Edição nº 523

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 17 de abril de 2012 a 22 de abril de 2012 – ANO 2012 – Nº 523

ARTIGO
Livre pensar: os estudos avançados na Unicamp



Por Pedro Paulo A. Funari


A reflexão livre e desinteressada está na origem do pensamento ocidental. Os antigos gregos souberam aproveitar-se da liberdade proporcionada pela cidade para procurar explicar, de maneira racional, pela observação e sem temor de condenação por uma autoridade superior, o funcionamento e as transformações do mundo e da sociedade. A matemática e a música, ancoradas nos conceitos numéricos, logo permitiram que proliferassem interpretações, algumas delas conosco até hoje, como o teorema de Pitágoras (que, nem por isso, deixava de ser um místico!). A reflexão era também o resultado de um ambiente coletivo, derivado do tempo livre (skholé, de onde deriva nosso termo “escola”), da interação de pessoas de diferentes lugares e do destemor ante as tradições e verdades aceitas. Em certo sentido, esse tem sido o espírito dos Estudos Avançados, desde a criação do Instituto em Princeton, em 1930.

Mas, a qual necessidade os Estudos Avançados respondem? Ou, como perguntou Florestan Fernandes, o grande patrono das Ciências Sociais no Brasil, avançado em quê? São questões pertinentes e mesmo fundamentais, pois sem elas não se pode entender bem sua razão de ser, finalidades e relevância para a sociedade. Para isso, retornemos, por um minuto, às origens das instituições de ensino superior. Surgidas no seio do mundo feudal, a universitas studiorum (“reunião dos estudos”) e o collegium (conjunto de estudiosos) representavam o anseio de entender o mundo, ainda que sob o jugo nem sempre leve do dogma e das lealdades políticas e religiosas.  Mesmo assim, essas instituições buscavam o conhecimento universal. Com a criação da moderna universidade, a partir de fins do século XVIII, outras necessidades fizeram-se sentir, em particular um domínio técnico do mundo muito mais profundo e especializado. Universidades e escolas superiores tornaram-se voltadas a especializações: não mais se almejava o livre conhecimento de tudo, como nas origens gregas, mas o manejo de um conjunto limitado de técnicas.

Essas tendências mantêm-se até hoje e, cada vez mais, o cientista conhece mais sobre menos, devendo saber tudo sobre quase nada e quase nada sobre tudo o mais. Os estudos avançados surgiram para contrapor-se a algumas das consequências do modelo científico contemporâneo: sua super-especialização, sua ênfase na aplicação imediata e em resultados relevantes no curto prazo. Não por acaso, Abraham Flexner, fundador do Instituto de Princeton, intitulou seu grito de guerra pelos estudos avançados: “a utilidade do conhecimento inútil”. Nada de imediatismo e curto prazo, nem de submissão a critérios de relevância estabelecidos pelos pares, na medida em que a defesa do conhecimento atual será sempre um empecilho para ousadias que resultem em avanços e mesmo quebra de paradigmas. A necessidade, portanto, não é interna aos campos científicos, capazes de produzirem conhecimentos cada vez mais aprofundados sobre os temas mais especializados. Ela advém da sociedade, pois são as pessoas, no geral, que se beneficiam do pensamento livre, desinteressado e não sujeito a limitações de ordem epistemológica ou corporativa.

Com isso, chegamos ao sentido do avanço, “ir adiante”: não se trata de aprofundar-se em um tema especializado, indo cada vez mais fundo, mas em permitir que o conhecimento mais amplo leve a novas searas. Ir adiante, em busca de conhecimento fora das amarras disciplinares, numa retomada das ambições universais dos gregos antigos.    A partir desse ponto de vista, os Estudos Avançados difundiram-se, em particular, nos últimos anos e já no novo século XXI, como complementação necessária e urgente à especialização interessada das ciências. Não à toa, no Simpósio Internacional sobre Estudos Avançados, em março de 2011 na Unicamp, o diretor-científico da Fapesp, professor Brito Cruz, ressaltou o imperativo da pesquisa desinteressada e ao abrigo da pressão do “publicar ou morrer” (publish or perish).  Este foi o espírito que esteve na origem do Centro de Estudos Avançados da Unicamp, projeto do professor Fernando Costa desde o início da sua gestão, e que começou a ser implementado já em setembro de 2009, tendo sido formalizado em março de 2010.

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Ir em busca de conhecimento fora das amarras disciplinares
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A Unicamp, em pouco menos de cinco décadas, tornou-se a primeira universidade brasileira em produção científica per capita, detém a maior nota média nacional em seus cursos de pós-graduação, o maior número de patentes, e pode ser considerada, por tudo isso, com particular vocação para o desenvolvimento de Estudos Avançados no seu sentido mais genuíno, como gerador de conhecimento prenhe de potencialidades. O CEAv estruturou-se em torno de grupos de estudos, que tratariam de temas transversais e que se poderiam beneficiar, de forma acentuada, de um ambiente aberto à ousadia. Já de início, dois grandes temas germinaram, por sua premência: ensino superior e esporte. A sociedade brasileira, marcada por séculos de escravidão e relações patrimoniais, tardou a desenvolver o ensino superior. As escolas de direito de Olinda e São Paulo datam de 1827, séculos depois das universidades ibero-americanas. A primeira universidade com esse caráter universal e abrangente de cursos superiores só surgiria em 1934, com a Universidade de São Paulo. A expansão do ensino fundamental e médio foi também muito tardia, tendo se universalizado o básico apenas no final do século XX. Em plena segunda década do século XXI, o ensino médio claudica e o superior ainda fica muito atrás, em percentagem de alunos da faixa etária escolar, não apenas dos países ricos, como daqueles em desenvolvimento e com renda per capita comparável ou menor do que a brasileira. O sonho de um país de classe média, colocado como meta desde a redemocratização do país, depende de um sistema de ensino superior muito mais vigoroso, tanto em número de alunos, como em termos qualitativos.

O Grupo de Estudos em Educação Superior, coordenado pelo professor Renato Pedrosa, tem trazido grandes especialistas brasileiros e estrangeiros, patrocinado eventos e cursos, além da publicação Ensino Superior Unicamp, revista trimestral que publica, ainda, a versão portuguesa do International Higher Education, do Boston College.  Essa revista está disponível on-line, além de ser publicada em papel. Em julho de 2012, será ministrado um curso sobre ensino superior, coordenado pela professora Liz Reisberg (Boston College) e ainda em 2012 será lançado um livro sobre o tema, pela editora Springer, com contribuições de estudiosos da Unicamp, como a professora Elizabeth Balbachevsky, fellow do CEAv.

O Grupo de Estudo Avançado em Esporte, coordenado pelo professor Paulo César Montagner, buscou grandes nomes que pudessem atuar como pesquisadores visitantes e produzissem obras de peso, como resultado da sua estada e interação com os colegas. Assim, o professor Eric Dunning, clássico da Sociologia do Esporte, atuou em 2011 e será lançado o livro Esporte e violência, ainda em 2012. Kimberly Schimmel também esteve aqui e tratou do impacto dos grandes eventos esportivos na sociedade e será publicado um volume sobre o tema. Jorge Bento, da Universidade do Porto, virá em junho de 2012 e também deixará um livro como legado. Assim, além dos seminários e outras atividades, ficarão disponíveis reflexões de fôlego, como resultado do esforço coletivo do grupo.

Em 2011, dois novos grupos formaram-se: sobre as relações entre Brasil e China e sobre os desafios do contemporâneo. A China tornou-se o maior parceiro comercial do Brasil, mas falta uma maior interação e conhecimento mútuos. O Grupo de Estudos Brasil/China, hoje coordenado pela professora Leila Ferreira, surgiu de um projeto do professor Carlos Pacheco, que o liderou até assumir, em fins e 2011, a reitoria do Instituto Técnico da Aeronáutica. O grupo conta com a larga experiência de um fellow renomado, o professor José Augusto Guilhon de Albuquerque e, além de seminários, tem planejada a publicação de estudos seminais, tanto em português como em inglês e chinês. A produção de documentos em mandarim começará em maio de 2012. O Grupo de Estudos do Contemporâneo, coordenado pelo professor Alcir Pécora, tem congregado estudiosos que refletem, de uma perspectiva ampla, sobre os desafios da nossa época, como foi o caso de Ignacy Sachs, recentemente.

O CEAv, além do seu portal, publica artigos na Revista Estudos Avançados Unicamp online e produz programas de televisão, tornados disponíveis não apenas no portal da RTV Unicamp, como no Youtube, com número elevado de downloads. Os resultados obtidos, em pouco mais de dois anos, permitem augurar um futuro promissor para o CEAv. As perspectivas são as melhores, por dois grandes fatores: pela necessidade e relevância dos estudos avançados para a Universidade e para a sociedade brasileira, mas também pela excelência dos quadros da Unicamp que dão substância ao projeto. Sem isso, nada seria possível.

Pedro Paulo A. Funari é professor titular do Departamento de História (IFCH) e coordenador do Centro de Estudos Avançados