Pesquisa detecta alterações que
precedem retinopatia diabética
Pesquisa desenvolvida na FCM demonstrou mudanças celulares e moleculares na retina
LUIZ SUGIMOTO
A
retinopatia é uma complicação visual progressiva
associada ao diabetes e atualmente atinge proporções epidêmicas
no mundo, com impacto econômico importante, sendo a primeira
causa de cegueira em pessoas na idade produtiva em países
desenvolvidos. Um estudo realizado na Unicamp demonstrou
alterações moleculares e celulares na retina que precedem
as alterações clássicas iniciais presentes na retinopatia
diabética, e os efeitos protetores do uso de bloqueador
do receptor de angiotensina (losartan), medicação utilizada
no tratamento da hipertensão arterial. Os dados obtidos
em ensaios com animais diabéticos e hipertensos foram recentemente
publicados na versão on-line da Diabetes,a
revista de maior impacto na área.
O estudo foi financiado pela Fapesp e desenvolvido integralmente por pesquisadores do Laboratório de Fisiopatologia Renal, que é chefiado pelo professor José Butori Lopes de Faria e vinculado à disciplina de Nefrologia da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) e que há quinze anos investiga complicações causadas pelo diabetes, como a renal (nefropatia) e a perda da acuidade visual (retinopatia). Dados atuais indicam que 8% dos brasileiros têm diabetes, principalmente na sua forma adulta (tipo 2) e que geralmente é acompanhada de obesidade e hipertensão arterial.
“A hipertensão arterial é o fator de risco associado à hiperglicemia mais importante para o desenvolvimento e progressão da retinopatia. A presença da hipertensão é muito frequente na população diabética e seu controle reduz em até 35% o risco de desenvolvimento de retinopatia diabética nestes pacientes. A retinopatia acomete virtualmente 100% dos pacientes diabéticos, mas somente um subgrupo de 60% irá desenvolver formas graves que podem levar à perda irreversível da visão por hemorragia vítrea e descolamento de retina”, afirma a oftalmologista e professora Jacqueline Mendonça Lopes de Faria, que figura entre os autores do artigo.
Na opinião da pesquisadora da FCM, a hipertensão, portanto, é um fator de risco tão importante para o desenvolvimento da retinopatia quanto a própria hiperglicemia. “Nossas pesquisas estão voltadas para os mecanismos que originam esta doença, a fim de propor ações e tratamentos. Para isso, recorremos a modelos animais tornados diabéticos experimentalmente e geneticamente hipertensos, que nos aproximam muito da realidade da maioria dos pacientes diabéticos”.
Jacqueline Lopes de Faria informa que o Laboratório de Fisiopatologia Renal vem demonstrando a ocorrência de fenômenos inflamatórios e oxidativos na retina que precedem as manifestações da retinopatia diabética. “Antes de se observar qualquer alteração na retina (como um ponto de hemorragia ou exudato retiniano), já existem alterações em níveis moleculares e celulares, e é neste ponto que precisamos atuar: antes do desenvolvimento da complicação, quando ainda não existe comprometimento visual”.
No estudo publicado na Diabetes, os pesquisadores da Unicamp descrevem os mecanismos pelos quais as drogas que atuam no sistema renina-angotensina, usadas no tratamento da hipertensão arterial, protegem a retina dos efeitos do diabetes e da hipertensão. Para isso, foram realizados experimentos com ratos divididos em dois grupos: um deles recebeu o tratamento com losartan e o outro grupo (placebo), somente água. “A partir da indução de diabetes, eles foram tratados com o anti-hipertensivo, não apenas com o objetivo de baixar a pressão, mas para observar os mecanismos de ação da droga na retina”.
Depois de um acompanhamento de doze semanas, como acrescenta a oftalmologista e pesquisadora, foram realizadas as análises da retina através de técnicas em biologia molecular. “Observamos que os ratos tratados com losartan foram protegidos das lesões na retina secundárias ao diabetes e, mais importante, demonstramos que isto se deveu à redução do estresse oxidativo mitocondrial”.
Estudo clínico – Segundo Jacqueline Lopes de Faria, o trabalho da Unicamp despertou muito interesse no congresso EASD (European Association for Study of Diabetes), realizado em Roma no ano passado. Isto porque no mesmo evento foram apresentados pela primeira vez os resultados do Direct (Diabetic Retinopaty Candesartan Trial). Este recente estudo clínico, com o uso de candesartan (semelhante ao losartan), revelou que o controle da pressão arterial preveniu em 35% a incidência de retinopatia em pacientes com diabetes tipo 1 (juvenil) e retardou sua progressão das formas leves em diabéticos tipo 2 (adulto).
“O Direct acompanhou grande número de pacientes diabéticos e foi publicado na prestigiosa Lancet. O que a nossa pesquisa experimental demonstra são exatamente os mecanismos de ação desta droga na retina, o que obviamente não seria possível com pessoas. São estudos que se complementam para ajudar a aprimorar alternativas terapêuticas para esta complicação, que antes não podiam ser propostas por falta de dados científicos. Agora temos a observação clínica corroborada por uma demonstração de ciência básica”, diz a pesquisadora da FCM.
A especialista explica que a retinopatia diabética desenvolve-se lentamente no início, mas que sem tratamento adequado atinge graus avançados e pode implicar em perda abrupta da visão, secundário a hemorragia vítrea ou descolamento de retina. “É bom lembrar que a doença acomete também o adulto jovem. Nos Estados Unidos, onde existem dados muito robustos e organizados de saúde pública, esta complicação é a principal causa da perda de força de trabalho por deficiência visual”.
Sinalizador – De acordo com a pesquisadora, a retinopatia diabética acomete primariamente as células neurais e a microvasculatura da retina, sendo, portanto, um “sinalizador” do que está ocorrendo na microcirculação do coração e também do cérebro. “Sem considerar este aspecto sistêmico, não conseguiremos tratar a doença de maneira adequada. Assim, o tratamento dos pacientes diabéticos que apresentam retinopatia deve contemplar a assistência multidisciplinar, envolvendo diabetologista, nefrologista, cardiologista, nutricionista, etc.”.
Outra manifestação da retinopatia diabética, como explica Jacqueline de Faria, é o edema macular, uma alteração que ocorre na área central da retina, a mácula, causando redução visual importante. “A mácula é a região inicialmente acometida pelos efeitos da hiperglicemia, que leva à dificuldade de visão para perto. Como a alteração retiniana não visível a olho nu, ela costuma ser confundida com a simples presbiopia (mais conhecida como ‘vista cansada’) em pessoas com 40 anos ou mais”.
A docente adverte que, muitas vezes, pode haver algum comprometimento no fundo do olho por causa da retinopatia diabética. Daí, a importância da informação, não apenas entre os pacientes que apresentam diabetes, mas também entre os médicos que os assistem. “E imprescindível o exame oftalmológico anual, incluindo avaliação de fundo-de-olho nos diabéticos. Isto não pode ser negligenciado pelo médico e deve ser cobrado pelo paciente”.
Opções de tratamento não são as ideais
Jacqueline Lopes de Faria reitera que a idéia dos pesquisadores é desenvolver tecnologias para um diagnóstico e um tratamento mais precoces, que evitem ou pelo menos diminuam a progressão da retinopatia diabética para a cegueira. “Logicamente, antes de tudo é preciso controlar o próprio diabetes (glicemia), que é uma doença sistêmica e atinge vários órgãos, como o rim. Seria incoerente tratar a retina se causas básicas como o diabetes e a hipertensão não são adequadamente tratados”.
Entretanto, uma vez instalada a retinopatia diabética, a professora informa que atualmente existem apenas duas opções de tratamento: aplicação de laser na retina ou o uso de drogas intraoculares. “Ambas as opções não são as ideais, já que a primeira lesa irreversivelmente a retina sadia e a segunda implica numa cirurgia ocular, com todas as possíveis complicações associadas a este tipo de procedimento”.
Na falta de tratamentos satisfatórios, o grupo de pesquisadores do Laboratório de Fisiopatologia Renal, assim como outros nos Estados Unidos, Europa, Austrália e Japão vêm se concentrando em esclarecer melhor os eventos iniciais que ocorrem na retinopatia diabética, a fim de desenvolver alternativas farmacológicas que atuem nestas fases mais precoces, quando a visão está ainda preservada.
“Nosso grupo continuará empenhado em entender melhor a patogênese da doença, ou seja, estudando as suas formas iniciais. Estamos testando, por exemplo, protocolos para avaliar o impacto da nutrição nas complicações microvasculares do diabetes, a nefro e a retinopatia”, adianta Jacqueline de Faria, ressaltando que o trabalho publicado na Diabetes gerou uma tese de doutorado, uma dissertação de mestrado e um trabalho de iniciação científica.