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Cabras marcados pelo estigma
Tese defendida no IEL
mostra como setores da mídia
tratam o Nordeste de forma pejorativa
ISABEL
GARDENAL
Não
foi somente o fato de ser um nordestino de Fortaleza e ter
orgulho de sua terra que motivou o linguista Daniel do Nascimento
e Silva a refutar em sua tese de doutorado a imagem do Nordeste
retratada pejorativamente por segmentos da mídia impressa
no Brasil. Sua pesquisa, apresentada no Instituto de Estudos
da Linguagem (IEL) da Unicamp, teve como uma das principais
conclusões a de que o Nordeste é apresentado na mídia como
um território do passado, violento e da fome, no limiar entre
a vida e a morte. E foi justamente este limiar que mais chamou
a atenção de Silva, justamente porque, segundo o linguista,
os nordestinos, estando nesta zona limítrofe, apresentam-se
como possibilidade de crítica aos princípios desiguais da
modernidade, pautada numa ideia de vida que triunfa sobre
a morte.
A tese, orientada pelo professor
do IEL Kanavillil Rajagopalan, alinhava o tema tomando como
amostras dois jornais de São Paulo e um do Rio de Janeiro,
além de uma revista de circulação nacional. Por vezes,
o autor se amparou em outras mídias, como o Portal Centro
de Mídia Independente, para obter dados subsidiários. Silva
fez uma pesquisa documental. Trabalhou ainda com um corpus
paralelo: o corpus literário, que se justifica, conforme
o autor, para tentar compreender as condições históricas
da inteligibilidade do Nordeste, uma memória que deve ser
recuperada. Empregou ainda algumas renomadas obras literárias
de autores que mostram o surgimento da figura do nordestino.
São elas, dentre outras, Vidas Secas, de Graciliano
Ramos, e A Fome, de Rodolfo Teófilo, as quais ajudaram
a dar sustentação a um capítulo especial sobre a história
do Nordeste.
O linguista também recorreu
a autores internacionais como Judith Butler, filósofa pós-estruturalista
e crítica feminista da Universidade da Califórnia, em Berkeley,
para quem a linguagem fere e pode machucar tanto quanto a
agressão física, seja por meio de ofensa, de chistes ou da
desvalorização. Para a filósofa, nenhum termo pode ferir sem
uma dissimulada historicidade da força. “Se o termo fere,
é porque no fundo carrega consigo uma história que foi sutilmente
apagada para poder machucar. É o caso das palavras que evocam
o racismo, baseadas na história da escravidão”.
Violência
Um dos termos que mais se sobressaiu na tese de Silva foi
a “violência”, dele resultando as intenções de setores da
mídia de tratar os nordestinos como cidadãos de segunda classe,
como pessoas inferiores, preguiçosas e mortas de fome, que
vêm para o Sudeste a fim de sobreviver ou para se dar bem
na vida.
O
linguista explica que a violência linguística funciona de
modo semelhante ao da linguagem. Como seres constituídos por
uma língua articulada, ao não fazer uso da linguagem, deixaríamos
de ser humanos, questão fundamental encontrada na Linguística.
Mas o que não se sabe é que esta constituição não se dá de
uma maneira tranquila. Para Judith Butler, engastada em Jacques
Lacan, o nome é uma forma de interpelação: ele é dado às pessoas
quando nascem e é uma marca que se carrega para o resto da
vida, seja positiva ou negativamente. “Por mais que se escolha
um apelido, o nome continuará existindo”, conta. Judith Butler
vai mais fundo e radicaliza Lacan sustentando que o nome não
é apenas a primeira forma de interpelação, senão também a
primeira forma de violência linguística que se aprende.
Outro objetivo da tese foi
elucidar como a descrição sobre o Nordeste e o nordestino
relacionava-se com a construção da modernidade e dos modernos
no Brasil, já que a região, desde a sua invenção discursiva,
no fim da década de 1910, comparece nos meios de comunicação
como o território do passado. “A descrição está relacionada
com a própria constituição de uma hegemonia, que é linguisticamente
visível”, avalia o pesquisador. Um outro objetivo consistiu
ainda em tentar perceber a subjetividade nordestina e como
esta, em última instância, pode ser vista como uma forma de
crítica a este modelo moderno e liberal do sujeito que a mídia
apregoou.
Ao tentar entender por que
o Nordeste comparece na mídia como território do passado,
da violência, da fome e da morte, o linguista percebeu algo
curioso. Os mesmos termos que compareciam na arte como forma
de crítica, são usados na mídia para ferir. Na pintura
de João Cândido Portinari, por exemplo, boa parte da sua
obra era dedicada às causas sociais e muitos dos seus quadros
tinham como inspiração o Nordeste. Num dos mais expressivos,
Retirantes, os nordestinos são mostrados como verdadeiros
mortos-vivos ou fantasmas fugindo da seca. No entanto, na
mídia, essa imagem assume outro valor. Numa das publicações
estudadas, do ano de 1969, a reportagem tematiza “milhões
de nordestinos praticamente mortos”. Já na década de 80,
famílias nordestinas são retratadas nos termos de uma morte
que está sempre à espreita.
A forma como a pintura e a
literatura tratam desta indistinção entre vida e morte – a
sobrevida – é muito diferente da mídia. Na literatura, observa
o pesquisador, existe um tratamento especial da palavra. Graciliano
Ramos, que fala da morte em Vidas Secas, no fundo faz uma
crítica social. “Ali o nordestino que sofre e está à beira
da morte é tomado como exemplo para questionar a própria subjetividade
humana. Na realidade, todas as pessoas se deparam com situações
assim, como a própria incerteza da continuidade da vida. Temos
algumas garantias, mas não todas”, expõe o linguista.
Ainda em Vidas Secas,
o narrador fica se perguntando se o personagem Fabiano algum
dia se tornará homem ou se será sempre o mesmo, “um cabra
governado pelos outros”. Na adaptação para o cinema, a
personagem sinhá Vitória, sua mulher, questiona o marido
se um dia eles terão uma cama de gente. Em todo o percurso,
o marido pouco fala. “A intenção no texto é que o humano
seja menos expressivo que um animal. Até a cachorra Baleia
consegue ser mais comunicativa que ele”, alude. Por outro
lado, “na mídia há uma recontextualização dessas imagens com
a finalidade de ferir.”
Esse
modo conflitante de ver o nordestino surpreendeu mesmo o linguista,
visto que a mídia, a literatura e a pintura estavam tratando
do mesmo assunto. Aparentemente, Gilmara Cerqueira, uma personagem
nordestina entrevistada em 2006 por um dos veículos avaliados,
em texto que apontava o perfil do eleitor do próximo presidente,
que veio a ser Lula, era descrita de uma forma muito semelhante
ao relato de Macabéa, de Clarice Lispector, em A Hora
da Estrela, uma nordestina que migra para o Rio de Janeiro.
“Macabéa não sabia se o céu era para cima ou para baixo”,
contextualiza. Comparativamente a ela, no texto, Gilmara não
sabia o que era o mensalão. “Pegando-se as situações
literalmente, elas podiam ser até muito parecidas, porém
os propósitos eram muito diferentes na mídia, pela forma
dissimulada de uso de uma historicidade para ferir.”
Contextualização
Silva estudou o filósofo Jacques Derrida. O teórico afirma
que, quando uma palavra é tirada de um lugar e levada para
outro, a sua estrutura rompe com o contexto original. A isso
ele chama “iterabilidade”, que é uma condição de possibilidade
da própria linguagem, submetendo a palavra à lógica da repetição
e da alteridade. “Você recontextualiza, mas rompe com o original.
Assim, a mídia usa os termos da inteligibilidade do Nordeste
e rompe com seus propósitos originais, com a finalidade de
excluir”, explica.
Vítima desse comportamento,
o pesquisador ouviu muito as pessoas dizerem na cidade de
São Paulo que os nordestinos deveriam agradecer por virem
trabalhar nas portarias de prédios e por não estarem no Nordeste
morrendo de fome. Quando queriam se identificar com o linguista
diziam então que ele não parecia nordestino. “Dizer que todo
nordestino é igual é um dos princípios da discriminação e
é simplista demais”, realça.
Indagado se ele foge ao estereótipo
difundido pela mídia, Silva diz que em parte não. Veio de
uma classe social baixa de Fortaleza, o pai ficou desempregado
por muito tempo e foi criado pela família paterna. A avó trabalhava
como autônoma e o avô como carpinteiro. “Se eu tivesse dez
anos neste contexto das políticas sociais, eu me enquadraria
naquela classe social que teria hoje direito a uma bolsa-família”,
conta. “Sou um exemplo vivo de que as pessoas podem alcançar
seus objetivos, não apenas sonhar. Além de ter estudado em
escola pública na infância, também ingressei em Universidade
pública.” Teve algumas oportunidades, e com o apoio que recebeu
as empregou positivamente.
Preconceito
Em uma das suas análises, Silva notou mudança de enfoque entre
a revista e os jornais escolhidos. Um dos jornais de São Paulo
era muito explícito em questões de preconceito. Outro, mais
sutil, não deixou de dar mostras disso. Ao abordar a distribuição
dos eleitores para os candidatos Alckmin e Lula, nas últimas
eleições, o jornal designou o grupo de eleitores de Alckmin
de “espectro”. Já os eleitores de Lula foram chamados de “mancha”.
Estas metáforas foram amplamente empregadas no texto. O “espectro”
era utilizado como sinônimo de luz e, “mancha”, como algo
indesejado.
Todos
os veículos de comunicação avaliados, diz o linguista, reforçaram
o perfil do nordestino como pobre, morto de fome, atrasado,
inculto e ingênuo. “Temos que pensar que modernidade não prescinde
da ideia de futuro. Ela carrega em si o princípio do progresso.”
Uma das manchetes da revista referiu-se ao Nordeste como a
terra do passado que luta contra o futuro. “Isso é algo forte
demais”, contesta o autor da tese.
Ele defende que a questão
nordestina deveria ganhar um novo enfoque, isso porque o sujeito
nordestino, por sua sobrevida (nem vida nem morte), pode ser
visto como forma de crítica às identidades e subjetividades
da mídia hegemônica, “que são vivas, abraçadas pelo futuro,
pelo progresso e pelo prazer”. Outra forma de dizer o sujeito,
em seu modo de ver, seria pensá-lo sobre uma base não-vitalista.
“Eu tentaria mostrar que as pessoas hoje em dia, por exemplo,
sobrevivem diante do medo da violência, e essa sobrevivência
indica que vida e futuro não são uma garantia, mas uma conquista.”
Em último caso, salienta ele,
poderia ser feita uma descrição mais realista de como os nordestinos
vivem atualmente. “Lá não se morre de fome desde a década
de 80. E ainda hoje a ideia da fome está impressa nos jornais,
muito viva e arraigada”, relata. Também opina que o preconceito
contra a imagem do presidente Lula se constroi pela imagem
negativa que se tem do Nordeste. É muito marcante para a mídia
que, ao menosprezar a região, também se menospreze o seu representante.
Para Silva, o nordestino é
um povo guerreiro, muito hospitaleiro, bem-humorado e trabalhador.
“O Nordeste não parou no tempo, como muitos julgam”, destaca.
E desafia: “cada um vê do modo que aprendeu a ver, mas procurem
olhar o Nordeste de outra forma”.
Silva trabalhou em Berkeley
por um ano, no Departamento de Antropologia, com auxílio de
bolsa Capes. Lá fez um estágio-sanduíche e estudou mais especificamente
com pesquisadores que trabalham com a temática da violência,
o que ampliou sua perspectiva, tanto que as ferramentas de
análise como elaborações teóricas e o refinamento da pragmática
foram desenvolvidos no período em que esteve lá. A partir
de alguns trabalhos no campo da Pragmática, como as obras
do filósofo inglês John Austin, Silva demonstrou que nos seus
escritos filosóficos a linguagem não é, contrariamente à tradição
pregada, uma forma de descrever o mundo e sim uma forma de
agir no mundo.
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