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Batuque cromático (e interativo)
Ambiente criado por percussionista
reúne música, luz e espaço em tempo real
JEVERSON
BARBIERI
Uma
aposta no desenvolvimento de uma nova postura interpretativa
e na improvisação como veículos mediadores de expectativas
sonoras culminou com a criação do Prisma. Trata-se de um ambiente
interativo computacional resultante de uma instalação sonora
de percussão e interatividade. O trabalho de pesquisa, realizado
pelo percussionista Cesar Traldi, resultou numa tese de doutorado
defendida no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, sob a orientação
do professor Jônatas Manzolli, do Núcleo Interdisciplinar
de Comunicação Sonora (Nics).
Concebido como um espaço instrumento,
o Prisma envolve percussão, dispositivos eletrônicos, luz,
espaço, tudo isso interagindo em tempo real. Nesse espaço
é utilizada a ideia de sistemas auto-organizados. Toda a parte
de programação, portanto, foi feita de maneira que o sistema
tivesse um comportamento adaptativo. É composto de quatro
grandes divisões: a primeira é a parte do intérprete e sua
interação com o espaço; a segunda é composta de sensores que
funcionam como um sistema perceptivo do computador, como microfone,
pedal e sensores piezoelétricos; a terceira compreende o processamento
das informações; e a quarta são os sistemas de amplificação
e projeção que transformam todo o processamento realizado
na terceira parte em informação sonora e visual, realimentando
o sistema porque o intérprete (primeira parte) está observando
tudo isso e vai sofrer influência dessas informações.
Para contextualizar a pesquisa
e levantar algumas questões além da simples leitura da tese,
Traldi guiou-se por dois pontos-chave. O primeiro deles, levando
em conta sua formação na graduação como percussionista, deu
início a uma pesquisa sobre as obras que envolvem a interação
com dispositivos eletrônicos. Traldi revela que um detalhe
que sempre chamou muito a sua atenção foi a questão visual
que envolve os instrumentos de percussão. Esse aspecto, segundo
o pesquisador, está também presente em outros instrumentos.
No entanto, ela é mais facilmente notada nos instrumentos
de percussão pelo tamanho, pela quantidade, pela amplitude
do espaço e do movimento do intérprete no momento da performance.
“Existem filósofos que defendem o princípio de que a música
deve ser simplesmente a arte de sons, e qualquer outra expressão
não deve fazer parte da questão musical. Penso que uma apresentação
artística envolve tudo. Quando estamos em um teatro assistindo
a um concerto, é impossível não perceber a luz, o movimento
dos intérpretes e até mesmo o cheiro do ambiente. Isso acaba
interferindo na nossa apreciação musical”, afirmou Traldi.
O pesquisador conta que, no
final do século XX e principalmente no início do século XXI,
começaram a surgir obras que passaram a questionar se esses
elementos fazem parte da música ou não, e as pessoas começaram
a explorar realmente esses outros sentidos humanos nessas
peças. Para o seu trabalho de pesquisa, Traldi ressalta a
importância de que obras que envolvem elementos musicais,
visuais e espaciais necessariamente devem ser realizadas por
intérpretes músicos. “Se podemos conceituar como uma apresentação
musical, isso não vem ao caso no meu trabalho. Porém, sem
dúvida alguma, é uma manifestação artística que obrigatoriamente
acaba sendo feita por um intérprete especialista em instrumentos”,
disse.
Traldi,
juntamente com o também percussionista Cleber Campos, formou,
em 2005, o Duo Paticumpá. Essa formação aconteceu durante
a realização do mestrado de Traldi, quando o Duo desenvolveu
uma obra pensando na questão visual que envolvia a performance
musical. “Usamos um artifício feito de luz negra, o qual valoriza
a tinta fosforescente das baquetas utilizadas, justamente
para chamar a atenção do público para a questão visual da
performance musical. É uma obra para tambores, feita no escuro,
e por causa do efeito de luz a gente acaba vendo apenas o
movimento das baquetas”, explica o pesquisador.
O percussionista afirmou ainda
que esse tipo de performance exige do intérprete novas posturas
interpretativas e, consequentemente, novos desafios. Segundo
Traldi, isso é muito diferente do que tocar um tambor com
luz normal. Quando se pensa na questão gestual que cada movimento
produz, argumento o pesquisador, mesmo que não seja de tocar
o instrumento, ele seguramente vai ter um significado e deve
transmitir isso para o público. “Essa nova postura, que ainda
não é uma tradição na formação dos percussionistas, dificilmente
será encontrada na maioria dos cursos, uma vez que a formação
ainda é focada no repertório de instrumento solo sem tecnologia.
Quando o intérprete vai tocar uma obra com interação com dispositivos
eletrônicos, tem que se adaptar às diferentes situações porque
não foi preparado para isso. No entanto, como os dispositivos
e as interações são diferentes a cada obra, aprendemos como
tocar cada uma delas porque não existe um formato padrão de
performance. É necessário trabalhar os instrumentistas para
o desenvolvimento de uma postura de adaptação a diferentes
possibilidades de interação”, afirmou.
Bongô
Para exemplificar, o percussionista citou o bongô – instrumento
musical composto por dois pequenos tambores unidos entre si.
Colocado no meio de vários instrumentos, quando se inicia
o processo de captação do som e processamento no computador
– além da interferência da luz e seu significado –, ele deixa
de ser apenas um bongô e passa a ser parte integrante de um
novo instrumento, chamado por Traldi de espaço instrumento,
uma espécie de hiper-instrumento, ou seja, equipamentos tradicionais
conectados a dispositivos eletrônicos, nos quais estão envolvidos,
além da questão sonora, os aspectos visual e espacial.
Comparado a instalações sonoras,
que são mais comuns – normalmente feitas para o público, que
entra, interage e vê como o espaço responde –, a diferença
do espaço instrumento é que se trata de uma espécie de instalação
pensada para performance necessariamente de um especialista
em instrumentos. No caso do Prisma, prossegue Traldi, é necessário
que percussionistas interajam, pois esse ambiente necessitará
da técnica desses profissionais. Porém, precisa ser um percussionista
que vá mudar um pouco sua postura interpretativa. “Se colocarmos
um leigo, com certeza ele não conseguirá explorar todas as
possibilidades que foram pensadas em cima das técnicas e da
destreza de um performer em determinado instrumento”, argumentou.
O
segundo ponto-chave é como pensar a performance desse espaço
instrumento, que foi desenvolvido de acordo com a teoria de
sistemas de interação auto-organizados. Os agentes (intérprete
e computador) envolvidos nesse sistema sonoro são capazes
de exercer forte influência sobre as interações ocorrentes
e podem desempenhar diferentes funções, de acordo com a estrutura
da obra. As diferentes funções descritas nessa pesquisa são
idealização, articulação, mediação e observação. A idealização
está ligada na hora de decidir quais são os dispositivos que
serão usados. A articulação consiste em pegar esses instrumentos
e trabalhá-los de maneira a gerar uma informação sonora, visual,
mas que expresse algo – está ligado à produção artística.
A mediação é quando se executa essa articulação, porque pode
ser feita pela própria pessoa– que é o caso de uma improvisação.
A observação leva o próprio intérprete e espectadores a acompanharem
os resultados de todo esse processo interativo.
Segundo Traldi, esta ideia
pode ser ampliada por meio da noção de adaptação, chegando
aos sistemas sonoros auto-organizados. “Apesar de o idealizador
ter pensado em todos os dispositivos e conexões, ele não consegue
prever como as articulações vão ocorrer. Essa é a ideia com
a qual trabalhamos nesse modelo de espaço auto-organizado.
Quando um intérprete entra e vai realizar uma performance
no ambiente Prisma, ele não sabe exatamente como o computador
vai reagir porque a programação foi toda feita de maneira
que o equipamento modifique seus padrões de comportamento
de acordo com que o intérprete está fazendo. É como se o computador
estivesse aprendendo em tempo real com o que o intérprete
instrumentista está fazendo em sua performance. Esses sistemas
sonoros evoluem a partir de si mesmo, e serão mais auto-organizados
quanto mais as fronteiras entre as funções de articulação
e mediação forem diluídas”, concluiu Traldi.
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