC).

A diversidade genética da Giardia presente em Campinas aparece claramente nessas amostras, disse o pesquisador, que dá um exemplo: “Há dois córregos ali na Norte-Sul com Orosimbo Maia [duas importantes avenidas da cidade], o Córrego Proença e o Córrego Serafim. Quando eles se juntam, formam o Ribeirão Anhumas. Coletei amostra do Proença, do Serafim e do Anhumas, e é possível ver que elas têm resultados diferentes quanto aos perfis genéticos”.

A Giardia é considerada um organismo assexuado – ou seja, os filhos são clones, cópias exatas, dos pais. “Nessa situação, espera-se muito pouca diversidade”, disse o pesquisador. Em linhas gerais, se houvesse apenas uma fonte de contaminação presente na cidade, todos os parasitas encontrados deveriam trazer uma mesma assinatura genética. “Mas, nesse caso, não é assim. O que apareceu foi uma altíssima diversidade: é como se Campinas fosse um núcleo de pessoas vindo de diferentes regiões. É uma cidade metropolitana – a gente tem uma altíssima diversidade genética aqui, mostrando, então, que a Giardia está chegando de diferentes locais, de diferentes regiões, e que existe uma relação entre a parte ambiental e a clínica que é, também, uma das novidades do trabalho”.

 

QUESTÃO METROPOLITANA

Esse resultado mostra que a contaminação da água por parasitas – não apenas a Giardia – precisa ser tratada numa perspectiva metropolitana e regional, não apenas municipal, afirma Durigan. 

“Uma coisa importante que estamos mostrando é que não adianta uma cidade tratar bastante o esgoto, como a Sanasa faz em Campinas, se a região metropolitana não trata. Porque, no final das contas, as outras cidades estão jogando todo esse esgoto no mesmo rio. As soluções aqui têm de ser metropolitanas. Isso é o que a gente quer enfatizar. Não adianta uma cidade como Campinas fazer a sua parte se as demais não fizerem”. 

O pesquisador Maurício DuriganA determinação dos tipos genéticos da Giardia encontrada em Campinas poderá permitir rastrear as contaminações até a fonte. “Quando a gente consegue caracterizar esses cistos de Giardia, pensando em trabalhos a médio e longo prazo, com diversos colegas trabalhando também, podemos começar a detectar possíveis fontes de contaminação”, disse o pesquisador. “A partir do momento em que temos uma caracterização genética, praticamente como se fosse um exame de paternidade, será possível, no futuro, começar a estabelecer, nas regiões do Estado, e até do Brasil, o perfil de Giardia dessas regiões. Então, nós temos uma expectativa boa de fazer um rastreamento dessa doença”. 

Esse rastreamento, de acordo com ele, apontará cidades que não tratam esgoto, ou que precisam melhorar o tratamento que já fazem. Durigan elogia o trabalho desenvolvido pela Sanasa na cidade, principalmente em seu apoio à pesquisa. “É um lugar que não precisaria fazer pesquisa, mas eles fazem pesquisa, estão sempre vários passos adiante da lei. Foram eles que vieram me procurar para fazer essa colaboração: estão realmente interessados em ver o que tem na água: qual Giardia que é, começar a quantificar isso”.

 

MULTIDISCIPLINAR

O artigo, publicado na PLoS no fim do ano passado, representa o primeiro capítulo da tese de doutorado de Durigan, que tem, além da orientação da professora Anete, como coorientadora a professora Regina Maura Bueno Franco, do Departamento de Biologia Animal do Instituto de Biologia da Unicamp. A troca interdisciplinar entre genética e parasitologia, disse o pesquisador, foi fundamental para o trabalho.

“Se eu estivesse apenas aqui na genética, ou apenas na parasitologia, isso não teria sido realizado”, disse ele. “Foi um esforço conjunto, da professora Regina Maura e da professora Anete, bem como a professora Maria Zucchi [Maria Imaculada Zucchi, da Agência Paulista de Tecnologia dos Agronegócios], na parte analítica dos dados, na parte de genética de populações – só com trabalho interdisciplinar que se consegue chegar a essas respostas mais detalhadas, mais específicas. Senão, não vamos ter uma visão completa dos fatos”.

“Não é muito comum, no Brasil, a associação de geneticistas com parasitologistas, o que é uma pena, pois organismos tão pequenos, de difícil identificação, só podem ser estudados quanto à variabilidade se utilizarmos a genética, empregando técnicas modernas de análises como sequenciamento, análise da expressão global, e bioinformática, entre outras”, disse a professora Anete. “A genética, hoje em dia, munida de ferramentas fantásticas como os marcadores moleculares, pode desvendar e explicar muitos segredos da vida, a transmissão de características, a composição das populações, entre outros aspectos, de absolutamente qualquer organismo vivo”.