Ana Carolina de Moura Delfim Maciel é historiadora e documentarista é atualmente Coordenadora da Cocen (Coordenadoria de Centros e Núcleos) e membro da Cátedra Sérgio Viera de Mello, ambas da Unicamp. Realizou pós-doutorado no Museu Paulista-USP, no âmbito do qual desenvolveu pesquisa no Centre de Recherches Historiques da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, 2012). Doutora em História pela Unicamp (2008) com doutoramento sanduíche no Centre de Recherches Historiques da École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris, 2006). Mestre em Multimeios pela Unicamp (2000) e bacharel em História pela mesma universidade (1994). É autora do livro "Yes nós temos bananas. Cinema industrial paulista: a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, atrizes de cinema e Eliane Lage. Brasil, anos 1950" (Alameda Editorial, 2011), além de vários capítulos de livros e artigos sobre historiografia, audiovisual, memória, biografia e cultura material.
“Artigo XXVI/2 - A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz”.
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
Dou início ao presente artigo lançando uma indagação: como, no fluxo inexorável do tempo, o passado vai sendo regido, lapidado, preservado e, paulatinamente, transformado em identidade e memória? Como a História “adquire forma” e visibilidade? Em poucas palavras: como, e quando, um episódio, suas narrativas e seu arcabouço de imagens e significados -, serão apreendidos e preservados?
Pensando mais especificamente na dimensão de traumas: Como um local, sede de barbáries, é processado e transformado em “lugar de cultura”, tal como Didi-Huberman nos define o campo de concentração de Auschwitz – local de confinamento e extermínio – atualmente um espaço memorial beirando a ficção daquilo que ele realmente foi outrora. Em seu pequeno livro Cascas o autor relata sua visita ao Museu Auschwitz-Birkenau, na Polônia, ocorrida em junho de 2011. Foi de lá que ele trouxe três “cascas” extraídas do caule de uma árvore de Bétula. E é assim que ele inicia sua obra literária com uma fotografia das cascas cuidadosamente dispersas num papel evidenciando sua busca por inspiração:
“Três lascas de tempo. Meu próprio tempo em lascas: um pedaço de memória, essa coisa não escrita que tento ler: um pedaço de presente, aqui, sob meus olhos, sobre a página branca; um pedaço de presente, aqui, sob meus olhos, sobre a branca página; um pedaço de desejo, a carta escrita, mas para quem? ” [2]
As cascas, ou lascas, são por ele consideradas “pedaço de memória” e surgem na narrativa como um estatuto indiciário, considerando a organicidade de uma árvore e sua longevidade, sua “presença” enquanto testemunho – involuntário –, da barbárie. É preciso um olhar atento, e profunda sensibilidade, para lidar com vestígios do passado. Ainda nos dias atuais testemunhos escritos e/ou gravados, achados arqueológicos, imagens, em suma, novos indícios não cessam de surgir e confluem num trabalho minucioso de construção, preservação e circulação dessa memória.
Atravessamos, em termos quantitativos, um momento histórico dramático no que diz respeito aos deslocamentos forçados e às solicitações de refúgio. Trata-se de um fenômeno extremamente relevante, de amplitude mundial e que está, aos poucos, reconfigurando nossa composição populacional. Nas redes sociais há uma profusão de gravações, imagens e depoimentos dispersos e de difícil apreensão o que se deve à própria violência das imagens ou a fugacidade inerente ao meio virtual. Sem dúvida temos elementos suficientes para a construção de uma história no contrapelo da denominada história “oficial”. Mas como lidaremos, a médio prazo, com essa profusão de relatos? Parece que será preciso transcorrer certo intervalo de tempo para que esse arcabouço possa ser incorporado como reflexão e fomento à memória. Mas quanto tempo?
Há cerca de dois anos postei na página da Associação Brasileira de História Oral (que presidi durante o biênio 2016 - 2018) o depoimento de um professor sírio acuado em meio a bombardeios na cidade de Aleppo. Essa postagem gerou um comentário questionando sua veracidade: “Antes de divulgar este tipo de informação, deveriam, como todo historiador, analisar as fontes provenientes, e não embarcarem no primeiro barco divulgado por qualquer agência de ‘notícias’ com intenções escusas...[4]”.
O referido vídeo integrava um editorial do The New York Times publicado em dezembro de 2016 e sugestivamente intitulado “Como o mundo fechou os olhos para o horror sírio”, cujo impacto das gravações, praticamente selfies no front de batalha, foram assim descritas pelo jornalista Michael Kimmelman [5]:
“Os rostos dos sitiados, olhando para a câmera, para nós e para a morte, pedindo ajuda, desconcertado pela nossa indiferença pelo abate, descrevendo as atrocidades fora de seus quartos ou simplesmente do outro lado da porta. Vemos seus rostos de um ângulo que normalmente vemos o rosto de um amigo, em close, olhando diretamente para nossos olhos [6].”
Pensando na ampla disseminação – e no rápido ostracismo dessas imagens e relatos de Aleppo a constatação “De tanto ver, não vemos mais”, de autoria de Jean Comolli, se torna oportuna. Na série de vídeos divulgados no site do jornal The New York Times estamos diante de um novo método de captação: uma espécie de “selfie História Oral”, ou seja, registros sem a mediação de um entrevistador, com o depoente olhando diretamente para a câmera, que é, na verdade, um telefone multifuncional. Pensando alto: será que no futuro, para que um depoimento possa ser considerado legítimo, ele não poderá vir mediado pela condução de um pesquisador/entrevistador? Mais adiante, Kimmelman dimensiona a força de tais imagens:
“E tudo o que fazemos é assistir, impotentes, como os sírios se recusam a ir em silêncio, determinados a nos fazer conhecê-los, a suas vidas, tudo o que foi perdido” [7].
A despeito da dramaticidade de registros desse gênero, – e de incontáveis outros – eles surgem, circulam para em logo seguida cair no esquecimento, “perdidos” na volatilidade inerente das redes virtuais. Além disso muitas vezes relatos do gênero são condenados, ou minimizados, ou alvo de dúvida sobre sua autenticidade.
Dentre vários exemplos possíveis há o caso da menina síria Bana Al-Abed que, aos sete anos de idade tuitava sobre sua vida em meio à guerra. Quando suas postagens ganharam dimensão a reação imediata que se espalhou pelas redes foi acusá-la de ser uma fraude. Foi necessário que ativistas e médicos – que trabalhavam nas proximidades de sua residência em Aleppo – corroborassem por Skype e pelo Whatsapp – que ela e a mãe “eram quem elas diziam ser [9]”, afirmação publicada pelo New York Times por mais surreal que possa soar. Essas vítimas de carne e osso, e que nos falam diretamente aos olhos, de tão reais, se tornam irreais. Nesse sentido a historiadora Régine Odin é precisa:
“Esquecemos, recalcamos, mantemos longe, ou no mais profundo, o que nos incomoda: preenchemos os baús da história de cadáveres, esperando abri-los e reencontrá-los sem reconhecê-los [10]”
Qual seria o intervalo de tempo necessário para que um trauma dessa dimensão seja devidamente “processado”, seus indícios e evidências acolhidos como fonte histórica, seus relatos e imagens incorporados em narrativas e que aquilo que dele restou possa atingir o estatuto de evidência e memória? É preciso a barbárie se encerrar como algo “cotidiano” para que possamos processá-la, nomeá-la, condená-la, analisá-la, repudiá-la?” Vivemos num estado de alienação imersos cotidianamente numa profusão, um tanto quanto dispersa e desordenada, de informações e de imagens difundidas em diversas mídias e redes sociais. Quando os destroços dessa guerra vão adquirir o estatuto de lascas “arqueológicas”, tal com as lascas de Bétula de Didi Huberman, quando seus testemunhos e suas imagens irão adquirir o estatuto de fonte histórica? Quando seus fragmentos adquirirão um caráter indiciário?
Há uma imagem icônica e plena de significados, um símbolo desolador de uma fuga desenfreada, de uma esperança abortada. Refiro-me a imagem do corpinho inerte do menino Aylan Kurdi e todas as releituras derivadas desse registro: pintura, desenho, fotomontagem, gravura, mural, etc...
Desde que veio à tona, amplamente compartilhada e noticiada a imagem devastadora se transformou em símbolo de tantas outras mortes – de adultos e crianças – que a precederam e que a sucedem. Vivemos tempos desoladores em amplos espectros, só para termos uma dimensão em números, segundo relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) ao final de 2016 cerca de 65,6 milhões de pessoas, ou seja, um dentre cada cento e treze indivíduos em todo mundo, foram compelidos a deixar seus locais de origem por diferentes tipos de conflitos, o que equivaleria a um deslocamento a cada três segundos [14].
Remeto novamente ao editorial do The New York Times citado no começo desse artigo:
“Verdade seja dita, nenhuma pessoa sã quer ver essas imagens, de todo modo. O que está acontecendo em Aleppo é quase insuportável de se ver” [15].
Enquanto alguns não suportam ver, outros não suportam viver e fogem. Nessa travessia, rumam por caminhos incertos, enfrentam naufrágios, percorrem longas e tortuosas caminhadas, são confinados em campos de refugiados, são vítimas de xenofobia e de toda a sorte de violações de diretos humanos. Nem sempre é melhor a vida que lhes aguarda do outro lado da trincheira.
Aos poucos essa crise humanitária vai sendo interpretada e representada pelo viés da arte, do vídeo e da performance. Nesse sentido destaco a obra do escultor britânico Jason de Caires Taylor que se inspirou na pintura "A Jangada da Medusa" (1818) de Théodore Géricault para criar "A Jangada de Lampedusa" uma das obras que constituem um museu subaquático inaugurado na Espanha em 2016.
Segundo o artista, a escultura é uma "representação angustiante da crise humanitária em curso", traçando um paralelo entre o "abandono sofrido por marinheiros num naufrágio e a crise dos refugiados atual". Numa opção de representação extremamente realista, os modelos da obra foram moldados a partir de corpos de refugiados que conseguiram sobreviver à perigosa travessia do Mar Mediterrâneo.
Nas profundezas das águas, precisamente a quatorze metros da superfície, a escultura representa uma embarcação com refugiados em travessia. Envolta em águas azuladas e translúcidas a imagem é desoladora. À esquerda da imagem uma jovem se debruça para fora do bote, tocando a água numa pose sonhadora. Do lado oposto, um jovem – talvez tentando adormecer – se acomoda desconfortavelmente sobre os passageiros, no exíguo espaço, tapando os olhos com seu um de seus braços, causando a sensação de exaustão. Sentado, sob uma de suas pernas, há um rapaz absorto mirando lugar algum. Ao seu lado um menino, franzino, se encolhe como que tentando se aquecer. Logo adiante, na proa da embarcação, um homem se projeta como se estivesse desvendando o horizonte incerto do seu trajeto de viagem.
Ao contrário da tela de Géricault, os náufragos da escultura não se contorcem em expressão de desespero, dor ou morte. Eles são representados vivos durante uma travessia clandestina. Fora do alcance dos olhos, nas profundezas do oceano só os enxergam aqueles que ali mergulharem. Nesse amontoado de seres se distinguem sonhos, pesadelos e impotência...submersos no silêncio. Submersos, subterrâneos, clandestinos. Um dia voltarão à superfície exumados pela história. À deriva, imóveis no fundo do mar, a sensação é de que prosseguem viagem. Enquanto isso na superfície das águas, por terra ou por ar, a fuga prossegue.
Finalizo e os convido para uma reflexão a partir do sugestivo poema “O Despovoador”, de autoria de Samuel Beckett:
“Viagem em que todos os corpos procuram se despovoar. Suficientemente vasta para permitir procurar em vão. Suficientemente exígua para que toda fuga seja vã” (...). Todos então se imobilizam. A viagem talvez termine. Ao fim de alguns segundos tudo recomeça [18].”
[1] DIDI-HUMERMAN, G. CASCAS, Ed. 34, SP, 2017, p.10
[2 ]https://viapais.com.ar/argentina/241899-las-terribles-fotos-de-una-beba-que-muestran-el-hambre-en-medio-de-la-guerra-siria/ pesquisado em 9 de outubro de 2018.
[3] Informação pessoal.
[4] https://www.nytimes.com/interactive/2016/12/14/world/middleeast/kimmelman-images-of-aleppo.html, pesquisado em 9.10.2018
[5] Tradução livre. The New York Times, USA, 14.12.2016.
[6] Tradução livre. The New York Times, USA, 14.12.2016.
[7] https://twitter.com/AlabedBana, pesquisado em 9.10.2018
[8] FONTE: https://www.nytimes.com/2016/12/07/world/middleeast/aleppo-twitter-girl-syria.html?_r=0, pesquisado em 9.10.2018
[9] Régine Robin, A Memória Saturada, Ed. da UNICAMP, 2015, p.38.
[10] Fonte: AP Photo/Unrwa
https://www.cartacapital.com.br/revista/871/o-exodo-do-seculo-xxi-3395.html, pesquisado em 9.10.2018
[11]https://www.vice.com/en_us/article/zngqpx/nilfer-demir-interview-876, pesquisado em 9.10.2018
[12]https://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/09/15-ilustracoes-em-homenagem-ao-menino-aylan-kurdi.html, pesquisado em 9.10.2018
[13]http://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/04/refugio-em-numeros_1104.pdf, pesquisado em 9.10.208
[14] https://www.nytimes.com/interactive/2016/12/14/world/middleeast/kimmelman-images-of-aleppo.html, pesquisado em 9.10.2018
[15] Escultura do britânico Jason de Caires Taylor no Museu subaquático no Largo de Lanzarote – Espanha. pesquisado em 9.10.2018
[16] FONTE: http://rr.sapo.pt/noticia/48295/ha-um-barco-de-refugiados-afundado-e-um-alerta-e-e-arte, pesquisado em 9.10.2018.
[17] BECKETT, S. Apud: DIDI-HUMERMAN, G. CASCAS, Ed. 34, SP, 2017.