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Da utopia ao individualismo

O novo cinema é hoje uma força com brilho próprio dentro da América Latina. Apesar disso, a dificuldade ainda está em não conseguir vencer os entraves para fazer políticas culturais que desenvolvam o modo de distribuir a produção mais corporativa. Continua-se com a ideia de que cada um deve fazer filme individualmente. Muitas vezes buscar parcerias com outros países também se torna tarefa complicada, por envolver impedimentos políticos, culturais e econômicos. Esta é a conclusão do artista plástico Diego Ivan Caroca Riquelme em sua tese de doutorado defendida no Instituto de Artes (IA). O pesquisador chegou a essa constatação ao olhar para o cinema documentário latino-americano das décadas de 1960 e 1970, vislumbrando o momento atual.

O autor da tese realçou ainda a riqueza de alguns depoimentos que tomou para o resgate histórico. Foi por meio deles que Riquelme conseguiu recuperar a posição militante que tinha um diretor de cinema documentário na década de 1960 e qual é hoje o seu pensamento vendo as mudanças. “Observa-se uma distância utópica nesse particular, como disse Fernando Birri, o primeiro grande cineasta argentino, criador de duas escolas latino-americanas: a Escola de Cinema e Televisão de Santo Antoñio de Los Baños, Cuba; e o Instituto de Cinematografia de la Universidad Nacional del Litoral, em Santa Fé, Argentina”, afirma.

O artista plástico, orientado pelo professor do IA Fernão Ramos, estudou a fundo países como a Argentina, o Brasil e a Bolívia, e o Chile e Cuba na América Latina, uma das razões para chamá-los o ABC no subtítulo da sua tese. Foram países que, através de manifestos e da atuação de seus autores, culminaram com o início deste cinema documentário.

As maiores colaborações para esse cinema partiram do Brasil e da Argentina, reflete Riquelme. Também a Fundação do Novo Cinema Latino-Americano (NCLA) é uma entidade cultural privada sem fins lucrativos, criada para ajudar o desenvolvimento e integração desse cinema, e lograr um universo audiovisual comum, além de cooperar com o resgate da identidade cultural da América Latina e do Caribe. Foi instituída pelo Comitê de Cineastas de América Latina (C-CAL) em 1985 e a integram cineastas de 18 países. “O NCLA diferenciou-se do cinema ‘nacional’ do período de 1930-1960, por orientar-se mais pelo cinema independente e relativamente afastado dos mecanismos comerciais relacionados com os sistemas de entretenimento”.

Para o pesquisador, ficou nítido que a identidade latino-americana é díspar. “Nunca poderemos pensar em um agrupamento de uma grande pátria, como imagina Hugo Chávez, tentando integrar os países da América Latina em um único. Isso também é utópico”, discute.

Riquelme sabe bem disso por experiência própria. Estava estudando cinema no Chile no governo do general Augusto Pinochet, quando foi expulso da universidade por participar de questões políticas e da reformulação da Federação de Estudantes do Chile. A expulsão representou para ele a interrupção dos seus estudos, mas não de sua inquietação pelo cinema.

Ele permaneceu em seu país atuando nos bastidores para trazer de volta a democracia. Isso significou sua conscientização, já que raramente as pessoas assumiam o que estava ocorrendo ali, o que o levou a agir em todas as atividades políticas em meio aos estudantes. “Esta militância desencadeou a minha expulsão, tornando-me um exilado no Brasil, que recebia a todos os que tivessem ‘problemas’ políticos”, realça o pesquisador. As suas opções foram ingressar na Unicamp, na Universidade de Brasília ou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Escolheu a Unicamp, elegendo o bacharelado em Artes Plásticas. Está no país há exatos 23 anos.

O interesse do artista plástico pelo cinema adveio de sua aproximação com diretores da época e de ter vivido a ditadura. Integrou a logística que dava sustentação ao diretor de cinema chileno Miguel Littin para, de forma clandestina, produzir um documentário. “Do contrário, ele seguramente seria preso e torturado.”

Na verdade, o cinema documentário entrou em seu universo quando concluía a graduação, na década de 1990, sentindo-se impulsionado a prestar o mestrado nessa área. “É um gênero que se caracteriza pelo compromisso com a exploração da realidade”, expõe. O artista plástico então sondou a posição dos diretores, o que os tinha levado a tomar tal direção e o que significou o filme para eles. Procurou tomar as opiniões do que foi o filme em sua concepção e tempos depois.

O foco de Riquelme foi a exploração indígena de minérios e a repressão da luta pela liberdade. A sua primeira proposta foi fazer uma análise sobre o cinema boliviano, com A coragem do povo (1971), de Jorge Sanjinés, e sobre o brasileiro, com Conterrâneos velhos de guerra, do brasileiro Vladimir Carvalho.

Enquanto na Bolívia o documentário abordava a exploração indígena, no Brasil o documentário pontuava a criação de Brasília. O teor desse documentário era declarativo de um massacre de obreiros que teriam sido enterrados debaixo do Palácio do Planalto, quando construíam a capital. Era um canteiro de obras com quase 100 mil trabalhadores. Cansados das suas condições de trabalho, eles se manifestaram, sendo reprimidos pela Guarda Especial. Até hoje não se sabe ao certo o número de mortos. Fala-se em centenas. “São questões especulativas, mas há que se considerar que contam com o testemunho dos próprios autores.”

Nos anos de chumbo na América Latina, todos os países viviam sob uma ditadura, salienta o pesquisador. Depois desse período, o único país que deixou de ser democrático, informa, foi o Chile. Muitos tentam esquecer esta época. “Não se trata de esquecer”, critica o autor da tese, “o que está em jogo é recuperar a memória histórica e os seus protagonistas”.

Não foram poucos os cineastas que desapareceram no período, como o diretor de documentários argentino Raymundo Gleyzer, assassinado na ditadura argentina; o cinegrafista argentino Leonardo Henrichen, assassinado durante uma gravação no primeiro intento de golpe de Estado sofrido pelo governo socialista de Salvador Allende, em 1973; além do cinegrafista chileno Jorge Muller, detido e morto na ditadura de Pinochet, em 1974, entre tantos.

Manifestos

O pesquisador tomou o depoimento de 20 entrevistados, entre cineastas, escritores e atores, todos relacionados com o cinema e com a época. Estes depoimentos foram alicerçados em manifestos que ajudaram a mudar o cinema latino-americano. O de Fernando Birri foi impactante em um momento em que esse cinema requeria ser nacional e realista, como Cuba, de Tomás Gutiérrez, do imperfeito; o de Jorge Sanjinés, do cinema junto ao povo; o de Miguel Littin, do novo cinema político social; o de Fernando Solanas e de Octavio Getino, por um terceiro cinema; o de Santiago Alvarez, do urgente e político; e o de Glauber Rocha e de Nelson Pereira dos Santos, por uma nova estética.

Todos esses foram manifestos de festivais que começaram a reagrupar o seu staff justamente nesses encontros. O primeiro festival com essa concepção ocorreu em 1967 em Viña del Mar, Chile, onde se reuniu a nata dos cineastas. Assim, eles tomaram pé do que estavam fazendo em seus respectivos países. “Começou uma integração cultural que forneceu as bases para o cinema que ora há, com mais conteúdos produzidos pela América Latina”, conta Riquelme.

Naquela época, os recursos eram mínimos. As próprias pessoas subsidiavam os seus trabalhos. Pegavam uma câmera e diziam “vamos à luta; vamos gravar; vamos ver se dá certo”. O pesquisador, também por meio de filmagens, registrou esse momento em que o cinema era incipiente em seu país.

Um dos documentários clássicos do período foi La hora de los hornos, de 1968, de Fernando Solanas e Octavio Getino, com duração de quatro horas. Ele é quase uma tese da colonização dessa América. É imperdível para ser visto pelos alunos de escolas, frisa o artista plástico, para entender aquilo que é, o que foi e o que será. Além do mais, é um filme que serve de referência a todos outros filmes do cinema latino-americano ou de ficção.

Esse documentário foi pensado como ferramenta para o trabalho político, convidando à discussão e à reflexão coletivas. Nele se mostra o colonialismo argentino e de toda América Latina, através de um olhar sobre a violência cotidiana e sistemática, refletida nos testemunhos e imagens dos trabalhadores em oposição à oligarquia argentina. Fernando Solanas foi orientando para a necessidade da organização e da luta. O filme inspirou-se no livro Os Condenados da Terra, de Frantz Fanon.

Riquelme conta que fez uma entrevista com Orlando Senna, quando secretário do Ministério da Cultura brasileiro (2003-2007), um integrador do cinema, na sua opinião. Não obstante admitir que o cinema atual tem avançado, ressaltou que é preciso se preocupar com a distribuição e a produção, pois tanto ficção como documentário não estão sendo muito vistos pela América Latina. “Após serem produzidos, ficam guardados na gaveta. Há filmes lindíssimos de cineastas latino-americanos que nada devem ao cinema americano e ao europeu.”

Riquelme deve continuar avaliando o cinema latino-americano. O videodocumentário que fez – Diálogos fragmentados – foi dirigido e produzido por ele e integra sua tese. A intenção é ampliá-lo para um curta-metragem, a fim de mandá-lo para festivais, como o de Havana. O conteúdo soma os depoimentos de cineastas que contribuíram para o surgimento do novo cinema. Faz um resumo de tudo o que é a América Latina, desde o século XVIII. O vídeo tem duração de 20 minutos.

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Publicação


Tese: “O cinema documentário na integração latino-americana: o ABC do início”
Autor: Diego Ivan Caroca Riquelme
Orientação: Fernão Vitor de Almeida Passos Ramos
Unidade: Instituto de Artes (IA)

 



 
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