C&T e a ‘crise’: ameaça ou oportunidade?
                    MANUEL ALVES FILHO
                     A 
                       programada diminuição dos recursos para C&T 
                      tem sido interpretada como um impacto da “crise”. Mas 
                      qualquer observador atento percebe como a “crise” tem 
                      sido usada como pretexto para implementar medidas que contrariam 
                      interesses de alguns atores sociais e beneficiam outros. 
                      Isso fica evidente, por exemplo, no caso do emprego industrial, 
                      onde cortes programados há tempo são atribuídos à “crise”.
A 
                       programada diminuição dos recursos para C&T 
                      tem sido interpretada como um impacto da “crise”. Mas 
                      qualquer observador atento percebe como a “crise” tem 
                      sido usada como pretexto para implementar medidas que contrariam 
                      interesses de alguns atores sociais e beneficiam outros. 
                      Isso fica evidente, por exemplo, no caso do emprego industrial, 
                      onde cortes programados há tempo são atribuídos à “crise”. 
                      
                      
Se o que vem sendo programado em relação à C&T pode ser  assim interpretado, cabe perguntar qual seria o real motivo subjacente ao  pretexto que a “crise” proporcionou?  E  qual a oportunidade que querem aproveitar os atores que participaram da  decisão?
A condição periférica de nosso país, que origina a endogamia  da nossa Política de C&T, limita a sua busca ao âmbito da comunidade de  pesquisa. É ela que, mediante um processo complexo e pouco explícito, a  elabora. 
Alguns dos membros mais importantes dessa comunidade consideraram  o “corte de recursos” como “irresponsável”, “um tiro no pé”, “uma aberração”,  “na contramão”, “um crime”... 
Seu argumento foi o tradicional discurso corporativo baseado  numa cadeia causal empurrada pela “oferta” de conhecimento: a pujança  científica do País levará à sua fortaleza econômica e, assim, ao bem-estar  social.
Mas alguns atores dessa comunidade (ainda poucos, é verdade)  parecem não interpretar o ocorrido como uma ameaça. Como ocorre com qualquer  crise, preferem ver nela uma oportunidade.
Eles não aceitam aquele argumento nem a forma como hoje se  aloca os recursos para C&T. Talvez por isso, ao participar da decisão que  levou à sua diminuição, tenham aceitado a pressão que veio de fora da  comunidade de pesquisa. Talvez vejam aí a oportunidade de provocar uma inflexão  na Política ou, pelo menos, uma reflexão sobre ela.
É essa reflexão que se procura fazer aqui tomando a distância  que o tempo permite.
Um artigo publicado na Folha  de S. Paulo em 25/1 por Marco Antonio Raupp e Alaor Chaves – “Congresso  penaliza ciência e tecnologia” – vai além da censura e termina com uma quase-ameaça:  “É imperativo que se reveja o orçamento para C&T se o Brasil quer manter as  esperanças de se tornar em breve mais inovador e competitivo”.
Até aí, nada de novo...
A novidade apareceu num artigo do dia seguinte no Jornal  (eletrônico) da SBPC, de menor circulação, de Jacob Palis e Marco Antonio Raupp,  presidentes da Academia Brasileira de Ciências e da Sociedade Brasileira para o  Progresso da Ciência. 
Nele inicialmente se afirma, como de costume, que o gasto em  C&T é condição “para tornar o Brasil uma nação forte economicamente e  socialmente justa”. Mas depois, o que é incoerente com a visão-padrão, que  existiria uma “correlação riqueza-investimento em C&T” e não uma causalidade!  
É a primeira vez que se reconhece que entre o PIB per capita  e o dispêndio em C&T dos países há uma correlação, como evidenciam comparações  estáticas (para um mesmo ano) que há muito vem mostrando esses dois indicadores.  E não uma relação de causa e efeito! O que o artigo dá corretamente a entender  é que o desenvolvimento socioeconômico não pode ser assumido como uma consequência  do aumento do gasto em C&T de um mesmo país; ou que sua redução implique o  contrário.
Embora aparentemente insignificante, essa declaração é  alvissareira: ela talvez se deva a um aumento da influência daqueles poucos  atores contrários ao discurso linear, ufanista, corporativo e equivocado que  ainda orienta nossa política de C&T.
Eles sabem que uma causalidade – temporal e para um mesmo  país – entre os dois indicadores nunca foi verificada através de um estudo econométrico  plausível; muito menos, empiricamente. Que um modelo que explicasse aquela relação  teria que ser muito mais complexo; que ele deveria incluir outras variáveis;  que provavelmente só ultrapassando umbrais de natureza, social, política e  econômica uma causalidade poderia ser assumida. E que talvez ela seja no  sentido inverso: países mais ricos gastam mais em C&T como o fazem em arte,  cultura...; ou porque neles a comunidade de pesquisa logra um grau de  profissionalização e influência maior. 
Por serem bem informados, eles sabem também que há uma vasta  literatura, produzida inclusive na América Latina, que vem questionando faz  tempo aquela causalidade. E que existem cada vez mais evidências empíricas produzidas  por instituições como o IBGE de que ela, pelo menos por aqui, não se verifica.
Mais do que isso, aqueles ainda poucos, sabem que o “discurso  da causalidade” em vez de basear-se em “argumentos científicos” e em dados  empíricos é fruto de uma crença que possuem os que, por alguma razão, o adotam.  Uma concepção que, apesar de ampla e consistentemente questionada, segue insistindo  que a C&T são neutras (imunes a valores e interesses econômicos e políticos)  e dotadas de uma dinâmica que empurra inexoravelmente a sociedade para um  futuro sempre melhor.
Sabem também que só o abandono dessa concepção poderá deslocar  a ênfase da Política de C&T em soluções tecnológicas para aumentar o lucro  de empresas que vivem na periferia do capitalismo na direção daquelas que, mais  originais, criativas e intensivas em conhecimento, são necessárias para promover  o desenvolvimento justo, igualitário e sustentável que a sociedade reclama.
A cautela dos dois representantes da comunidade de pesquisa  que timidamente ainda substituíram “causalidade” por “correlação” mostra que existe  debate. E que nele parecem ganhar força os ainda poucos que se agrupam em torno  de propostas como a da Tecnologia Social. Atores engajados no desenvolvimento  de C&T que, em consonância com as políticas sociais impulsionadas pelo  governo e com a participação dos empreendimentos solidários, proporcione  oportunidades de trabalho e renda, e vida melhor, para o conjunto da população.