A viagem ao Jalapão, no estado do Tocantins,
atraiu não só o olhar de antropóloga mas também o de artista
e fotógrafa de Silvia Helena Cardoso. A pesquisadora encontrou
no quase ermo do cerrado motivação para conduzir a tese
de doutorado, defendida em junho na Galeria de Arte da Unicamp,
cujo objetivo foi desenvolver um trabalho poético no qual
a subjetividade é pensada como conhecimento e como matéria
poética. “No Jalapão, tive encontro com essa subjetividade
porque o cerrado e essa paisagem desértica dão margem a
uma viagem interior”, declara Silvia.
O trabalho deu origem ao livro de fotografias
Estrada, Paisagem e Capim, que contém as imagens reveladoras
do deslocamento a partir de uma percepção panorâmica para
um recorte fragmentado, em detalhes. Segundo Silvia, as
fotografias são acompanhadas de relatos que mostram a aproximação
da artista-pesquisadora não só com a geografia do Jalapão,
mas com o universo humano presente naquele lugar. A pesquisadora
enfatiza que as pessoas se tornaram coautoras do trabalho
a partir do momento que suas histórias direcionaram a vivência
da artista naquela pequena parte do cerrado.
Além da impressão em papel das 72 imagens
que compõem o livro, o trabalho resultou num álbum digital
com 170 fotografias selecionadas entre as 5 mil imagens
capturadas por Silvia. A maioria das imagens é colorida,
à exceção de dois retratos, em que a cor foi subtraída para
dar ênfase à fotografia em preto e branco. O material mostra
cada viagem, cada descobrimento e o aprofundamento no bioma
cerrado. A pesquisa foi concluída com a realização de uma
exposição das fotos e da mídia.
A
sobreposição de olhares deu origem a um compêndio sobre
o Jalapão, por meio das imagens capturadas pela objetiva
digital da artista, capazes de revelar tanto a beleza quanto
a melancolia de um cenário agredido por queimadas. Parte
da história do Jalapão compreendida entre 2006 e 2009 é
contada pelo percurso da artista, que teve início com a
viagem Ade encantamento e prosseguiu com a viagem do conhecimento.
Hospedada na comunidade secular de Mumbuca, berço do artesanato
de capim dourado, Silvia pôde ter contato com os quilombolas
e fotografar as mulheres trabalhando com o capim dourado
e a linha de seda de buriti, mas, ainda movida pelo encantamento,
retomou o foco por constatar que a natureza poética da pesquisa
era a paisagem.
Segundo Silvia, os deslocamentos deram vazão
às experiências estéticas que foram pontuadas por conhecimentos
objetivos e subjetivos, a partir do contato com aquele universo
e da forma com que repercutiram internamente. Os objetivos,
de acordo com a autora, oferecem um conjunto de informações
encontradas em histórias orais narradas pelos moradores
do Jalapão que fazem parte de um imaginário coletivo. Já
os conhecimentos subjetivos dizem respeito aos sentimentos
e às sensações possíveis por meio da permanência e do contato
com o lugar.
A prática e a teoria caminharam juntas durante
o projeto, segundo Silvia, pois as imagens foram apontando
para algumas teorias e para pensar o instante como matéria
da visualidade. Ela enfatiza que apesar de o Jalapão não
ser totalmente desértico, “a imensidão do cerrado é tão
profunda e oceânica a ponto de promover uma viagem interna,
necessária ao artista”. Ela lembra que alguns autores pesquisados,
como a sérvia Marina Abramovic, dizem que todo artista deve
fazer uma viagem ao deserto para entrar em contato consigo
mesmo. “Foi isso que aconteceu comigo”, revela.
A paisagem se modificara, porém, na terceira
viagem, quando Silvia chegou para fotografar os campos de
capim dourado entre a primeira e a segunda chuva e encontrou
uma paisagem escura, bem diferente da que a havia encantado.
Diante disso, decidiu mudar o foco para as queimadas, pois
entre julho e outubro de 2010 o cerrado jalapoeiro ardeu
em fogo. “Parti do encantamento com a paisagem, pela superfície,
mas a partir do momento que aprofundei, encontrei muita
tristeza nos campos queimados e fiquei imaginando que 99%
das queimadas são provocadas pela mão do homem”. Nesse momento
do trabalho, diz ter se lembrado do escritor Hermann Hesse,
que disse: “A beleza é sempre assim: além do prazer, nela
encontramos também a tristeza e a angústia”.
Silvia
destaca momentos que se tornaram essenciais no processo
da construção poética. Um deles é a subida à Serra do Espírito
Santo. Para ela, uma das áreas mais exuberantes do cerrado
em que a dimensão do horizonte provoca encantamento, beleza
e possibilidade de uma experiência estética. Um segundo
momento apontado pela artista é a caminhada na TO-255, que
levou de Mateiros às Dunas, onde o corpo físico sentiu e
sofreu a temperatura do cerrado. E um terceiro momento foi
marcado quando ela pisou um solo queimado e pôde sentir
o calor do interior da terra e observar a morte das diferentes
espécies da flora. O quarto momento, segundo Silvia, foi
feito de silêncio e o frescor do Fervedouro. “Quase uma
compensação à angústia anterior, o contato com uma nascente
de água, metaforicamente um oásis, presente na imensidão
do cerrado. Foram momentos de contato com a essência poética.
O trabalho ganhou fôlego, e a fruição artística aconteceu
naturalmente”, relata.
A artista espera que o trabalho poético,
a partir das fotografias e das reflexões pautadas em textos
de vários artistas, contribua para a reflexão sobre a paisagem
do Jalapão e o papel do homem na natureza. Ela disse que
começa por um longo percurso, guiada pela fotografia de Robert
Frank, que acompanhou imaginariamente parte das viagens
realizadas ao Jalapão, segundo Silvia, especialmente quando
a estrada se definiu como direção para os vários pensamentos
e dúvidas que foram levantados ao longo do processo da pesquisa
poética. O percurso a levou a pensar sobre a necessidade
da preservação da natureza.
Silvia diz ter a impressão de que existe
uma aproximação da natureza enquanto matéria para ser trabalhada
na arte contemporânea. O que possibilita discutir a natureza
e a permanência dela, assim como a relação do homem com
a natureza no campo das artes. “Na verdade, a natureza é
auto-preservativa. Ela se preserva sempre. Ela só está em
destruição porque o homem destrói. Acredito que colaboro
no sentido de pensar a arte com esse foco do tema destruição
do planeta”, reflete Silvia.
Entre outros artistas lidos por ela está
Joseph Boys, que também fez um trabalho a partir dos anos
50 no qual fala sobre a necessidade de preservação da natureza.
Ele diz: “O homem saudável pode combinar harmonicamente
querer, sentir e pensar”. Silvia também acredita ser possível
combinar essas coisas: desejo, pensamento, sentimento e
ação.
Entre as muitas linhas de Lévi-Strauss
que fizeram Silvia refletir sobre seu trabalho, ela destaca
a seguinte: “O homem não é só bom para comer. O homem é
bom para pensar”. Ícones da literatura brasileira também
contribuíram para as reflexões de Silvia, entre eles Clarice
Lispector e Guimarães Rosa, com seu Grande Sertão: Veredas,
que, quando fez incursões pelo sertão brasileiro, aborda
um pedaço do cerrado jalapoeiro que tanto a encantou. Mas
como a beleza é ao mesmo tempo encantamento, tristeza e
angústia, a missão da antropóloga não poderia abandonar
a pesquisa e deixar de chamar atenção para o fato de que
o Jalapão é uma parte do cerrado brasileiro que está em
constante transformação, nem sempre positiva. Ao contrário
disso, ela acredita que a destruição do lugar, por meio
dos inúmeros incêndios, das monoculturas, das explorações
desmesuradas, aumenta e revela pessoas, em certa medida,
despreocupadas com a permanência do lugar. “O homem leva
a vida de uma forma pouco responsável e ética e torna-se
testemunha da sua própria ação. O imediatismo e o desejo
de progresso a qualquer custo tornarão a Terra um espaço
pouco habitável e as relações humanas precárias e desgastadas,
e o Jalapão parece ser um exemplo vivo”, enfatiza.
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■ Publicação
Tese: “Estrada, Paisagem
e Capim - Fotografias e Relatos no Jalapão”
Autor: Silvia Helena Cardoso
Orientação: Luise Weiss
Unidade: Instituto de Artes (IA)