Daniela Palma é professora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp. Integra o Comitê Gestor do Pacto Universitário pela Promoção do Respeito à Diversidade, da Cultura da Paz e dos Direitos Humanos da Unicamp.
“Art. XXVI. 2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.”
(Declaração Universal dos Direitos Humanos)
A educação é uma das atividades centrais para a ação necessária e constante de reparação do mundo. Hannah Arendt afirma que educar as crianças e os jovens é um tipo de tomada de “responsabilidade coletiva pelo mundo”, que teria a função, não de lhes ensinar como viver, mas de apresentar aos “recém-chegados” como as coisas ao nosso redor são. Se temos a recorrente sensação de que o mundo se desgasta, “nossa esperança está sempre pendente do novo que cada geração aporta”. [1]
Renovar o mundo comum parece, pois, também a razão que transformou a noção de Direitos Humanos no principal conjunto de ideias políticas na contemporaneidade. Princípios relativamente simples em suas definições (e complexos nos processos de sua realização) que representam elevadas aspirações de transformação em prol do bem coletivo e na sedimentação de caminhos para uma cultura da paz e do respeito às diferenças, uma utopia, conforme define Samuel Moyn, capaz de “evocar a esperança e provocar a ação”. [2]
É papel da educação escolar a afirmação dos Direitos Humanos?
A considerar o entendimento geral que, há décadas, vem se apresentando em documentos da área, em níveis nacional e internacional, os Direitos Humanos ocupam grande centralidade nas políticas educacionais. Da mesma maneira, não é possível pensar em projetos de universalização de uma cultura dos Direitos Humanos sem que a educação esteja no núcleo das ações previstas.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos reconhece não apenas o acesso à educação como direito fundamental, mas também a necessidade de garantir que todas as formas de educar sejam baseadas no fortalecimento desses princípios. O documento afirma três garantias essenciais sobre o tema: a primeira atenta para o papel dos Estados (o dever de oferecer acesso universalizado ao ensino básico gratuito, à instrução técnico-profissional e ao ensino superior), a segunda é voltada aos educadores e instituições educacionais (o dever de fundamentar o processo formativo no respeito aos direitos humanos, às liberdades, às diferenças e no estímulo à paz) e a última, aos pais ou responsáveis (o direito à liberdade de escolha quanto ao gênero de educação).
A segunda garantia é o centro desse artigo da declaração, o ponto de sua universalização, ao qual as outras duas aparecem amarradas: é dever do Estado garantir o ensino público, este deve ser assentado em princípios do respeito à dignidade humana e do livre pensar, bem como, é essencial, para proteger a liberdade que permita a pluralidade nos modelos e propostas de ensino, que a educação, em todas as suas formas, seja compreendida como esfera para a promoção da tolerância e do pensamento crítico para “o pleno desenvolvimento da personalidade humana”.
O que é educar para os Direitos Humanos?
No Brasil, encontramos diretrizes educacionais no Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (PNEDH), lançado em 2003. Consonante com a Constituição Federal e com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, o documento fornece orientações teóricas e práticas no tratamento escolar do tema. Em 2013, foi publicado o Caderno de Educação em Direitos Humanos – Diretrizes Nacionais (CEDH), também no intuito de consolidar caminhos para educação em Direitos Humanos. Ambos os textos ressaltam que o objetivo principal das ações propostas deve ser o combate a todos os tipos de discriminação e a base de sua proposição é a compreensão da educação como espaço de estímulo para “que o sujeito possa realizar uma nova interpretação de sua existência, tornando-se livre das violações e dos preconceitos que permeiam o seu ambiente”. [3]
No que tange aos sentidos de direitos de humanos, os documentos procuram articular visões igualitárias e universalizantes, com base no direito natural, a sentidos mais contemporâneos calcados em políticas de proteção às diferenças culturais e de direitos de minorias.
Em 2005, a Assembleia Geral da ONU aprovou a primeira fase do Programa Mundial para a Educação em Direitos Humanos que, em seu plano de ação, orienta atividades voltadas para capacitar e difundir informações no intuito de “criar uma cultura universal dos Direitos Humanos”. Ressalta-se, no documento, que a educação em Direitos Humanos deve se voltar principalmente para a transformação de atitudes e comportamentos. Assim, o PMEDH propõe ações educativas de perfil prático, que estejam vinculadas aos contextos particulares de aplicação.
Caminhos e obstáculos da educação em Direitos Humanos
Em um quadro social como o brasileiro, marcado por enormes desequilíbrios no acesso aos direitos fundamentais e atravessado por diversas formas de violências e persistências autoritárias, a ideia de sensibilização para os Direitos Humanos encontra muitos ruídos – materializados em desde alguns tipos de resistências ideológicas dentro e fora da escola, até em dificuldades de natureza formativa.
Poderíamos pensar aqui, por exemplo, no descolamento entre a compreensão conceitual de sentidos relacionados aos Direitos Humanos e a percepção prática dessas noções no cotidiano particular, algo que reforça o papel de políticas de ensino com ênfase no plano mais concreto das experiências. Em pesquisa recente do instituto Ipsos, 66% dos entrevistados se declararem “a favor dos Direitos Humanos” e 21% (na não estimulada) responderem que “Direitos Humanos significam a igualdade de direitos a todos”. Tais resultados aparecem em simultaneidade com afirmações que poderiam ser consideradas contraditórias: 66% consideram que “os Direitos Humanos defendem mais os bandidos” ou, ainda, que para 54% a percepção é a de que “Direitos Humanos não defendem pessoas como eu”. Na avaliação dos responsáveis pela pesquisa, esses dados apontam para uma visão positiva daquilo que os Direitos Humanos deveriam ser (“igualdade de direitos”) e uma representação negativa daquilo que os entrevistados consideram que os Direitos Humanos são (“a defesa de bandidos”, “não me defende”). [4]
Informações como essas ajudam a compor um quadro diagnóstico que aponta uma recorrente desconexão cognitiva entre a compreensão conceitual e a percepção concreta dos direitos essenciais, o que envolve também componentes de ordem emocional. Os Direitos Humanos compõem uma retórica positiva apoiada em figuras negativas (representações das violações) e isso pode gerar fissuras na forma de apreendê-los. Os enunciados mais correntes, que formam “a língua dos Direitos Humanos”, tendem a ser muito gerais, apoiados em princípios universalizantes, e o entendimento conceitual deles pode não representar a sua apropriação para vida, ou seja, não carregar a capacidade de transformar atitudes.
Isso aponta para um dos grandes desafios para tratar pedagogicamente o tema e talvez indique que os caminhos para a formação em Direitos Humanos não devam se orientar pela busca de uma mera tomada de posição (“ser a favor dos Direitos Humanos”), com base em posturas contemplativas de cunho moral. Podem ter mais efeito meios que ajudem a ampliar as consciências sobre o mundo, incentivando, por exemplo, a pensar a partir das contradições, a mesclar o particular e o universal, o emocional e o racional e a compreender os Direitos Humanos não como uma esfera de virtudes, mas como um campo de discursos e práticas definido por disputas e harmonizações e sobre o qual as experiências coletivas e pessoais deixam marcas indeléveis.
Desafixar compreensões muito rígidas sobre os Direitos Humanos pode ser, assim, um caminho para torná-los viáveis como projeto político pedagógico, de modo que permita a abertura de espaços para formas de pensar críticas e propositivas, capazes de ajudar os indivíduos a (re)avaliar constantemente sua pertença e seu papel no mundo e a agir com justiça.
[1] ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 1979. p.243.
[2] MOYN, S. The Last Utopia: Human Rights in History. Cambridge (MA): The Belknap Presso of Harvard University, 2012.
[3] BRASIL-SDH. Caderno de Educação em Direitos Humanos: Diretrizes Nacionais. Brasília: SDH, 2013. p. 42.
[4] SHALDERS, A. Dois em cada três brasileiros acham que ‘direitos humanos defendem mais os bandidos’, diz pesquisa. BBC Brasil, 18 mai 2018. Disponível em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-44148576?ocid=socialflow_facebook.