Janaína Dantas G. Gomes, doutoranda em Direitos Humanos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Coordenadora pedagógica da Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama da FD-USP. É professora de Direito.
“A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social ”.
( Declaração Universal dos Direitos Humanos)
No ano de 2018, 70 anos após a Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH, 1948), noticiou-se que uma mulher residente na cidade de Mococa foi esterilizada por meio do procedimento de laqueadura após a cesárea de seu sexto filho. O procedimento ocorreu por decisão judicial em decorrência de processo movido pelo Ministério Público local. Serviram para justificar a decisão do poder judiciário o fato de que a mulher era usuária de drogas, não possuía residência fixa, tinha condenações por tráfico de drogas e estaria colocando seus filhos em risco ao utilizar drogas e não possuir meios de prover a eles o mínimo de subsistência. Os cinco filhos já inseridos no sistema de acolhimento municipal seriam comprovação bastante da incapacidade materna e da necessidade de laqueadura como método contraceptivo, com o fito de prevenir novas gestações e a colocação de outras crianças em risco [1].
A realidade vivenciada pela mulher, mãe, da cidade de Mococa, se enquadra em um processo sistêmico. Para além da laqueadura, há outras duas formas de “cuidado” com a infância e maternidade que desafiam nossa compreensão sobre o tema: a separação de seus filhos de mulheres em instituições penitenciárias [2] e de mulheres em situação de rua [3]. Situação de que decorre, por vezes, a separação definitiva dessas famílias.
É importante notar que nem sempre notícias sobre a esterilização e a separação de bebês de mulheres pobres, em situação de rua e usuárias de drogas se conformam como denúncias. Por vezes, a despeito de todo o arcabouço legal constituído nestes anos de afirmação dos Direitos Humanos, esses casos são encarados como meras peças informativas que dão a conhecer estratégias de redução da natalidade de famílias indesejáveis, o “peso” social do sistema de acolhimento institucional dessas crianças, as formas de inserção dessas crianças em novas famílias, o perigo do uso de substâncias psicoativas. Sob tudo isso, o silêncio para com as famílias separadas. Quais os direitos violados neste caso concreto? O que podemos dizer sobre a proteção conjunta de mães e crianças? E sobre a proteção às famílias que vivem na base da desigualdade social de nosso país?
O artigo XXV-2 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH, 1948) fala na proteção da maternidade e da infância, por meio de cuidados e assistência especiais que, presume-se, devem ocorrer em conjunto. A garantia de direitos às mães significaria a garantia dos direitos das crianças. Mas será que falar em proteção à infância significa, necessariamente, falar em proteção à maternidade e à família? O caso descrito no início deste texto nos ilustra um dos paradoxos da proteção à infância: por vezes ela é realizada em detrimento dos direitos das famílias, das mães, que são concebidas como agentes que, de maneira autônoma, teriam escolhido a vida em meio à miséria, às drogas, e que, por exercerem essas escolhas, colocam seus filhos e filhas em risco.
O Princípio III da Declaração Universal dos Direitos da Criança (UNICEF, 1959) estabelece que “a criança tem direito, desde o seu nascimento (...) à alimentação, moradia e assistência médica adequadas para a criança e a mãe”. A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos (1969), no mesmo sentido, fala em seu artigo 17 na proteção da família, que é elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo estado.
Sobre este pequeno apanhado normativo, complementado em âmbito nacional, por exemplo, pelo artigo 227 da Constituição Federal – que trata da prioridade absoluta dos direitos das crianças e adolescentes – e pelo Estatuto da Criança e do Adolescente/ECA (1990) – que traz em seu bojo diversas garantias e deveres, dentre eles o dever da família, da sociedade e do estado na proteção dos direitos das crianças e adolescentes – muitas discussões são possíveis. Dos casos e legislações referidas podemos observar que, o direito das famílias, mães e crianças, ainda que garantidos em conjunto, muitas vezes são colocados de maneira binomial, opositiva, o que permite uma concepção e prática de proteção dos direitos das crianças que não protege necessariamente as mães e famílias e entende por vezes a separação como a “única saída possível”.
Quando estamos diante de trajetórias de vida tais como a que conhecemos no início deste texto, estamos diante de crianças que, sem o amparo do Estado estariam talvez expostas às mesmas mazelas de sua mãe: dormindo nas ruas, expostas à violência, sem ter o que comer ou onde permanecer ao longo do dia. Estamos diante, também, de vidas marcadas pela miséria e desigualdade social. Mães e famílias que, longe de submeter suas crianças voluntariamente a esta situação, também se veem vitimadas pela exclusão social e desigualdade de nosso país que, apenas na cidade de São Paulo, segundo censo do ano de 2015, traz o número de 20.000 pessoas em situação de rua (FIPE 2015) [4]. Como então, aceitar um cuidado de acolhimento da criança que permite que mães e famílias sigam na condição de vida que justificou a separação e o acolhimento da criança pelo Estado?
As peculiaridades das mulheres em situação de rua ainda é tema incipiente nas pesquisas, mas já foram alvo de diagnóstico as razões alarmantes que as conduzem a tal situação: violências vividas no contexto doméstico e familiar, renda insuficiente para garantir o próprio sustento e dos filhos e filhas, e a ruptura dos vínculos sociais [5]. Como seria possível garantir o exercício da maternidade, a proteção das famílias, em contextos como estes, em que mulheres são vitimadas pelas violências e desigualdades que permeiam seu cotidiano e, por consequência, o de seus filhos? A condição social em que a vítima é considerada se torna o motivo que dá jus a ensejar uma possível nova violação de direitos.
O modo como tratamos socialmente a pobreza e o uso de drogas foi observado e destacado pelo legislador nacional. O ECA, em seu artigo 23, estabelece que a falta ou a carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou a suspensão do poder familiar, e o artigo 19, alterado em 2016 pelo Marco Legal da Primeira Infância, estabelece que é direito da criança e do adolescente ser criado e educado no seio de sua família e, excepcionalmente, em família substituta, assegurada a convivência familiar e comunitária, em ambiente que garanta seu desenvolvimento integral – legislação que foi alterada e que retirou a menção de que as crianças tinham o direito de crescer em “ambiente livre da presença de pessoas dependentes de substâncias entorpecentes”.
O que podemos constatar é que a construção da proteção social das crianças, e da necessidade de acolhê-las para evitar a violação de seus direitos, em nosso país, não foi acompanhada da construção interpretativa da proteção às mães e famílias, ainda que já exista ampla legislação sobre a temática.
Os Direitos Humanos, em geral pautados pela necessidade de promulgarmos mais leis protetivas sobre diferentes assuntos, nesse caso oferece um desafio reflexivo. A despeito de tantas normativas, que estabelecem a proteção conjunta de mães, pais, filhos e filhas, é preciso uma mudança nas formas de interpretar esses direitos para que sua “proteção” não acabe, justamente, significando a violação de outros tantos direitos, e de maneira irreversível, tal como a separação definitiva de filhos e filhas de suas mães.
[1]VIEIRA, Oscar Vilhena. Justiça ainda que tardia. Jornal Folha de São Paulo.
[2] Sobre o tema: Brasil. Ministério da Justiça. Secretaria de Assuntos Legislativos
Dar à luz na sombra: condições atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mulheres em situação de prisão. BRAGA; ANGOTTI (coords) Ministério da Justiça, Secretaria de Assuntos Legislativos. - Brasília: Ministério da Justiça, IPEA, 2015. (Série Pensando o Direito, 51) ISSN 2175-57060.
[4] Censo disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/00-publicacao_de_editais/0005.pdf
[5] Rosa, Anderson da Silva, & Brêtas, Ana Cristina Passarella.(2015). Violence in the lives of homeless women in the city of São Paulo, Brazil. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 19(53), 275-285.