Ana Maria Rodriguez Costas (Ana Terra) e Mariana Baruco Machado Andraus são professoras do Departamento de Artes Corporais do Instituto de Artes (IA) da Unicamp.
“Artigo 27° 1.Toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam.
2.Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria.”.
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
A dança faz parte da vida social em diferentes culturas, em diferentes tempos. Na cultura indiana, as devadasi viviam nos templos para dançar em devoção aos deuses. Entre os gregos antigos, a dança também tomava parte nos rituais e cerimônias religiosas. As religiões de origem africana, espalhadas mundo afora pela diáspora, estão presentes nos ritos sincréticos existentes em diversos países, no Brasil inclusive, sendo a dança uma das manifestações que caracterizam as divindades nesses cultos. Na China, por milhares de anos as danças foram passadas entre gerações tanto nas cortes imperiais quanto em ritos populares. E os indígenas já habitantes das Américas quando da chegada das Grandes Navegações ao mundo nomeado como “Novo” pelos contadores da História dançavam em ritos diversos como parte de sua vida social, notadamente comungada com a natureza e seus ciclos.
No chamado mundo ocidental, a partir do Renascimento, a dança migrou das cortes europeias para os palcos alcançando status de espetáculo teatral cênico. Como as demais linguagens artísticas, do academicismo clássico a dança expandiu-se em diferentes vertentes estéticas trazendo para a cena, especialmente ao longo dos séculos XX e XXI, uma diversidade de corporeidades e modos de dançar, abrindo-se a um rico diálogo multicultural.
O direito ao acesso à vida cultural da comunidade em que se vive tem seu valor amalgamado na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH), porém é reconhecido desde sempre, nas mais diversas culturas, como meio de encontro com o outro e com a própria noção de alteridade, que nos ressignifica e nos dignifica em nossa dimensão humana. Do mesmo modo, seguindo a leitura do Artigo 27o da DUDH, escolhido por nós para desenvolver este artigo, a cidadania se plenifica quando garante-se o direito à fruição das artes, de partilhar de seus avanços e benefícios. Vejamos alguns deles.
O direito à dança, uma área de conhecimento
Estudar, ensinar, produzir e pesquisar a dança como área de conhecimento artístico pressupõe o desenvolvimento de habilidades tais como o próprio ato de conhecer a si mesmo pelo corpo, a disponibilidade para conhecer o mundo e o outro para além dos próprios preconceitos e visões de mundo, de dar-se a conhecer por meio das imagens e sensações produzidas pelo movimento e, ainda, tratar da produção de legados culturais para gerações posteriores. Tudo isso compõe as competências de um pesquisador-artista-docente da dança.
O tocar, a consciência de si e do outro
A dança é um dos poucos meios de se promover o toque para além de convenções sociais distantes, como um beijo no rosto ou um aperto de mão, ao mesmo tempo em que resguarda as relações de respeito no contato com o outro, um respeito que se ensina e que assegura que ambas as partes não invadam e não se sintam invadidas. Sobre o toque e o tabu social que ele representa, o pesquisador Fernando Neder, ao discorrer sobre uma forma de dança contemporânea conhecida como Contato Improvisação (CI) – forma de dança concebida nos idos dos anos sessenta a partir do toque/contato físico entre dois corpos para ser iniciada e continuada –, menciona: “Tocar é um processo muito importante no desenvolvimento dos mamíferos, incluindo seres humanos. Apesar disso, a cultura humana, em geral, bloqueia esse processo com tabus sexuais, apesar de oferecer fortes apelos sexuais visuais. O CI trouxe uma nova luz a esse assunto mostrando um rico espectro de possibilidades do toque, livre de intenções sexuais” (NEDER, 2010, p. 40).
Para nós, que trabalhamos com dança, o toque desprovido de conotação sexual, assim como o conhecimento do corpo e do movimento em todas as dimensões, é um requisito para o conjunto de epistemes que construímos e que nos identificam como área de conhecimento autônoma.
Dançar junto: a escuta de si e do outro
Na primeira metade do século XX, o grande pesquisador do movimento e coreógrafo austro-húngaro Rudolf Laban (1879-1958) concebeu a noção de Dança Coral; a partir de um roteiro de ações e indicações sobre como realizar certos movimentos, grandes grupos, centenas de pessoas poderiam dançar juntas, improvisando em tempo real. Sua metodologia de incrível eficiência experimental e artística lhe valeu um convite para que realizasse uma dança na abertura dos jogos olímpicos do 3o Reich; mais tarde, em desacordo com a evidência da configuração de um regime nazifascista, o artista segue para o exílio na Inglaterra. Laban tinha plena consciência da potência do mover-se em comunhão, mas, para ele, a base desse encontro estava na singularidade expressiva de cada ser humano. Dançar junto em uma dança coral seria assim uma experiência de mover-se com o outro, coletivamente, a partir de elos comuns, entre diferentes.
Por esta razão, a relação entre dança e direitos humanos é para nós um tanto óbvia, por promover uma percepção aguçada de si mesmo por meio do conhecimento de como funcionam as articulações, musculaturas e respiração (primeiramente, em seu próprio corpo), e consequentemente promover uma “escuta” do outro, compreendendo-o em suas virtudes e limitações, e até mesmo ressignificando o sentido desses termos. Relacionam-se no que diz respeito à dignidade, objeto do Artigo 1o da DUDH, porque ter uma relação consciente com o próprio corpo é fundamental tanto para ter e exercer essa dignidade, quanto para desenvolver capacidade de ter uma relação respeitosa também com o corpo alheio.
Seja dançando a dois em um salão, seja numa dança de roda na rua, seja sobre um palco, dançar junto é um aprendizado de compartilhamento do espaço. Do mesmo modo, respirando junto, vibrando no pulso e no ritmo de uma percussão ou movendo-se em diferentes velocidades no diálogo com uma composição musical, a dança implica no aprendizado da partilha do tempo.
Dança como exercício de alteridade nas relações humanas
A dança contemporânea vem compartilhando e possibilitando outras relações sociais-vitais no corpo em movimento. Na atualidade, mais que expressar, a dança nos coloca diante da esperança de conter – no sentido de abrigar – o espaço-tempo da existência no próprio corpo, algo fundamental em um momento em que inúmeros estímulos apenas pretendem nos distrair da própria potencialidade expressiva e relacional dos corpos.
Nos palcos e demais espaços em que se faz presente, a dança nos dá a perceber alternativas de encarnação da vida nas suas inúmeras corporeidades, assim como nos apresenta a potência do movimento de instaurar e transformar relações entre pessoas, espaços e tempos. Para além da apreciação, entendemos ser fundamental às crianças, jovens, adultos e idosos experimentar encontros com a dança em contextos educacionais, culturais e artísticos.
Dança e direitos humanos, portanto, se relacionam pelo conhecer-se e reconhecer-se na alteridade; entrar em contato com diferentes modos de estar, tocar, mover-se; dialogar com a diversidade dos movimentos, temporalidades, espacialidades. Criar e experimentar outras possíveis coreografias sociais.