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A interface entre C&T e sociedade
Polêmicas públicas recentes a respeito
de temas ambientais (novo Código Florestal), científicos (uso
de células tronco para pesquisa) e econômicos (modelo de exploração
do petróleo do pré-sal) possuem um traço em comum: estão fortemente
relacionados a desenvolvimentos científicos e tecnológicos,
ou representam desafios à capacidade brasileira de articular
sua ciência e tecnologia (C&T) às necessidades estratégicas
do país. Pensar tais temas demanda abordagens inovadoras,
que não separem aspectos técnicos de variáveis sociais, culturais,
econômicas ou históricas. Esse desafio vem sendo enfrentado
por pensadores associados ao campo CTS (Ciência, Tecnologia
e Sociedade). Apesar de cada vez mais relevante no mundo todo,
tal abordagem ainda é relativamente pouco utilizada no país.
O contexto brasileiro atual, no entanto, demanda cada vez
mais esse tipo de reflexão, e deixar de fazê-la é uma opção
arriscada.
A recente
discussão altamente polarizada em torno do novo Código Florestal
brasileiro é exemplar da falta de articulação estratégica
entre nossas capacidades científicas e o debate público a
respeito de nossos recursos naturais. Enquanto o texto tramita
pelo Congresso, a Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência
(SBPC) e a Academia Brasileira de Ciência (ABC) alertaram,
por meio de nota divulgada no último 25 de maio, que nunca
foram chamadas a participar do debate em torno do código.
Clamam, nesse mesmo comunicado, por um período mais longo
de discussões antes da aprovação final da medida, para que
seja elaborado e aprovado um código florestal “com base científica
e tecnológica considerando aspectos jurídicos não punitivos
e com equidade econômica, social e ambiental”.
Esse
pedido não é banal, pois envolve a construção de um diálogo
ampliado em torno das formas pelas quais deveríamos explorar
nossos vastos recursos naturais; tanto para a agricultura,
área na qual o Brasil já é uma grande potência mundial, quanto
para fins mais ligados à exploração sustentável e às preocupações
ecológicas. Nossa imensa biodiversidade, por exemplo, poderia
ser fonte de novos conhecimentos em áreas tão distintas quanto
biocombustíveis, cosméticos e medicamentos. Essa lista poderia
ser expandida em muito, caso houvesse investimento estratégico
em pesquisas direcionadas a buscar formas sustentáveis de
exploração das nossas terras e florestas.
A
ausência, no debate legislativo, de importantes instituições
ligadas à C&T, que além de tudo são financiadas em boa parte
pelo próprio Estado, sugere um dilema a ser explorado: em
um contexto de crescimento econômico, quando o Brasil busca
firmar-se como país mais justo e mais desenvolvido, podemos
abrir mão de debater amplamente o uso presente e futuro de
nossos recursos naturais? Essas polêmicas, além disso, podem
ser reduzidas às suas dimensões estritamente “ambientais”,
“científicas” ou “econômicas”? Essa redução não estaria impedindo
uma compreensão mais complexa da multiplicidade de fatores
que estão em jogo nessas polêmicas, cujo desenrolar é decisivo
para nosso futuro?
Discute-se
muito no Brasil, e não sem razão, a importância de se investir
mais em educação, além de se buscar o crescimento econômico
sustentado através de um crescimento da nossa capacidade inovadora.
O que é ainda pouco debatido, no entanto, é a interface entre
a dinâmica da C&T e os problemas sócio-culturais e econômicos
a ela relacionados. Esse vácuo é especialmente nocivo quando
temos, como agora, temas de extrema relevância na pauta nacional
sendo discutidos em chaves simplistas, excluindo vozes de
extrema relevância em favor de acordos políticos de curto
prazo.
O campo
de estudos CTS vem se configurando em uma arena interdisciplinar
na qual tais questões são explicitadas de forma sofisticada,
podendo contribuir em muito para o debate em torno de problemas
na interface entre C&T e sociedade. O campo congrega desde
sociólogos, antropólogos, historiadores, até economistas,
filósofos, e cientistas políticos, articulando, em suas pesquisas,
a C&T a problemas sociais, culturais e econômicos. Desde a
compreensão de como o conhecimento científico é produzido
e demarcado da não-ciência, até a forma como é mobilizado
nas mais distintas dinâmicas sociais e políticas, estudiosos
da área de CTS vêm contribuindo sistematicamente com reflexões
sobre como a sociedade e a C&T constroem-se mutuamente; bem
como esse processo, fortemente disputado, precisa ser melhor
compreendido.
Ou seja,
nossas opções em termos de como organizamos a C&T são, ao
mesmo tempo, opções sobre que tipo de sociedade queremos.
Buscamos gerar riquezas na Amazônia a partir de atividades
que são intensivas em tecnologia, criando uma dinâmica econômica
mais sustentável? Ou optamos por usos de baixa tecnologia,
que além de tudo dependem de desmate em grande escala, gerando
danos ambientais e perda de recursos genéticos que ainda nem
conhecemos? Devemos investir em laboratórios para conhecer
e gerar riquezas a partir da nossa biodiversidade, ou optamos
por não interferir nas lógicas coloniais de ocupação destrutivas
que herdamos? Buscamos conhecer como nossas populações nativas
se relacionam com o meio natural, ou ignoramos esses saberes
tradicionais? Ou seja, nenhuma dessas questões é simplesmente
científica, tecnológica ou social: essas esferas são sempre
interrelacionadas.
Desde
pelo menos os anos 1970, a problemática ambiental vem se destacando
como uma preocupação de governos, movimentos sociais e meios
acadêmicos. O problema da poluição, a perda de biodiversidade,
o aquecimento global e mais recentemente o desenvolvimento
sustentável como forma de superar a pobreza, têm sido tópicos
de destaque no movimento ambientalista e além dele. Muitos
desses temas já foram inclusive incorporados às preocupações
correntes de políticos, consumidores, e até mesmo da cultura
popular.
Não coincidentemente,
os estudos CTS tiveram seu início associado em parte às preocupações
ambientais. Novas tecnologias, como a nuclear, cuja promessa
era a de ampliar a disponibilidade de energia limpa, rapidamente
se mostraram também fontes de novos e graves problemas, cuja
solução está longe de ser encontrada. Grandes desastres nucleares,
como Chernobyl (na antiga União Soviética) e, mais recentemente,
em Fukushima (no Japão), explicitam de forma dramática a inextricabilidade
entre questões ambientais, sociais e de C&T.
Os desastres
ocorridos na região serrana do Rio de Janeiro, por exemplo,
foram causados tanto por uma ausência de planejamento urbano
e de ocupação do solo, áreas em que o Brasil possui capacidade
científica, quanto por uma ausência de sistemas de alerta
que poderiam ter evitado um grande número de mortes. Diversas
situações semelhantes acontecem, em menor escala, praticamente
todos os anos. Por que, ainda assim, o conhecimento científico
e o planejamento urbano não dialogam de forma mais próxima,
de forma a evitar tais desastres? A compreensão de tais dilemas
requer uma atenção tanto para o “social” quanto para o “científico
e tecnológico”.
Os recentes
investimentos feitos pelo Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais (Inpe) na compra de um supercomputador (Tupã), a
fim de melhorar as previsões do tempo, sinalizam na direção
de uma preocupação maior com o uso da C&T para usos socialmente
relevantes, como a prevenção de desastres naturais. O Inpe
vem sendo também importante na política de combate aos desmatamentos
ilegais, fornecendo informações a respeito de focos de desmatamento
cada vez mais detalhados e em tempo real, possibilitando a
articulação entre instituições como o Ibama (Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis), a Polícia
Federal e o sistema judiciário no combate à destruição de
florestas.
O exemplo
do desmatamento é relevante por dois aspectos: primeiro, demonstra
a importância de investimentos em sistemas de C&T cada vez
mais complexos. O Brasil deve ter um programa espacial e a
capacidade de construir e lançar satélites, pois eles possuem
aplicações importantes nas áreas militar, ambiental e de telecomunicações.
Segundo, demonstra a urgência em debater os rumos sociais,
éticos e políticos dos novos investimentos em C&T. Uma tecnologia
como a do sensoriamento remoto, por exemplo, pode ser usada
para vigilância de fronteiras, mapeamento ou na detecção de
queimadas ilegais. Os usos dessas tecnologias dependem das
prioridades estabelecidas socialmente, e a difusão dos benefícios
que tais usos geram dependem da forma como são desenvolvidos,
organizados e utilizados.
O debate
sobre o novo Código Florestal mostra, infelizmente, a ausência
dos nossos cientistas em discussões fundamentais para o futuro
do país. Mostra também a pouca relevância atribuída ao pensamento
sobre a C&T e sua articulação com a sociedade. A ausência
de reflexão em uma área tão relevante como a do meio ambiente,
por exemplo, tem consequências imprevisíveis e irreversíveis:
a biodiversidade, uma vez extinta, não tem como ser recuperada.
O investimento sistemático em inovação tecnológica deve ser
acompanhado, portanto, do investimento em áreas como a de
CTS, como forma de construir pontes entre desenvolvimentos
na C&T e os mais diversos problemas sociais que o país enfrenta.
A exploração
de petróleo no pré-sal, a proteção e uso sustentável de nossas
florestas, o nosso programa espacial, o desenvolvimento de
novos biocombustíveis, entre tantos outros desafios do presente
(mas que ajudarão a orientar nossas opções de desenvolvimento
futuro), precisam de uma reflexão que consiga agregar, de
forma interdisciplinar, conhecimentos de uma diversidade de
áreas de especialização. Além disso, essas questões carecem
de um pensamento estratégico, para que possam gerar não apenas
ganhos econômicos momentâneos e localizados, mas que auxiliem
na construção de uma sociedade mais justa e democrática, envolvendo
a exploração sustentável do meio ambiente e a redução de desigualdades
sociais centenárias. O tipo de sociedade que desejamos depende,
em grande medida, da C&T desenvolvida, agora e no futuro.
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