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Os primeiros passos da ciência.
E a ciência nos primeiros passos

Carmo Gallo Netto

Projeto propõe nova abordagem de física e geociências nas primeiras séries do ensino fundamental

Aula na rede pública de ensino: novas abordagens (Foto: Antônio Scarpinetti)O ensino de ciências pode ser desenvolvido com sucesso já nas primeiras quatro séries do ensino fundamental. É o que propõe projeto desenvolvido por professores do Instituto de Física Gleb Wataghin (IFGW) e da Faculdade de Educação (FE) e à disposição de alunos e professores na internet.

O professor Fernando Paixão acumula experiências em várias áreas do conhecimento. É docente do IFGW, coordenou a área de Física da Fapesp, foi responsável pelas avaliações de projetos acadêmicos da área e trabalhou nas comissões do MEC que avaliaram os cursos superiores de Física, além de integrar a equipe do Provão que avaliava os cursos de graduação através do desempenho dos formandos.

O professor Fernando Paixão e a pedagoga Simone Mesquita: interagindo com as crianças (Fotos: Antônio Scarpinetti/Antoninho Perri)Mas foi na condição de pai, especificamente quando seus filhos iniciaram-se no aprendizado de ciências na escola fundamental, que chegou a uma série de constatações, entre as quais: a de que os alunos que chegam à universidade perguntam muito pouco e não manifestam dúvidas sobre o que lhes ensinam; que grande parte dos formandos em física apresenta deficiências na formação; que os livros didáticos de ciências exibem não raro sérios problemas conceituais; que existe um descompasso entre o bom nível das pesquisas realizadas no Brasil e a catástrofe do ensino básico; e que os estudantes brasileiros ostentam péssima formação em ciências.

Diante desse quadro, esse paraibano de João Pessoa, que cursou inicialmente engenharia na UFPB, graduou-se em física na UFRG e fez mestrado e doutorado na Unicamp, entendeu que a solução era começar de baixo, do ensino fundamental, e propôs-se a descobrir uma maneira de ensinar a uma criança, em processo de alfabetização, elementos de ciências, particularmente física. Porque, diz ele, “a ciência mudou o mundo de forma brutal e seu conhecimento se tornou essencial. E a Física faz parte desse cabedal que deve ser aprendido”.

A idéia inicial era escrever um livro didático que apresentasse a ciência dentro de novas perspectivas, ligadas ao universo dos alunos. Depois se apercebeu que o alcance do projeto seria incomensuravelmente maior se utilizasse o meio virtual. Mas, antes de tudo, procurou juntar sua proposta à experiência do professor Jorge Megid, da Faculdade de Educação da Unicamp, responsável pela disciplina Fundamentos do Ensino de Ciências, do curso de pedagogia.

Pesquisadoras da Unicamp no Projeto Teia do SaberEmbora Paixão tivesse recebido apoio anterior dos professores Afira Ripper, Orly Mantovani, Elisabeth Barolli e Dirceu Silva, foi com o professor Megid que teve oportunidade de estabelecer cooperação mais longa, pois o docente da FE resolveu aplicar o projeto nos alunos da disciplina sob sua responsabilidade, porque entendia que, como geralmente ocorre nesses cursos, os alunos aprendem pouco conteúdo específico de ciências, matemática, história, geografia, entre outras disciplinas.

Megid revela que já vinha pensando em utilizar parte da disciplina para desenvolver aspectos de conteúdos específicos, articulados com a forma como devem ser ensinados. “Neste particular, o projeto do professor Fernando Paixão veio a calhar”. Essa cooperação, que está completando quatro anos, levou seu idealizador, que também faz parte da coordenação do TIDIA, financiado pela Fapesp, a perceber que a Incubadora Virtual de Conteúdos Digitais, criada pelo professor Imre Simon, caía como uma luva. É nela que a sua proposta vem sendo desenvolvida, ocupando o endereço http://calendario.incubadora.fapesp.br/portal.

Implantado há 3,5 anos, as estatísticas dos 2,5 últimos anos mostram que o portal já teve mais de 200 mil acessos, 80 mil só este ano, o que o coloca em outra escala em relação a uma publicação didática convencional, de penetração bem mais restrita, com a vantagem de permitir constantes acréscimos e contínuo aperfeiçoamento.

Em suas andanças pela região e pelo Brasil, à época em que prestava serviços ao MEC, o professor constata, com profundo entusiasmo, que existe um grande interesse em aprender por parte dos professores, mesmo em locais de condições precárias.

Com a idéia, Paixão propõe ensinar Física de forma não convencional a alunos da 1ª.a 4ª. séries, levando as crianças a reinventarem um instrumento que domina a vida, que é o calendário. O processo leva os alunos a se perguntarem porque existe o ano e como ele é medido. É o começo. A partir daí se desenvolvem elementos de física e geociências que emergem dessas questões iniciais.

Os alunos são submetidos a atividades de observação, de experimentação e de leitura explicativa, informa o professor, que conduzem a elementos de física e geociências, pois se fala do tempo e de sua medida, do movimento, da luz, do calor, da temperatura e de sua medida, dos planetas e do sistema solar, temas já previstos na grade curricular dessas séries, mas que os jovens aprendem em geral, literalmente, decorando, sem incorporá-los. “A maior parte das pessoas sabe os nomes dos planetas, mas não consegue localizá-los no céu. A criança chega ao conhecimento e incorpora conceitos que a maior parte dos livros de ciências explica equivocadamente como, por exemplo, a existência das estações do ano”.

A pedagoga Simone Mesquita, que há três anos trabalha com o processo em escola pública, desenvolve dissertação de mestrado, orientada pelos professores Jorge Megid e Fernando Paixão, em que se propõe analisar o tipo de aprendizado realmente adquirido pela criança com o Projeto Calendário, o que efetivamente desenvolve nos alunos, que transformações introduz em suas vidas, como concebem os conhecimentos adquiridos, em que grau os conteúdos propostos podem ser desenvolvidos da primeira à quarta série e qual a interdisciplinaridade inerente à proposta.

Ela lembra que as crianças são colocadas em contato com uma das primeiras atividades cientificas da humanidade, o calendário, que foi criado pelos egípcios. Eles foram os primeiros a medir o ano, o que lhes possibilitou prever o clima e o comportamento do Nilo, fundamental em suas atividades agrícolas. Para chegar à recriação do calendário, os alunos são estimulados a desenhar o céu todo dia, anotando data, hora e temperatura e, a cada quinze dias, registram os horários em que o sol nasce e se põe e localizam sua mudança de trajetória, marcando o deslocamento da sombra de um objeto sobre uma cartolina. Através dessas observações chegam à determinação do ano e a uma série de conclusões decorrentes.

O professor Paixão destaca que o processo introduz a criança na atividade da pesquisa, importante para entender como a ciência se desenvolve. Mais: a criança aprende a aprender, fundamental em um mundo em constante mutação. Ele enfatiza a necessidade do conhecimento para entender o mundo inteligível, do despertar para a importância da pesquisa, do desenvolvimento da capacidade de perguntar e de considerar a dúvida como o começo do entendimento e não sua impossibilidade, porque, diz, é com a pergunta que se aprende. Diz que com isso o conhecimento se enriquece e o mundo se torna diferente. E a propósito do processo lembra Einstein: “A formação é o que fica, depois de esquecido tudo que se aprendeu”.

Megid considera que o programa exige investigação gradual, a exemplo do que fazem Simone e diversas alunas do curso de pedagogia que o aplicam em escolas com seu acompanhamento. Na disciplina que ministra no curso de pedagogia, ele utiliza o projeto para estudar o comportamento dos alunos quanto ao aprendizado dos conteúdos e desenvolvimento dos aspectos metodológicos.

O docente lembra que o projeto abrange conteúdos específicos previstos para as quatro primeiras séries, envolvendo a Terra, o sistema solar, movimentos do Sol, clima, tempo, calendário, que não estão presentes de maneira integrada ou são negligenciados nos livros didáticos. Mas mais que isso, utiliza aspectos metodológicos muito importantes porque leva ao aprendizado de como realizar uma observação, de como fazer registros, de como analisar dados, fundamentais tanto no desenvolvimento do aluno das séries iniciais como na formação do pedagogo: “No curso de pedagogia temos trabalhado mais sistematicamente com a proposta há três anos, e as avaliações apontam positivamente na forma de trabalhar esses conteúdos em sala de aula”.

Ele considera que o material disponibilizado na Internet tem significativa importância para o professor de ensino fundamental porque permite uma série de atividades com as crianças que vão além do convencional. Constitui, diz, um material didático de apoio pedagógico que disponibiliza texto para os professores, texto para os alunos em linguagem mais acessível e atividades experimentais. Considera que as aplicações realizadas por Simone e colegas ajudam a adequar cada vez mais a linguagem dos textos à linguagem das crianças, o que o pesquisador nem sempre consegue.

Para os alunos de terceira e quarta séries, para os quais julga o material mais adequado, o projeto permite que as crianças desenvolvam conceitos, habilidades e atitudes desejáveis em um ambiente interdisciplinar. Os alunos são levados a desenhar, a escrever, a fazer tabelas e gráficos, trabalham com matemática, oferecendo também possibilidade de o professor trabalhar elementos de geografia e história. Por tudo isso, o considera rico. O professor Paixão acredita que a criança submetida à aprendizagem com o material virá a se tornar um aluno mais crítico em relação ao ensino de ciências.

Megid ressalva, entretanto, que apenas a disponibilidade do Projeto na Internet não é suficiente porque o professor pode tentar trabalhar o material sozinho e não conseguir. Por isso, defende que o projeto precisa ser acompanhado e gradualmente expandido “hoje junto a alguns professores, depois em algumas escolas, mais à frente em uma rede de escolas, para que não se repita o ocorrido nas décadas de 60 e 70, quando projetos de ciências acabaram não vingando porque os professores não foram devidamente preparados e não estavam envolvidos com a produção dos materiais”.

O docente entende que o projeto traz uma grande contribuição de ordem prática para os cursos de pedagogia que, em geral, deixam de dar tratamento aos conteúdos específicos e focalizam mais teorias pedagógicas, práticas do professor e seu processo de formação, questões de gestão e planejamento, que fazem parte da formação do pedagogo, porque não se forma pedagogo apenas para professor das séries iniciais. Por outro lado, ressalva, os cursos estão deixando de tratar, como deveriam, conteúdos de ciências, de matemática, de português, de história e de geografia, e por isso o pedagogo apresenta deficiências nessas áreas. Julga importante ainda que outros ramos do conhecimento, além da física, partam para ações similares.

Grupo elabora curso de especialização

O professor Jorge Megid: projeto é  usado para estudar o comportamento dos alunos quanto ao aprendizado de conteúdos (Fotos: Antônio Scarpinetti/Antoninho Perri)Por iniciativa da pró-reitora de Pós-Graduação, professora Teresa Dib Zambon Atvars, desde o final do ano passado foi criado um grupo de trabalho para elaborar um curso de especialização em pós-graduação lato sensu. Denominado Curso de Especialização em Ensino de Ciências e Matemática, é direcionado para professores das quatro primeiras séries do ensino fundamental. A idéia é oferecê-lo por meio de convênios com prefeituras e Secretaria de Educação.

O projeto, em fase final de elaboração, envolve sete unidades da Unicamp: Institutos de Física, Química, Biologia, Geociências, Matemática, Computação e Faculdade de Educação. Parte de uma das disciplinas desse curso – Fundamentos de Ciências I – aplicará o Projeto Calendário desenvolvido conjuntamente pelos professores Fernando Paixão e Jorge Megid, a exemplo do que já se faz no curso de pedagogia da Unicamp.

O professor Megid informa que o curso constará de 360 horas e mais 30 horas envolvendo uma monografia. Constará de três disciplinas de fundamentos de ciências, abordadas conceitual e metodologicamente; três disciplinas de fundamentos de matemática; duas disciplinas de tecnologias de comunicação e informação e seu emprego em educação; duas disciplinas de pesquisa e ensino. Estas visam discutir a prática do professor e a possibilidade de transformá-la, a questão da pesquisa como elemento chave no processo de trabalho e de formação do professor e buscam articular as disciplinas de conteúdo com a prática dos professores.

Outra iniciativa que começa junto à Pró-Reitoria de Pós-Graduação é o da criação de mestrado inter-unidades, envolvendo ensino de ciências e matemática. O mestrado em questão se destina aos interessados em pesquisas nas áreas de ensino de ciências ou educação matemática. Segundo Megid, espera-se que os dois projetos sejam implementados a partir de março do próximo ano.


 
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