Dissertação mostra como vivem 
                    os internos do Retiro dos Artistas
                   
                    
                    O Retiro dos Artistas (RA), no Rio de Janeiro, 
                      continua a abrigar muitos artistas que, por opção ou falta 
                      dela, se tornam moradores do local. E se as luzes da ribalta 
                      se apagaram do lado de fora, o RA abre as portas para que 
                      o público possa assistir seus moradores em plena atuação, 
                      apresentando seus trabalhos. Conforme afirma a psicóloga 
                      Sílvia Patricia Castro Pinto, em sua dissertação de mestrado, 
                      o asilamento no RA é uma continuidade da vida que seus usuários 
                      levavam fora. Inclusive, alguns entrevistados pela pesquisadora 
                      afirmaram que a palavra idoso não se aplica a quem nunca 
                      deixou de trabalhar. As portas também se abriram para que 
                      Sílvia pudesse descortinar o processo de envelhecimento 
                      em um local de longa permanência. A observação da rotina 
                      e a utilização da história oral, focada no depoimento de 
                      quatro moradores do local, fizeram-na entender que o RA 
                      deve servir de espelho para instituições que abrigam velhos.
                    O RA foi idealizado em 1914, por Leopoldo 
                      Frois, com apoio de Irineu Marinho, para abrigar profissionais 
                      do teatro. Com o tempo, o RA abarcou o pessoal do circo, 
                      que, com a decadência do gênero, acabou sofrendo com a falta 
                      de outro ofício. Muitos deles, em situação de miséria e 
                      carentes de mercado de trabalho, só encontravam abrigo no 
                      Retiro.
                    As palavras dos artistas mostram que a imagem 
                      da velhice está marcada pela perda da capacidade física 
                      e da beleza, com consequente perda do mercado de trabalho. 
                      Estar no mercado, como Fernanda Montenegro, é continuar 
                      jovem, na opinião dos artistas. A bela trapezista ou a estonteante 
                      vedete do teatro de revista já não aceitam ser fotografadas 
                      ou filmadas para não serem vistas como estão. “É preciso 
                      saber preservar a própria imagem”, dizem os depoentes. Por 
                      esse motivo, uma das entrevistadas rejeitou uma proposta 
                      recente para atuar em uma novela. “Imagine o que é isso 
                      para uma mulher que foi atriz e vedete de teatro de revista. 
                      Ela foi uma celebridade, viveu a ascensão e a queda dessa 
                      forma de arte”, afirma Sílvia.
                    
                    Se de um lado a vaidade da mulher está na 
                      beleza, de outro, o homem se preocupa com a vitalidade. 
                      Um dos entrevistados, o palhaço Cocada, argumenta que o 
                      homem no palco é mais cobiçado e confessa que a coisa que 
                      mais sente é não ser mais um homem do palco, onde podia 
                      pular, revirar e dar cambalhota. 
                    O dirigente do retiro ouvido por Sílvia 
                      afirma que o trabalho é uma necessidade dos artistas, tanto 
                      para manter seu equilíbrio emocional quanto para resgatar 
                      sua dignidade. A falta de reconhecimento do talento por 
                      parte do público e da própria classe pode levá-los a um 
                      quadro de tristeza e depressão, de acordo com o dirigente. 
                    
                     “Todo 
                      mundo quer ser artista, mas quem é artista?”, questiona 
                      um dos moradores ouvidos por Sílvia. Para eles, observa 
                      a psicóloga, o artista é alguém que tem um dom inato. Quem 
                      possui esse dom tem necessidade de atuar e capacidade de 
                      reconhecer seus iguais, de acordo com os entrevistados. 
                      “Tenho 70 anos de teatro e sei quem é artista e quem não 
                      é”, diz um dos depoentes. “Eu reconheço ator pela cara”, 
                      garante outro. Como bons profissionais, muitos não aceitam 
                      convites para atuar sem cachê. “Pensam que, por estarmos 
                      aqui, somos menos artistas. Não vamos querer fazer de graça, 
                      somos profissionais. Não sou qualquer uma”, declara a antiga 
                      vedete e atriz. Para eles, os traços e características tornam 
                      o artista um ser especial, diferente das pessoas comuns. 
                      Eles precisam exercer sua arte e tê-la reconhecida.
“Todo 
                      mundo quer ser artista, mas quem é artista?”, questiona 
                      um dos moradores ouvidos por Sílvia. Para eles, observa 
                      a psicóloga, o artista é alguém que tem um dom inato. Quem 
                      possui esse dom tem necessidade de atuar e capacidade de 
                      reconhecer seus iguais, de acordo com os entrevistados. 
                      “Tenho 70 anos de teatro e sei quem é artista e quem não 
                      é”, diz um dos depoentes. “Eu reconheço ator pela cara”, 
                      garante outro. Como bons profissionais, muitos não aceitam 
                      convites para atuar sem cachê. “Pensam que, por estarmos 
                      aqui, somos menos artistas. Não vamos querer fazer de graça, 
                      somos profissionais. Não sou qualquer uma”, declara a antiga 
                      vedete e atriz. Para eles, os traços e características tornam 
                      o artista um ser especial, diferente das pessoas comuns. 
                      Eles precisam exercer sua arte e tê-la reconhecida.
                    “Botar banca” é uma gíria comum entre os 
                      residentes do RA, que julgam ser o comportamento arrogante 
                      um direito de quem tem ou teve sucesso. Ou melhor, um direito 
                      dos “artistas verdadeiros”. Sílvia percebeu haver aceitação 
                      tácita de que fazer exigências e vangloriar-se de seus feitos 
                      é um direito de quem fez sucesso. E contam com orgulho mesmo 
                      situações nas quais “botar banca” resultou em perda de oportunidade 
                      de trabalho.
                    De acordo com os depoimentos, o abandono 
                      mais sentido entre os entrevistados é o da perda do mercado 
                      de trabalho. Muitos se afastaram das famílias quando optaram 
                      pela carreira artística e, por viverem da arte, seu grupo 
                      de amigos e colegas substituiu a família. O mundo das artes 
                      foi mais central na vida deles e muitos já colaboravam com 
                      o RA desde a juventude. A história profissional é sua maior 
                      herança. Nos tempos de juventude dos depoentes, a opção 
                      pela carreira artística era vista com preconceito. Entre 
                      todos eles, apenas Cocada não teve problema com a escolha, 
                      já que era filho de um músico. Uma das entrevistadas contou 
                      a Sílvia que pôde atuar enquanto foi conveniente para o 
                      marido durante período em que ele esteve desempregado. Mas 
                      quando o marido conseguiu sua aposentadoria, mandou que 
                      escolhesse entre o circo e a casa e, caso preferisse o circo, 
                      ele espalharia que ela o havia trocado pelo picadeiro. 
                    Outra depoente era filha do dono de uma 
                      companhia teatral, mas nem por isso sua opção foi facilmente 
                      aceita pelo pai.
                    Para Sílvia, o depoimento sobre a aceitação 
                      da família revela também o preconceito histórico que as 
                      mulheres enfrentam ao escolher esta profissão. Fica evidente, 
                      em sua opinião, a importância dos papéis atribuídos ao gênero. 
                      Neste caso, os homens parecem ter tido mais liberdade, mas 
                      mesmo assim demonstram nutrir menores expectativas em relação 
                      ao afeto e cuidado da família na velhice. 
                    Mesmo enfrentando as exigências da vida 
                      artística, as depoentes não abandonaram a atividade de cuidadoras 
                      e acabaram levando essa característica para o asilo. Uma 
                      delas, depois de ingressar no RA, voltou a dançar e decidiu 
                      cuidar de um morador enfermo, um cantor que ela havia conhecido 
                      na época em que atuava no circo. Acabou vivendo maritalmente 
                      com este senhor durante 12 anos, quando ele faleceu. Depois 
                      disso, passou a cuidar de vários gatos e ajudar instituições 
                      de caridade. Mas não abriu mão de suas performances nas 
                      festas do asilo. Segundo Sílvia, aos 89 anos, a depoente 
                      mostra-se satisfeita com a velhice.
                    Apesar de não admitirem, muitos artistas 
                      acabam tendo o Retiro como melhor opção depois de saírem 
                      do mercado de trabalho. Geralmente, o que os leva para o 
                      RA é a falta de dinheiro e de apoio nas atividades da vida 
                      diária. Uma das entrevistadas, porém, optou por ir para 
                      o Retiro mesmo contra a vontade de sua família. O RA é sinônimo 
                      de liberdade para eles. Lá, têm suas próprias casas, para 
                      onde podem, inclusive, levar a comida que é servida no refeitório 
                      e comerem com mais privacidade. As saídas também são liberadas.
                    Dentro do asilo há um bar, aberto para a 
                      comunidade vizinha, onde os residentes podem reencontrar 
                      os amigos que estão do lado de fora. “Eles viveram uma vida 
                      de teatro, livres, ligados ao trabalho e talvez não pudessem 
                      manter essa liberdade vivendo com os filhos”, informa Sílvia. 
                    
                    Mas para um asilo ser eficiente, não basta 
                      cuidar apenas da qualidade do espaço privado de cada residente. 
                      É necessário também atentar para a vida social do ambiente, 
                      na opinião da pesquisadora. No RA, apesar de cada um ter 
                      privacidade em sua casa, a arena social é formada por grupos 
                      que ainda disputam prestígio. “Artistas verdadeiros” só 
                      mesmo os do próprio grupo. Os outros são “falsos artistas” 
                      e os demenciados e doentes da enfermaria passam despercebidos, 
                      pois estão fora da arena de disputa. “Uma artista famosa, 
                      por exemplo, teve acidente vascular encefálico grave e perdeu 
                      a fala. Então, eles passam por ela sem prestar atenção, 
                      como se ela não fizesse parte do jogo”, informa Sílvia. 
                      Quando os residentes das casas começam a apresentar deficiência 
                      cognitiva, são levados para viver na enfermaria, deixando 
                      sua casa para outro artista da lista de espera, segundo 
                      Sílvia. 
                    De acordo com a psicóloga, todos os depoentes 
                      mostraram que o RA tem importância em sua vida material 
                      e emocional e deixam transparecer confiança e pertencimento 
                      ao asilo. Dois deles, segundo a pesquisadora, relatam terem 
                      enfrentado situações difíceis no passado, quando também 
                      se apoiaram na instituição. 
                    O Retiro mantém os valores e preserva os 
                      relacionamentos habituais dos velhos artistas, atendendo 
                      às necessidades específicas de seu grupo profissional, o 
                      que pode explicar a razão desse grupo ter se preocupado 
                      em criar e manter um asilo para seus membros.
                    Ao priorizar as relações profissionais dos 
                      artistas, o RA oferece a seus usuários condições de adaptação 
                      sociopsicológica melhores que as encontradas nos demais 
                      asilos filantrópicos. Segundo a pesquisadora, com a comprovação 
                      de que as instituições de natureza profissional têm condições 
                      especiais para facilitar a adaptação de seus usuários, essa 
                      ideia pode servir como referência para pensar as demandas 
                      de cuidados que os idosos brasileiros apresentam. 
                    Para Sílvia, o RA presta um serviço valioso 
                      e, de certa maneira, se constitui na casa da família à qual 
                      os velhos artistas sentem pertencer. “Embora ela possa ser 
                      imperfeita, como todas as casas de todas as famílias”, conclui.
                    ................................................
                      Publicação
                      Dissertação: “Valores e significados associados 
                      ao envelhecimento e ao asilamento em instituição de longa 
                      permanência entre artistas idosos”
                      Autora: Sílvia Patrícia Lima de Castro 
                      Pinto
                      Orientadora: Olga Rodrigues de Moraes Von 
                      Simson
                      Unidade: Faculdade de Ciências Médicas 
                      (FCM)
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