Edição nº 623

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 27 de abril de 2015 a 10 de maio de 2015 – ANO 2015 – Nº 623

A lógica invertida da mercantilização

Para economista, companhias de abastecimento priorizam lucros imediatos e não investem em saneamento

Sabesp não combate a perda de água, que chega a 35% em São Paulo, porque o investimento reduziria dividendos distribuídos aos acionistas

pequena ilustracao de uma torneira e o personagem do jogo come-comeUma lógica mercantil, voltada para a produção de lucros e dividendos imediatos, em detrimento de objetivos de longo prazo, e a ausência de uma política nacional articulada de saneamento estão entre as causas da crise hídrica vivida pelo Estado de São Paulo, principalmente no Sistema Cantareira, que abastece a capital, afirma o professor Eduardo Fagnani, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Se você observar os dados da Sabesp agora, ela continua dando lucros enormes, que ela distribui aos acionistas”, disse Fagnani. “Como o maior acionista é o Estado de São Paulo, o que acontece? Uma inversão da lógica social: em vez de o Estado financiar, via arrecadação de impostos, o saneamento, o que acontece é o lucro da Sabesp financiar o Estado”. 

A Sabesp, ou Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, é uma empresa de capital aberto e ações negociadas em bolsa. O governo paulista detém o controle da empresa, com 51% das ações. O restante das ações é detida por grandes grupos financeiros internacionais e nacionais.  

Na opinião do pesquisador, a distribuição de dividendos, somada ao monopólio do saneamento – os clientes da Sabesp não podem simplesmente trocar de fornecedor, caso estejam insatisfeitos com o serviço – ajuda a explicar a ausência de investimentos que poderiam ter mitigado a crise desencadeada pela seca recente. “O desperdício de água no Japão é 3%, na Alemanha é 5%, em São Paulo, na Sabesp, é 35%. E por que a Sabesp não investiu nisso? Em reduzir a perda de 35% para 10%? Por que a Sabesp, nos últimos 20 anos, não investiu, por exemplo, na redução dessas perdas?”, questiona Fagnani, para logo em seguida sugerir uma possível resposta: 

“O saneamento, em geral, é monopólio. Quer dizer, não tem concorrência – então, por que eu vou investir? Porque, o investimento reduz a parcela de dividendos que anualmente é distribuída aos acionistas”, argumenta.  

“Se tivessem investido para redução de perdas, provavelmente a Cantareira não estaria no problema em que está. Mais de um Cantareira é jogado fora em perdas e ineficiências da gestão privada. Por que acontece isso? Há vários motivos, mas com certeza, eu acho que também tem a ver com essa lógica privada e a pressão pela distribuição do lucro aos acionistas”.

 

NEOLIBERALISMO

 “A privatização está ligada à agenda neoliberal que passou a ser hegemônica no mundo a partir de 1980, quando a ideia é a seguinte: reduz o Estado; o Estado regula; e, o mercado opera. Você abre a economia para que as empresas internacionais venham atuar no Brasil”, disse Fagnani. 

“A justificativa era que o Estado estava quebrado, o setor privado era eficiente e tinha recursos para investir. Mas isso era só um discurso: na verdade, isso se dá para responder às necessidades do capital financeiro. O capital financeiro busca valorização, e obtém isso onde? Entrando num setor que é essencialmente público; e o saneamento não fugiu à regra”. 

O pesquisador relata como, no caso brasileiro, as empresas estaduais de saneamento básico, criadas durante a ditadura militar, foram sucateadas ao longo do período de inflação alta dos anos 80, até que a privatização ou abertura de capital aparecesse como uma espécie de tábua de salvação do setor, na década seguinte. 

 

SUCATEAMENTO

“Em 1971 a ditadura cria o Planasa, Plano Nacional de Saneamento. Esse plano cria, em cada Estado, uma concessionária estadual, e obriga os municípios a entregar a concessão para a concessionária estadual. Os municípios foram obrigados, pela ditadura militar”, explica Fagnani. “Quem não desse a outorga às concessionárias estaduais era penalizado, não tinha direito a certos financiamentos, havia uma coerção. Como resultado, 90% dos municípios brasileiros fizeram isso”.  Essas concessionárias passam a ser, então, o carro-chefe do saneamento básico no Brasil. 

O professor Eduardo Fagnani“Essas empresas, aí que está um equívoco, também tinham que ser lucrativas: a própria receita da tarifa tinha que sustentar a empresa e os investimentos”, disse Fagnani. “Isso é que vai explicar, em parte, por que essas concessionárias estaduais  ampliaram mais a rede de  distribuição de água do que coleta e tratamento de esgoto: porque elas tinham de dar lucro, e o investimento em distribuir água é mais barato e o retorno é mais rápido. E, seguindo a lógica financeira, não se vai atender onde a demanda é mais necessária socialmente, vai-se atender onde é mais rentável, onde o retorno sobre o capital é maior. Então, durante a ditadura militar você expande a água, mas a coleta de esgoto fica estacionada”.  Ainda hoje, em pleno século 21, lembra Fagnani, menos de 50% da população vive em residências com coleta de esgoto; e, mais da metade do esgoto coletado não é tratado, sendo despejado no mar e nos rios. 

Com a crise econômica e a hiperinflação dos anos 80, o governo passa a administrar as tarifas cobradas pelas empresas estatais, incluindo as de saneamento, como modo de tentar conter a alta inflacionária. “Então a inflação era 100, você podia aumentar 60, digamos”, exemplificou o pesquisador.  “Depois de cinco, seis anos assim, as estatais desmoronaram. E isso vai acontecer durante os anos 80 como um todo. Aí vem o sucateamento: não se investe nem em saneamento, nem em água, nem em infraestrutura – e, quando chega a década de 90 com o neoliberalismo, o prato está feito: dizem,’ veja, está tudo sucateado, as empresas dão prejuízo, o Estado é ineficiente, etc., melhor privatizar’. Mas ninguém quer saber por que elas davam  prejuízo”.

No Estado de São Paulo, a onda de privatizações e de abertura de capital chega também às concessionárias municipais que haviam resistido ao Planasa. “E o que se privatiza é o filet mignon, certo? Você vai privatizar Limeira, Itu, e Ribeirão Preto, por exemplo: cidades que já tinham infraestrutura, já tinham uma situação de saneamento muito melhor que outras. O setor de saneamento básico, no Brasil, é isso: teve esses quinze anos de regime militar, depois a crise e, nos anos 90, privatiza. Privatiza ou sucateia o que restou do Estado”.

 

PLANEJAMENTO

O produto dessa história, diz Fagnani, é um setor que, rigorosamente, nunca foi alvo de uma política nacional pública pensada para o longo prazo, mas viveu submetido a uma lógica de rentabilidade imediata. “Quando chega em 2007, 2008, o governo apresenta o PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que incorpora a questão do saneamento, o que traz um aumento do investimento federal no setor”, disse o pesquisador. “Mas a nova política nacional de saneamento básico só é aprovada em 2012. É uma política, do ponto de vista da lei, interessante, uma tentativa de se pensar o saneamento como um problema nacional”. 

O problema, segundo Fagnani, é que a lógica do PAC – de liberação de recursos mediante a aprovação de projetos de investimento – não é exatamente compatível com as necessidades do programa de saneamento. “Grande parte dos municípios que mais precisam não tem capacidade de fazer isso, montar um projeto. Tem uma lógica de financiamento que é melhor do que antes, sim, mas ainda não contempla o sistema nacional como um todo, o planejamento do setor, um diagnóstico das carências nacionais e regionais. Houve uma tentativa de reformular uma política nacional de saneamento, que demorou muito tempo para sair e que não tem avançado”.

 

FUTURO

Fagnani não vê uma solução simples para o dilema do saneamento básico no Brasil, dividido entre um setor privado voltado para a lucratividade e um setor estatal subfinanciado e sucateado. 

Ele afirma que as privatizações e aberturas de capital tiraram dos governos a capacidade de fazer política pública no setor. “Acho que o governo nem tem mais instrumentos para fazer um grande plano. As estatais tinham seus problemas, mas eram instrumentos de política econômica. Você vê essa questão no setor de energia elétrica: sendo do Estado, ela gera energia, gera tarifa e receita. Com essa receita, pode contratar investimento privado, financiar uma construção de hidrelétrica, por exemplo. Quando privatiza, perde-se isso. E aí o que acontece quanto se tem de investir em infraestrutura? Concessão para o setor privado. Mas aí você tem só quatro ou cinco grandes empresas capacitadas, e fica na mão delas”. 

No caso da água, a situação se agrava, por conta do monopólio das concessionárias e do fato de que se trata de um item essencial para a vida. “Do ponto de vista da concessionária privada, ela cobra a tarifa e, se não fizer mais nada, já dá lucro. E a lógica privada é o lucro. Não é outra. Quem vai fazer um investimento de grande porte? Não é a concessionária privada. É o Estado. O setor privado vai fazer investimentos pesados para buscar água? Não acredito. O que você tem é ou o Estado sucateado, ou uma lógica privada antagônica a um projeto para o país. E esse é o retrato de 500 anos de saneamento no Brasil”.