COMENTÁRIO
A lucidez de Ianni
EUSTÁQUIO GOMES
Esta edição traz uma pérola: a entrevista de Álvaro Kassab com o sociólogo Octavio Ianni. O professor Ianni, um dos pais da moderna sociologia brasileira, é no Brasil de hoje - como vem sendo há quarenta anos - um daqueles poucos intelectuais que fala o que quer, como quer e na ocasião que lhe parece justa. Uma entrevista com Ianni, pode-se dizer, tem o condão de fazer perdurar até a mais efêmera edição de jornal.
Nos últimos anos Ianni voltou-se para o estudo do globalismo e suas verberações no terceiro mundo. É nesse contexto que ele vê a eclosão dos primeiros conflitos deste século, da transfixão das torres gêmeas às guerras no Afeganistão e no Iraque. E é com olhos freudianos que enxerga a alma de George W. Bush, o mandante de uma época que se supunha imune ao cesarismo, cujo propósito oculto seria, mais que a conquista do petróleo e a derrubada de um ditador sanguinário, a superação do próprio pai e portanto o seu assassinato.
Socialista convicto, Ianni vê o declínio do mundo marxista como parte da crise geral que engolfa o planeta e, dentro dele, "a tentativa dos Estados Unidos de instituírem uma espécie de administração mundial". Seu pessimismo quanto à geopolítica americana, entretanto, não impede que ele veja nela prenúncios de "uma transformação muito séria", uma ruptura histórica capaz não só de abalar convicções e noções como também de provocar um novo renascimento da filosofia, das artes e das ciências.
As multidões contrariadas que saem às ruas em escala mundial, para protestar contra a guerra, seriam um sinal claro de que as sociedades estão cada vez mais à altura de "pensar criticamente os acontecimentos". Esse movimento extraordinário, no entender de Ianni, está fertilizando o pensamento de cientistas, jornalistas, pesquisadores e artistas. Ao pregar "outras formas de ver o mundo", tal movimento, que parece uno mas em realidade é articulado por pessoas e grupos distintos em lugares diferentes, é uma ameaça à visão sistêmica hoje predominante.
Concorde-se ou não com as idéias de Ianni, não há como negar-lhe lucidez e um valor de resistência que não é, absolutamente, moeda comum. Longe de ser o analista frio e desapaixonado de realidades novas, Ianni não esconde seu papel de parte interessada. Seu interesse, como ele próprio diz, é na utopia de uma vasta democratização social e política - "sonho universal desde o Renascimento".