Lucas Suárez de Olivera Tozo é doutorando e mestre (2016) em Ciência Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2011). Pesquisa teoria liberal contemporânea, constitucionalismo e direitos humanos.
“A Assembléia Geral proclama a presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como ideal comum a atingir por todos os povos e todas as nações, a fim de que todos os indivíduos e todos os órgãos da sociedade, tendo-a constantemente no espírito, se esforcem, pelo ensino e pela educação, por desenvolver o respeito desses direitos e liberdades e por promover, por medidas progressivas de ordem nacional e internacional, o seu reconhecimento e a sua aplicação universais e efetivos tanto entre as populações dos próprios Estados membros como entre as dos territórios colocados sob a sua jurisdição.”
(Excerto do Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos Humanos)
A questão da universalidade na contemporaneidade ganharia contornos precisos a partir do momento em que se falou, já no âmbito da Organização das Nações Unidas – ONU, em uma Carta Internacional de Direitos. Conseguiria a recém-criada organização (24 de outubro de 1945) produzir um documento aceitável aos delegados dos 58 países, compostos, entre outros, por países do bloco socialista, islâmicos, budistas e judaico-cristãos? [1].
A elaboração de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos ficou ao encargo do “Comitê de Direitos Humanos” vinculado ao Conselho Econômico e Social da ONU, que foi presidido pela ex-primeira dama americana Eleanor Roosevelt. Examinando propostas de todo o mundo, tal comitê foi composto de 18 membros: 5 potências (França, EUA, URSS, China e Reino Unido) e 13 outros países membros rotativos; a redação propriamente ficaria aos cuidados de um subcomitê onde se destacaria a figura do jurista René Cassin, principal conselheiro jurídico do General Charles de Gaulle ao longo da Segunda Guerra, especialista em direito comparado.
Com o talento de Cassin, na linha de sua formação na tradição romano-germânica do direito (civil law), observa Glendon [2], seria formulado um documento com uma “chave hermenêutica” composta do Preâmbulo mais os artigos 1 e 2, funcionando como “parte geral” contendo premissas, objetivos, princípios e condições de realização, apta a governar a interpretação dos direitos enumerados dos artigos 3 ao 27 da Declaração. Os artigos 28, 29 e 30 também trazem elementos interpretativos como deveres e eventuais limitações a direitos.
O Preâmbulo remete, portanto, como premissa, aos fatos que ensejaram a Declaração: “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade”; assim, expõe como objetivo a promoção da relação amistosa entre as nações numa ordem internacional onde os seres humanos possam usufruir de 4 liberdades: liberdade de palavra, liberdade de crença, liberdade de viver sem temor e a liberdade da necessidade, numa expressa remissão ao famoso Discurso sobre o Estado da União, conhecido como “Four Freedoms”, proferido pelo presidente Franklin Roosevelt em 6 de janeiro de 1941. Tais liberdades se traduzem nos direitos civis, políticos, sociais, econômicos e culturais da Declaração.
A ideia de direitos humanos universais se vincula à tradição dos “direitos naturais” do século XVII e XVIII, mas numa roupagem contemporânea em oposição ao perigo histórico imediato do nazismo ou daquilo que ele representou – na imagem propagada, sobretudo pelos americanos, em termos de discriminação baseada em raça, religião e visões políticas [3].
Podemos dizer que a ideia de direitos humanos universais surge de uma necessidade, teórica e prática, centrada num cenário internacional, de uma perspectiva universal apta a condenar as atividades de Estados soberanos independentemente de seus respectivos ordenamentos jurídicos. Neste sentido, os eventos símbolos que despertaram a atenção dos juristas para um direito “não-positivo” foram os Julgamentos de Nuremberg e de Tokyo realizados no imediato pós guerra.
O Preâmbulo é claro quanto ao fundamento geral dos direitos que virão elencados na Declaração. Trata-se do Princípio da Dignidade Humana, que por sua importância, será mencionado duas vezes só no Preâmbulo e em seguida em outros artigos ao longo da Declaração. Para além da Declaração, seu caráter fundacional será reafirmado, ao longo da segunda metade do século XX, por uma série de importantes instrumentos internacionais de proteção dos direitos humanos assim como nas constituições nacionais de todo o mundo. Por sua altíssima abstração, não sendo nunca definido na Declaração, o Princípio da Dignidade Humana ganhará concretude na jurisprudência das cortes nacionais e internacionais.
A relação dos direitos humanos com o constitucionalismo é evidente em duas dimensões ao lermos o Preâmbulo. A primeira, em nível internacional, se reconhecermos, ainda que tal ideia seja objeto de muito debate, uma “ancoragem” constitucional da Declaração ao fazer expressa menção à Carta das Nações Unidas, que de forma “constitutiva” autorizou em seu artigo 13b a Assembleia Geral nos esforços pela elaboração de uma Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Além disso, ainda em nível internacional, a Declaração passaria, ao lado do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos com seus dois protocolos opcionais e do Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais, a compor o que ficou conhecido como Carta Internacional dos Direitos Humanos por suas semelhanças com as Cartas de Direitos nacionais, seja em função, substância ou estrutura [4].
Em nível doméstico o Preâmbulo afirma categoricamente “ser essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo império da lei”. O império da lei (Rule of Law) consiste na garantia típica do Estado de Direito pela qual combate-se a arbitrariedade do poder pelo direito, de forma concreta, por uma Constituição sob a qual cidadãos e autoridades se submetem. Desta forma, o direito internacional dos direitos humanos tem sua condição de realização, prioritariamente, pelo direito constitucional de cada Estado.
Mas a Declaração vai além, e conclama além dos Estados, os indivíduos e os órgãos da sociedade civil para a promoção do respeito aos direitos humanos ali elencados. Entre os instrumentos fundamentais nesta consecução estão o ensino e a educação, a criação, portanto, de uma cultura de direitos.
Com essa tônica educacional e interpretativa, o Preâmbulo nos fala a natureza do documento: não é um tratado, o que geraria uma obrigação jurídica das partes, é uma Resolução (A/RES/3/217A) adotada pela Assembleia Geral sob a forma de Declaração; logo, é comum em referência a seu caráter de “quase direito”, que se use a expressão “soft law”. Entretanto, dado seu papel crucial na compreensão, implementação e desenvolvimento do direito internacional dos direitos humanos, muitos internacionalistas já reconhecem na Declaração uma fonte costumeira do direito internacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos funda o sistema internacional dos direitos humanos, uma nova etapa do constitucionalismo e da moralidade pública. Entrega o que promete ao consolidar pela primeira vez de forma universal, a todos os indivíduos, sem nenhum voto contrário entre os Estados membros, um catálogo dos direitos que emergiram a partir da modernidade, fornecendo então “o ideal comum a ser atingido por todos os povos e todas as nações” que aspirem à civilização e não a barbárie. A métrica está aí, e por causa dela conseguimos saber para onde o poder político e sua expressão no direito devem trilhar, e o quão longe, nestes 70 anos da Declaração, estamos deste norte em cada parte do globo.
[1] GLENDON, Mary Ann. Knowing the Universal Declaration of Human Rights. Notre Dame Law Review, v.73, n.5, 1998. p.1155-1156.
[2] Ibidem,p.1157-1159.
[3] PRIMUS, Richard. A Brooding Omnipresence: Totalitarianism in Postwar Constitutional Thought. The Yale Law Journal, v.106, n.2, 1996. p.429-430.
[4] AGGELEN, Johannes Van. The Preamble of the United Nations Declaration of Human Rights. Denv. J. Int'l L. & Pol'y, v.28, 2000. p.133; GARDBAUM, Stephen. Human Rights as International Constitutional Rights. The European Journal of International Law, v.19, n.4, 2008. p.750.