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OPINIÃO

C&T e a ‘crise’: ameaça ou oportunidade?

MANUEL ALVES FILHO

Renato Dagnino é professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica, do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp (Foto: Antoninho Perri)A programada diminuição dos recursos para C&T tem sido interpretada como um impacto da “crise”. Mas qualquer observador atento percebe como a “crise” tem sido usada como pretexto para implementar medidas que contrariam interesses de alguns atores sociais e beneficiam outros. Isso fica evidente, por exemplo, no caso do emprego industrial, onde cortes programados há tempo são atribuídos à “crise”.

Se o que vem sendo programado em relação à C&T pode ser assim interpretado, cabe perguntar qual seria o real motivo subjacente ao pretexto que a “crise” proporcionou?  E qual a oportunidade que querem aproveitar os atores que participaram da decisão?

A condição periférica de nosso país, que origina a endogamia da nossa Política de C&T, limita a sua busca ao âmbito da comunidade de pesquisa. É ela que, mediante um processo complexo e pouco explícito, a elabora.

Alguns dos membros mais importantes dessa comunidade consideraram o “corte de recursos” como “irresponsável”, “um tiro no pé”, “uma aberração”, “na contramão”, “um crime”...

Seu argumento foi o tradicional discurso corporativo baseado numa cadeia causal empurrada pela “oferta” de conhecimento: a pujança científica do País levará à sua fortaleza econômica e, assim, ao bem-estar social.

Mas alguns atores dessa comunidade (ainda poucos, é verdade) parecem não interpretar o ocorrido como uma ameaça. Como ocorre com qualquer crise, preferem ver nela uma oportunidade.

Eles não aceitam aquele argumento nem a forma como hoje se aloca os recursos para C&T. Talvez por isso, ao participar da decisão que levou à sua diminuição, tenham aceitado a pressão que veio de fora da comunidade de pesquisa. Talvez vejam aí a oportunidade de provocar uma inflexão na Política ou, pelo menos, uma reflexão sobre ela.
É essa reflexão que se procura fazer aqui tomando a distância que o tempo permite.
Um artigo publicado na Folha de S. Paulo em 25/1 por Marco Antonio Raupp e Alaor Chaves – “Congresso penaliza ciência e tecnologia” – vai além da censura e termina com uma quase-ameaça: “É imperativo que se reveja o orçamento para C&T se o Brasil quer manter as esperanças de se tornar em breve mais inovador e competitivo”.

Até aí, nada de novo...

A novidade apareceu num artigo do dia seguinte no Jornal (eletrônico) da SBPC, de menor circulação, de Jacob Palis e Marco Antonio Raupp, presidentes da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência.

Nele inicialmente se afirma, como de costume, que o gasto em C&T é condição “para tornar o Brasil uma nação forte economicamente e socialmente justa”. Mas depois, o que é incoerente com a visão-padrão, que existiria uma “correlação riqueza-investimento em C&T” e não uma causalidade!  

É a primeira vez que se reconhece que entre o PIB per capita e o dispêndio em C&T dos países há uma correlação, como evidenciam comparações estáticas (para um mesmo ano) que há muito vem mostrando esses dois indicadores. E não uma relação de causa e efeito! O que o artigo dá corretamente a entender é que o desenvolvimento socioeconômico não pode ser assumido como uma consequência do aumento do gasto em C&T de um mesmo país; ou que sua redução implique o contrário.

Embora aparentemente insignificante, essa declaração é alvissareira: ela talvez se deva a um aumento da influência daqueles poucos atores contrários ao discurso linear, ufanista, corporativo e equivocado que ainda orienta nossa política de C&T.

Eles sabem que uma causalidade – temporal e para um mesmo país – entre os dois indicadores nunca foi verificada através de um estudo econométrico plausível; muito menos, empiricamente. Que um modelo que explicasse aquela relação teria que ser muito mais complexo; que ele deveria incluir outras variáveis; que provavelmente só ultrapassando umbrais de natureza, social, política e econômica uma causalidade poderia ser assumida. E que talvez ela seja no sentido inverso: países mais ricos gastam mais em C&T como o fazem em arte, cultura...; ou porque neles a comunidade de pesquisa logra um grau de profissionalização e influência maior.

Por serem bem informados, eles sabem também que há uma vasta literatura, produzida inclusive na América Latina, que vem questionando faz tempo aquela causalidade. E que existem cada vez mais evidências empíricas produzidas por instituições como o IBGE de que ela, pelo menos por aqui, não se verifica.

Mais do que isso, aqueles ainda poucos, sabem que o “discurso da causalidade” em vez de basear-se em “argumentos científicos” e em dados empíricos é fruto de uma crença que possuem os que, por alguma razão, o adotam. Uma concepção que, apesar de ampla e consistentemente questionada, segue insistindo que a C&T são neutras (imunes a valores e interesses econômicos e políticos) e dotadas de uma dinâmica que empurra inexoravelmente a sociedade para um futuro sempre melhor.

Sabem também que só o abandono dessa concepção poderá deslocar a ênfase da Política de C&T em soluções tecnológicas para aumentar o lucro de empresas que vivem na periferia do capitalismo na direção daquelas que, mais originais, criativas e intensivas em conhecimento, são necessárias para promover o desenvolvimento justo, igualitário e sustentável que a sociedade reclama.

A cautela dos dois representantes da comunidade de pesquisa que timidamente ainda substituíram “causalidade” por “correlação” mostra que existe debate. E que nele parecem ganhar força os ainda poucos que se agrupam em torno de propostas como a da Tecnologia Social. Atores engajados no desenvolvimento de C&T que, em consonância com as políticas sociais impulsionadas pelo governo e com a participação dos empreendimentos solidários, proporcione oportunidades de trabalho e renda, e vida melhor, para o conjunto da população.

 
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