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Lume disseca a natureza humana

Tese analisa contribuição do grupo, que faz 25 anos
e tornou-se referência da cena teatral

LUIZ SUGIMOTO


Cenas do espetáculo O Sonho de Ícaro, que reuniu integrantes de grupos teatrais do distrito de Barão Geraldo durante o Feverestival e abriu as comemorações dos 25 anos do Lume. Foto: DivulgaçãoO Lume (Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais) da Unicamp comemora seus 25 anos no dia 11 de março. Idealizado pelo ator, diretor e pesquisador Luís Otávio Burnier, falecido em 1995, o núcleo vem contribuindo de forma importante com as artes cênicas no país, ao elaborar e codificar técnicas corpóreas e vocais de representação, oferecendo cursos a milhares de atores. Ao redor de sua sede em Barão Geraldo (distrito de Campinas onde fica a Unicamp), constituiu-se um vigoroso pólo teatral, com 11 grupos e sete espaços de apresentação.

Como que fazendo parte da celebração dos 25 anos, surge uma densa pesquisa de doutorado sobre o núcleo, que certamente contribuirá para difundir ainda mais a sua metodologia: A liminaridade na profissão do ator: a experiência do Lume-Unicamp, de Luiz Fernando Nöthlich de Andrade, que concede entrevista nesta página. A tese, defendida no último dia 26 no Instituto de Artes (IA), foi orientada pela professora Suzi Frankl Sperber.

A docente do IA, que coordenou o Lume de 1996 até a aposentadoria em março do ano passado, afirma que a tese traz uma análise profunda da contribuição do núcleo da Unicamp para o conhecimento da arte do ator. “Luiz Andrade recorre ao conceito extremamente rico de liminaridade e de communitas, do antropólogo Victor Turner, para explicar o fenômeno Lume.

O fenômeno, segundo Suzi Sperber, é que enquanto pesquisadores de outros centros e núcleos da Unicamp, por vezes, desenvolvem seus projetos na solidão, os integrantes do Lume atuam efetivamente dentro do conceito de interdisciplinaridade, mantendo ainda um repertório com vários espetáculos. É uma pesquisa de campo que envolve a observação de outros grupos humanos. O mergulho dos nossos pesquisadores é muito mais profundo: além da literatura e dos relatos, eles escrevem no próprio corpo o que está no corpo do outro; é uma colagem, com o andar de um, o olhar do outro”.

A professora observa que o Lume possui um grupo de atores que trabalham juntos há muito tempo, tendo superado diversos momentos de tensão, a começar com o vivido pela perda do fundador Burnier. “Era complicado manter o grupo unido. Havia o trabalho, a manutenção e as despesas da sede, a falta de vínculo empregatício com a Universidade (o que vem sendo resolvido). É uma convivência que exige senso de solidariedade, fraternidade, participação e respeito. O resto foi conquistado com projetos temáticos junto à Fapesp.

De acordo com Suzi Sperber, tudo isso foi pesquisado por Luiz Andrade, visto que cabia nos conceitos de Turner, que estudou a dependência dos grupos indígenas em relação a rituais e respeito a normas. O indivíduo que vive numa comunidade normal se transforma quando cruza o pórtico da igreja e entra no espaço sagrado. O Lume funciona como uma communitas que possui esse espaço de liminaridade, um lugar de caos frutífero em que as ideias podem ser acessadas e usadas com liberdade. Isso torna explicável o seu funcionamento sem atritos.

Luiz Fernando Nöthlich de Andrade, autor da pesquisa: novas perspectivas para o trabalho criativo (Fotos: Antônio Scarpinetti) Jornal da Unicamp – O que o motivou a estudar o grupo Lume?
Luiz Fernando Nöthlich de Andrade – Conheci o grupo Lume em 1991, época em que havia apenas começado a estudar teatro na Escola Livre de Santo André. Foi num curso de ‘clown’, no qual os participantes passavam por uma espécie de retiro de duas semanas numa fazenda, trabalhando em tempo integral. Esse curso marcou profundamente tanto a minha pessoa como as minhas escolhas profissionais e artísticas posteriores como ator e pesquisador. A experiência ali naquela fazenda em Louveira foi toda ela conduzida por Luís Otávio Burnier, o idealizador do Lume.

Quando entrei no curso de graduação da Unicamp, em 1998, havia vivenciado uma série de outras experiências teatrais que apontavam para algo que queria estudar mais profundamente; que intuía que era importante, mas que ainda não conseguia formular em palavras. Aos poucos começou a se delinear um interesse antropológico e psicológico sobre os processos criativos que sustentam a criação cênica do ator.

Fator fundamental na consolidação e formulação desse interesse foi a leitura do livro O Processo Ritual de Victor Turner, antropólogo de origem britânica que fez pesquisas de campo junto a tribos africanas, na década de 50, e mais tarde dirigiu parte de seus interesses para as evidentes relações de parentesco que existem entre o teatro e o ritual.

No mestrado em 2003, que se tornou em seguida doutorado direto, reconheci que o Lume, como centro de excelência em pesquisas sobre a arte do ator, seria um campo de investigação muito favorável a um projeto de pós-graduação dessa natureza. Além disto, pessoalmente, as experiências e vivências práticas que havia tido com o Lume, anteriormente, davam-me uma grande segurança para navegar pela pesquisa e pela escrita da tese sem maiores receios.

JU – Pode comentar os principais aspectos da pesquisa, como por exemplo, os conceitos de liminaridade e ‘communitas’?

Andrade – São dois conceitos que Turner usa em O Processo Ritual e os desenvolve ao longo de toda a sua carreira de antropólogo. Estão associados diretamente às experiências práticas rituais que testemunhou nas tribos africanas que pesquisou; mas também, como ele mesmo demonstra, estas palavras-conceitos estão ligadas a uma possível qualidade de existência e relação humana que fundamenta práticas religiosas, filosóficas e artísticas da história da humanidade de todos os tempos, tanto no Ocidente como no Oriente.

No ‘processo ritual’, quando uma pessoa ou grupo se afasta da estrutura social cotidiana que é organizada por papéis, regras, status, valores, etc; e entra num novo e imediato domínio cultural que lhe proporciona valores e experiências existenciais diretamente ligadas à sua pessoa e à cosmologia do grupo em questão; esse período de ambiguidade e marginalidade (em relação à vida cotidiana) é dito um período de ‘liminaridade’. Esse período se encerra com o fim do ritual, quando cada participante volta a ocupar seu papel na estrutura social cotidiana, potencialmente transformado pela experiência ritual.

A ‘communitas’ emerge deste tipo de processo e ocorre, fundamentalmente, quando lidamos com os outros a partir desta experiência ‘liminar’. Tratamos os outros como eles são e não como projetamos que eles sejam. Diz Turner: ’communitas’ é “uma relação direta, imediata e total de identidades humanas.”

Ao lidar com o ‘processo artístico’ do ator, na tese, eu o estudo utilizando estes conceitos. Noto-o como um processo através do qual um ator se afasta da sua personalidade social cotidiana e descobre, nele mesmo, novas perspectivas e qualidades de ser e estar até então desconhecidas ou esquecidas, que o capacitam ao trabalho criativo.

Algumas pesquisas teatrais do século XX, desde Stanislavski, trabalharam nesta direção. Buscaram encontrar um ator que não fosse um simples imitador de tipos ou um mero reprodutor de clichês da cena tradicional; mas que fosse um ator criativo e revelador da natureza humana em todos os seus mais diferentes e contraditórios aspectos. Surgia, a partir desta meta, a necessidade de uma espécie de ‘trabalho do ator sobre ele mesmo’ para que tal qualidade de comunicação direta, imediata e total com o espectador se efetuasse.

Procuro, como Turner, na filosofia e na religião (oriental e ocidental) e em algumas tradições esotéricas (em Gurdjieff e na yoga, por exemplo) registros que possivelmente sejam precursores deste processo (de trabalho sobre si mesmo) que, não sendo propriamente do teatro, chegou ao teatro em alguns momentos da sua história, notadamente através de Stanislavski e Grotowski.

A partir deste ponto passo a investigar sobre a existência e a importância desse processo também dentro da pesquisa artística desenvolvida pelo Lume, a qual foi novamente vivenciada na prática e na teoria. Luís Otávio Burnier em sua tese, por exemplo, fala em acordar a ‘pessoa’ do ator e dinamizar suas ‘energias potenciais’ mais profundas utilizando o ‘treinamento energético’, uma espécie de trabalho psicofísico que ultrapassa limites de exaustão física do ator. Busco, por exemplo, as razões pelas quais esse tipo de treinamento poderia ser chamado de uma espécie de técnica psicofísica vertical, com evidentes traços de liminaridade, ‘communitas’ e trabalho (pessoal) sobre si mesmo.

JU – Em que medida seu trabalho pode contribuir para difundir ainda mais os métodos do Lume?

Andrade – Na medida em que exponho a fragilidade de um ‘método’ que se fecha sobre si mesmo e que se enrijeça sobre uma forma estabelecida; eu creio estar evidenciando as qualidades do trabalho do Lume. O título da tese, “A liminaridade na profissão do ator”, chama a atenção para isto. Mesmo que um ator saiba muito sobre os truques da profissão, mesmo que ele possua técnicas vocais e corporais virtuosas, mesmo que ele tenha muito experiência acumulada ao longo dos anos, se ele quer ser realmente criativo ele deve, necessariamente, transitar por uma espécie de experiência liminar. Ali ele, intencionalmente, vivencia o não-saber as coisas premeditadamente; ali ele deixa de lado as expectativas e ansiedades de sua personalidade social; ali ele entra em relação sincera consigo mesmo; ali ele entra em relação com “você”, o que significa relacionar-se com uma pessoa ou cena que está diante de si neste momento presente e inteiramente novo, já que ele nunca ocorreu antes.

Acredito que vivenciar e experimentar o ‘eterno agora’ é, de fato, e no limite, o desafio proposto a todo e qualquer ser humano que busca razões éticas para o seu existir pessoal e profissional. Parece-me, também, que o teatro de pesquisa laboratorial – como esse praticado pelo Lume – ainda que quase artesanal e de pequena escala pública, seja uma das expressões artísticas que mais pode evidenciar este desafio e encorajar-nos em sua direção. Vejo que nós, que vivemos nesses tempos modernos, carecemos muito deste impulso.

 

 
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