PAULO
CÉSAR NASCIMENTO
|
O
ginecologista Carlos Tadayuki Oshikata, do Caism: risco de hemorragias intensas
e até de ruptura uterina |
O Cytotec,
medicamento que deveria estar confinado a hospitais devido ao uso indiscriminado
como abortivo, continua ilegalmente disponível para a população
e respondendo por casos de malformações congênitas, entre
as quais a Seqüência de Moebius (pronuncia-se mêbius),
distúrbio caracterizado por paralisia facial, estrabismo e anomalias de
membros.
É o que mostram levantamento
realizado nas áreas de neurologia infantil dos hospitais de clínicas
da Unicamp e da USP, e estudos desenvolvidos em outras instituições
brasileiras. Contrabandeado, o remédio é facilmente encontrado no
mercado paralelo, conforme comprovou a reportagem do Jornal da Unicamp, que adquiriu,
em Campinas (SP), quatro comprimidos da droga por R$ 250,00.
Lançado
no Brasil em 1984 para prevenção e tratamento de úlceras
gástricas e duodenais, o Cytotec tem como princípio ativo o misoprostol,
um análogo-sintético da prostaglandina, que promove contrações
uterinas. Por causa dessa ação, o remédio tornou-se o mais
popular dos recursos abortivos utilizados no país, a tal ponto que o Ministério
da Saúde, em 1998, baixou portaria restringindo a venda do produto somente
para hospitais credenciados.
As restrições
impostas à comercialização da droga, contudo, não
impedem a manutenção de seu uso, em larga escala, por mulheres que
tentam abortar, graças a um florescente e lucrativo mercado ilegal do medicamento,
contrabandeado de países onde é de livre comércio.
Porém
as usuárias desconhecem que, por causa da exposição do embrião
ao misoprostol no primeiro trimestre da gravidez (período em que ocorrem
as tentativas de aborto), há o risco de se gerar crianças com anomalias
quando a gestação não é interrompida após o
uso do remédio.
Explosão
de casos O Cytotec atua em um momento vulnerável da embriogênese.
Seus efeitos teratogênicos (capazes de alterar forma e função
de órgãos ou partes do corpo do embrião em desenvolvimento)
aparecem em aproximadamente 10% dos 200 casos mais graves de lesões malformativas
cerebrais atendidos nos últimos dois anos pelos Ambulatórios de
Retardo no Desenvolvimento e de Paralisia Cerebral do Hospital de Clínicas
(HC) da Unicamp.
Esse percentual
corresponde aos pacientes cujas mães confessaram ter feito uso da droga
para abortar. Entretanto, manifestações neurológicas semelhantes
nos casos em que as mães omitiram a utilização do remédio
nos levam a crer em índices superiores, observa a neurologista infantil
e professora da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Universidade,
Ana Maria Sedrez Gonzaga Piovesana.
Embora
menos freqüente, a Seqüência de Moebius ou Síndrome designação
também adotada para definir as diferentes anomalias associadas ao distúrbio
tem apresentado maior relação entre malformações
congênitas e o uso do misoprostol. Segundo Ana Maria, a droga respondeu
por 50% dos oito casos do distúrbio atendidos na Unicamp nos últimos
cinco anos.
No HC da USP o percentual
foi ainda superior: 44 (82%) dos 54 portadores da síndrome atendidos nos
últimos onze anos pelo Instituto da Criança haviam sido expostos
ao medicamento na fase embrionária, relata a neurologista infantil Maria
Joaquina Marques-Dias, responsável pela unidade.
São
números que expressam bem a importância do misoprostol na origem
dessa explosão de casos com a Seqüência de Moebius, a segunda
alteração mais freqüentemente encontrada em nossos pacientes,
salienta a especialista, que pesquisa o problema desde 1991, quando avaliou o
primeiro caso em que houve relação da droga com a anomalia.
Entre
1980 e 1991 registramos em nossos arquivos 12 pacientes com a síndrome.
No período de 1992 a 1997 estudamos mais 23 crianças, ou seja, em
cinco anos houve uma incidência quatro vezes maior no número de casos.
Enquanto na primeira ocasião apenas dois portadores tinham exposição
ao Cytotec, na segunda somente três não haviam sofrido os efeitos
do medicamento, recorda-se ela, co-autora de um estudo sobre o tema publicado
em 1998 na revista britânica Lancet por Claudette Hajaj Gonzalez, também
do Instituto da Criança.
Diferentes
estudos e observações em serviços de aconselhamento genético
no Brasil têm apontado para uma associação real entre a exposição
pré-natal ao misoprostol e a ocorrência de Síndrome de Moebius
ou outros defeitos congênitos, afirma o geneticista Fernando Vargas,
do Hospital Universitário Gaffrée e Guinle, da Universidade do Rio
de Janeiro, e coordenador de amplo estudo colaborativo sobre o problema desenvolvido
no Brasil com recursos do CNPq e publicado em dezembro de 2000 pelo American Journal
of Medical Genetics.
Preocupações
A pesquisa, que envolveu dez hospitais brasileiros e uma instituição
canadense, identificou a exposição pré-natal ao medicamento
em 32 (34.4%) crianças diagnosticadas com malformações de
um total de 93 casos pesquisados.
Havia
suspeita de que as anomalias estavam associados ao misoprostol, e isso foi demonstrado
pelo estudo, comenta a geneticista Denise Pontes Cavalcanti, coordenadora
do programa de genética perinatal do Centro de Atenção Integral
à Saúde da Mulher (Caism) da Unicamp, e participante do estudo.
Em
outro trabalho, a geneticista Lavinia Schüler, da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul, estudou de 1990 a 1996 os casos de 96 crianças com a
síndrome, nascidas em sete hospitais brasileiros. De acordo com a pesquisa,
orientada pela epidemiologista Anne Pastuszak, da Universidade de Toronto, no
Canadá, e publicada pela revista médica The New England Journal,
47 mães (ou 49%) tentaram abortar tomando o Cytotec no primeiro trimestre
de gravidez.
Percentuais elevados também
foram encontrados há um ano pela oftalmologista infantil Liana Ventura
nos 28 casos de Seqüência de Moebius que estudou em Pernambuco: 60,7%,
ou 17 mães, haviam feito uso do Cytotec, adquirido no mercado negro,
por meio de pessoas que trabalham em farmácias ou por meio de amigas,
constatou.
O trabalho fez parte de sua
tese de doutorado e subsidiou um projeto assistencial às crianças
portadoras e suas famílias, encampado pela Fundação Altino
Ventura, instituição filantrópica que presta atendimento
oftalmológico à população de baixa renda no estado.
Para
Maria Joaquina Marques-Dias, a divulgação por parte das autoridades
sanitárias das anomalias provocadas pela droga, nos casos em que o aborto
não se consuma, pode contribuir para desestimular seu uso indiscriminado
e desassistido pela população.
Nesse
sentido, ainda em 1994, comunicamos oficialmente ao Ministério da Saúde
nossas preocupações com as evidências de que o Cytotec estava
sendo responsável por um número cada vez mais freqüente de
malformações congênitas em nossos ambulatórios,
relata. Mas nunca fomos contatados.
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Droga
é vendida a uma quadra de delegacia de polícia
A
reportagem do Jornal da Unicamp teve acesso ao Cytotec por meio de V.,
prostituta que faz programas à noite no centro de Campinas. Pelo menos
outras cinco garotas também se dispuseram a ajudar a encontrar o produto.
Usuárias eventuais do medicamento, elas acabam atuando como intermediárias
entre interessados e fornecedores ilegais da droga.
A
compra ocorreu uma semana após o primeiro contato, em uma tarde de junho,
sem que V. e mais duas amigas que a acompanhavam soubessem que o interessado
era jornalista. O grupo encontrou-se com o fornecedor na esquina das avenidas
Jacaúna e Suaçuna, próximo ao terminal Ouro Verde de ônibus
municipal e a uma quadra do 9o Distrito Policial, no Jardim Aeroporto, na periferia
da cidade.
Após receber adiantado
parte do pagamento de R$ 250,00 em dinheiro, o fornecedor dirigiu-se a pé
até uma farmácia próxima e de lá, cerca de 15 minutos
depois, trouxe os quatro comprimidos do Cytotec, de formato hexagonal, brancos,
sulcados em ambos os lados, com a gravação SEARLE 1461
em uma das faces. V. também pediu que fosse comprado um aplicador
de creme vaginal para a utilização do remédio.
Só
vai funcionar se a mulher tomar dois comprimidos e colocar os outros dois no fundo
da vagina com o aplicador, ensinou antes de se despedir.
Eficácia
O uso de dois comprimidos por via oral é utilizado pelas mulheres
que desejam praticar o aborto, mas a técnica é puramente popular,
com baixa eficácia, afirma o ginecologista Carlos Tadayuki Oshikata, do
Caism. O método mais eficaz, segundo ele, é o uso intravaginal,
com a deposição dos comprimidos próximo ao colo uterino,
para serem absorvidos pelo organismo.
O
Cytotec dilata o colo uterino e provoca contrações que terminam
por expulsar o embrião, esclarece. Mas existe risco de hemorragias
intensas e até de ruptura uterina, dependendo da idade gestacional e das
condições uterinas das usuárias. Isso expõe a mulher
a riscos iminentes de vida e, em algumas vezes, a infecção uterina,
provocada por vestígios de placenta que permanecem no corpo, adverte
Carlos, que revela freqüentemente encontrar comprimidos de Cytotec parcialmente
dissolvidos no fundo do saco vaginal de mulheres em processo de aborto que buscam
socorro médico.
Apesar de ser abortivo
e seu uso ser ilegal para este fim, o Cytotec fez com que a incidência de
abortos infectados, seguido de complicações como histerectomias
(retirada do útero devido à infecção) e até
mesmo morte, diminuíssem consideravelmente, observa Carlos.
Abordagens
mais invasivas, com a introdução de materiais contaminados dentro
do útero, como sondas, arames e agulhas de crochê, foram progressivamente
sendo substituídas pelo uso do misoprostol como método abortivo.
Por
causa do forte efeito de contração e relaxamento do colo uterino,
a técnica costuma ser indicada nos hospitais para a expulsão de
fetos mortos ou mesmo para a indução de parto normal, facilitando
a resolução dos casos de gravidez de alto risco, conforme experiências
desenvolvidas na Universidade Federal de São Paulo-Escola Paulista de Medicina
(Unifesp).
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Fabricante
vai parar comercialização
O Laboratório
Pfizer, responsável pela distribuição do Cytotec, anunciou
que vai descontinuar a comercialização do produto no Brasil, preocupado
com o uso indevido do medicamento.
A
empresa informou ter submetido formalmente à Agência Nacional de
Vigilância Sanitária (Anvisa) um pedido de cancelamento do registro
do Cytotec no país, e argumenta que a demanda do uso apropriado da medicação
poderá ser suprida por outro fabricante, que atualmente já oferece
ao mercado hospitalar um medicamento similar com o mesmo princípio ativo.
O
produto, de acordo com a Anvisa, é o Prostokos, comercializado pela Hebron
S.A. Indústrias Químicas e Farmacêuticas, localizada em Pernambuco.
A
agência, por meio de sua Unidade de Produtos Controlados, reconheceu a existência
do mercado paralelo do Cytotec, apesar da permissão de venda somente para
hospitais determinada pela portaria 344/98, de 12 de maio de 1998. Segundo o órgão,
medidas cabíveis para coibir o comércio indiscriminado do medicamento,
como inspeções em conjunto com autoridades policiais, são
adotadas a partir de denúncias.
A
Anvisa justificou ainda que, em função de mudanças administrativas
e do tempo decorrido, a denúncia da médica Maria Joaquina Marques-Dias
não pode ser localizada no âmbito da área de produtos controlados.
Portanto, não soube informar que tratamento foi dispensado ao assunto.
Mãe
usa experiência pessoal como exemplo | A
dona-de-casa Vera Lúcia e o filho Jhonatan: carinho e persistência |
Um
dos pacientes atendidos pelo Ambulatório de Retardo no Desenvolvimento
do HC da Unicamp é Jhonatan, o Jhoni, de 12 anos. O acompanhamento
médico sistemático contribuiu para melhorar a hipotonia muscular
e os problemas respiratórios causados pela Seqüência de Moebius,
conta sua afetuosa mãe.
Com outros quatro filhos
para cuidar, a dona-de-casa Vera Lúcia ainda dedica parcela significativa
de seu tempo para auxiliar o menino a cumprir a exaustiva rotina dos exames clínicos
e dos exercícios fisioterápicos, mas sente-se recompensada pelos
resultados.
A luta não é fácil.
É preciso ter muita persistência e carinho para ajudar o Jhoni a
superar as dificuldades. Toda evolução que ele apresenta, ainda
que possa parecer simples, como mexer os olhos ou os dedos, é bastante
comemorada, enfatiza.
Vera engravidou de Jhoni
aos 22 anos e entrou para as estatísticas das vítimas do Cytotec
ao tomar o medicamento desinformada dos riscos de uso durante a gestação.
Após
o choque inicial com o nascimento do filho, ela trocou o lamento pela coragem
e decidiu fazer de sua experiência pessoal um exemplo para outras mulheres
que pensam em utilizar o medicamento. Se a minha filha me conta de alguma
amiga adolescente grávida que procura o remédio para abortar, eu
peço para ela vir em casa conhecer a minha história, explica
Vera. Dou muito conselho e fico feliz quando consigo mudar a cabeça
da menina. |
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