O
tema indígena está ausente da escola. Nas poucas vezes
em que o assunto é tratado em sala de aula, com frequência
a abordagem apresenta o índio como alguém distante no
espaço e no tempo, que pouco tem a ver com a história
e a cultura do Brasil. Foi a partir dessa constatação
que os historiadores Pedro Paulo Funari e Ana Piñón produziram
o livro A temática indígena na escola - Subsídios
para os professores, que acaba de ser lançado pela
Editora Contexto. O objetivo da obra, como o título indica,
é oferecer elementos para que os educadores, principalmente
os que atuam nos níveis fundamental e médio, possam conhecer
mais sobre a importância desse grupo humano e acerca da
sua contribuição para a constituição da sociedade brasileira.
“Os nossos professores têm um problema de formação nesse
sentido. Eles não tiveram informação sobre a antiguidade
do homem brasileiro e, consequentemente, da relevância
dos indígenas e de seus costumes. O livro pretende contribuir
para suprir essa deficiência”, explica Funari, que é docente
do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e coordenador
do Centro de Estudos Avançados (CEAv) da Unicamp. Na entrevista
que segue, ele fala sobre outros aspectos da obra.
Jornal da Unicamp – O livro surgiu da constatação
de que o índio está sendo apagado da história do Brasil?
Pedro Paulo Funari – O que acontece
é que o tema indígena estava ausente da escola. Há alguns
anos o governo Lula estabeleceu que a História da África
tinha que ser incluída no ensino brasileiro. Isso está
sendo implementado nos cursos de História das universidades.
Por causa da iniciativa, o tema aparece nos livros didáticos.
No caso dos indígenas, isso não acontece. Existe uma falta
de atenção para a importância deles na nossa história,
cultura e sociedade. Quando o índio é tratado nos livros,
o que acontece é o seguinte: reserva-se um capítulo para
tratar de tudo o que ocorreu antes de 1500 e todo o restante
para falar do período posterior. A impressão que fica para
as crianças é que tudo começa depois de 1500. Ou seja,
a ideia que fica é a de que o índio deixou de existir a
partir de 1500 ou que foi jogado para longe, no mato.
JU – Há quem estranhe ao saber que temos
comunidades indígenas muito perto de nós, não?
Funari – Outro dia vi uma pessoa se
surpreender com a informação de que existiam índios na
cidade de São Paulo. E há mesmo. Então, essa é uma preocupação
do livro: mostrar que os índios não são apenas do passado
e não estão todos distantes. E aí entra outro lado que
o livro trata bastante, que são os costumes, a cultura
e as tradições indígenas. A herança indígena é forte no
Brasil, mas nós não a reconhecemos. Ela está presente
na culinária, nos utensílios, nos nomes de rios e cidades
e nos costumes. Tomar banho, por exemplo, é um hábito
indígena. Nossa alimentação está muito baseada em comidas
indígenas, como a pamonha. Ou seja, há inúmeras características
culturais nossas que têm origem indígena, mas que não
são ressaltadas. Por quê? Justamente porque o índio é
considerado distante no tempo e no espaço. A visão predominante
é a de que ele é antigo e não existe mais; e os que existem
estão longe.
JU – O povo brasileiro é resultado da miscigenação
entre negros, índios e europeus. Mas parece que as pessoas
preferem indicar sua ascendência europeia e negar a indígena.
Isso ocorre de fato?
Funari – Aí entra outro aspecto. Em
termos genéticos, a presença indígena também é muito forte
no Brasil. Muitas pessoas têm ascendência indígena. Eu
mesmo tenho ascendentes indígenas. Mas isso também passa
ao largo. Muita gente não reconhece o antepassado indígena.
É mais fácil reconhecer o antepassado italiano ou português,
por causa do sobrenome. O índio, entretanto, não tem sobrenome
ou tem sobrenome português. Além de ser mais fácil de
identificar, falar do antepassado europeu soa mais valorizado.
Os afrodescendentes também valorizam muito esse aspecto,
seja por causa da ação de seus grupos representativos,
seja por conta de políticas públicas afirmativas. Não
estou querendo dizer com isso que não tenhamos problemas
de discriminação em relação aos afrodescendentes. Mas
no caso dos índios, a problemática é ainda maior. Como
eles vivem fora da sociedade, essa relação fica ainda mais
complicada.
JU – Essas desinformações sobre o índio
são cristalizadas na escola, não?
Funari – Sim. O livro é voltado ao professor
que está em sala de aula. A escola é quem forma essas
representações equivocadas dos índios. Temos que lembrar
que os livros didáticos são os que estão mais presentes
na casa das pessoas, junto com a bíblia. As obras das
áreas de humanidades, como português, história e geografi
a, são as que dão visão de mundo, são as que ajudam as
pessoas a formar uma ideia de si mesmas e da sociedade.
Entretanto, esses livros falam do 19 de abril como o Dia
do Índio, mas não contam como a data foi criada. No livro,
nós explicamos que o dia foi inventando na década de 30,
num congresso de americanistas, tendo como objetivo a
valorização do índio do continente americano. O Brasil
adotou essa festividade dentro desse contexto pan-americano.
A iniciativa foi fomentada principalmente pelos países
de língua espanhola, nos quais a presença indígena era
muito forte, como México, Peru e Bolívia.
JU – A motivação foi nobre, então?
Funari – O motivo foi nobre, mas o
que estava por trás da iniciativa merece atenção. Os países
que propuseram a criação da data queriam usar os índios
para dizer “nós somos diferentes” dos outros e da Europa.
Ou seja, havia uma motivação nacionalista na medida. O
México queria destacar os antepassados astecas e maias.
Peru, os incas. Na década de 30, com o nacionalismo de
Getúlio Vargas, o Brasil também embarcou nesse movimento.
Mesmo antes, no século XIX, isso já acontecia. Carlos
Gomes, com sua ópera O Guarani, e José de Alencar, com
os livros O Guarani e Iracema, também destacavam uma imagem
idealizada dos índios.
JU – Esta é a visão que ainda é passada
aos estudantes dos ensinos fundamental e médio?
Funari – O livro traz em sua parte
final um trabalho empírico que realizamos junto a alunos
de escolas fundamentais. Nós pedimos às crianças que fizessem
desenhos de índios, para que pudéssemos identificar que
visão elas tinham do tema. E a visão que emergiu foi justamente
a do índio distante, isolado. Elas não pensam nos índios
como membros de um grupo. Em algumas imagens, o índio
brasileiro é associado ao norte-americano. Nós perguntamos
aos estudantes se eles já tinham visto algum índio. E
pudemos constatar contradição nas respostas. Alguns disseram
que jamais tinham visto, mas que tinham um antepassado
índio na família. Trata-se evidentemente de uma situação
ambígua. No Brasil, não é bom ter antepassado índio, porque
isso não é valorizado.
JU – Tem criança que acha que os índios
chegaram ao Brasil em 1500, com as caravelas, não é?
Funari – Exatamente. As crianças tem
uma visão pouco crítica a respeito disso. A maioria dos
livros didáticos registra que o Brasil é o país no qual
a presença humana é a mais antiga nas Américas, algo como
50 mil anos. No entanto, a maior parte dos alunos responde
que os índios estão aqui desde 1500. Claro que precisamos
investigar melhor a explicação para isso, mas me parece
que tem a ver com o fato de o livro didático reservar
três ou quatro páginas para tratar de tudo o que veio
antes de 1500 e todas as outras para falar do depois de
1500. Para as crianças, fica a impressão de que tudo começou
em 1500, inclusive os índios. E que depois disso tudo
relacionado a eles desapareceu.
JU – O que está na base do problema é a
deficiência na formação dos professores, então?
Funari – O livro se volta para professores.
Há um problema na formação dos educadores. Eles não tiveram
informação sobre antiguidade do homem brasileiro e, consequentemente,
acerca da importância dos costumes indígenas. O curso
de História da Unicamp não tem uma disciplina de Préistória.
A maior parte dos cursos de outras instituições também
não tem. Tem história da África porque foi introduzida
pelo governo Lula. Estou citando a Unicamp porque a instituição
tem um ótimo curso e detém a maior nota na pós-graduação
do Brasil. Então, isso serve para dar um exemplo de como
o professor não tem muita informação do lado pré-histórico.
Do lado histórico, também não existe disciplina de história
indígena na América ou no Brasil. A formação do professor,
nesse aspecto, é deficiente. A informação que ele tem vem
do próprio livro didático e do que a mídia divulga.
JU – O público-alvo do livro é constituído
somente por professores de História?
Funari – É importante atuar na formação
do professor, mas não apenas o de História. Nosso objetivo
é atingir também os professores que não têm formação superior
plena e os de outras disciplinas, como Geografia, Português
etc. A pretensão do livro é fornecer subsídios para mostrar
a esses educadores a importância histórica, geográfica,
cultural e linguística do indígena para o Brasil. Veja
um exemplo: as pessoas normalmente acham que a religiosidade
brasileira foi construída a partir das crenças africanas
e católica. Entretanto, várias coisas que atribuímos ao
catolicismo e aos cultos africanos têm matrizes indígenas.
Os búzios usados no candomblé, por exemplo, vêm dos colares
usados pelos índios, que tinham uma significação mágica.
A noção de espírito tem tanto características africanas
quanto indígenas; há uma confluência grande nesse sentido.
JU – O livro oferece uma perspectiva histórica
da presença do índio no Brasil?
Funari – Sim, o livro procura dar uma
perspectiva histórica. Ele começa com colonização, fala
do contato dos europeus com os indígenas e do papel da
Igreja na difusão da língua indígena, por meio dos padres
jesuítas. Com a expulsão dos jesuítas, o livro mostra
como o índio passou a ser idealizado, principalmente no
Romantismo. Depois, mostramos como essa visão mudou no
século 20, com o advento da República. Foi quando se deu
início à expansão da fronteira agrícola em direção ao
Oeste, o que implicou na matança ou na expulsão dos índios.
Ao mesmo tempo, falamos da criação da Sociedade de Proteção
ao Índio, que mais tarde deu lugar à Funai [Fundação Nacional
do Índio] para cuidar desse grupo humano. E chegamos finalmente
ao período atual, de 1985 para cá, que coincide com a
democratização do país. É quando se tem uma nova visão
do indígena. É quando o cacique Juruna é eleito para a
Câmara dos Deputados, quando ocorre a delimitação das
terras indígenas e em que é inscrito na Constituição o
reconhecimento da diversidade cultural do país. Nesse
período recente, ocorre alguma valorização do índio, mas
em sua comunidade. Penso que essa valorização não tem
sido maior porque, mais uma vez, o índio está distante
no tempo e no espaço e porque não tem representatividade
política, como ocorre com os afro-descendentes.
JU – O livro faz uso de uma linguagem não
acadêmica?
Funari – Livro tem linguagem acessível.
Ele não tem notas, como ocorre nos textos acadêmicos.
As referências estão organizadas em um setor próprio.
Trabalhamos com imagens e com mapas históricos. Um aspecto
importante a ressaltar é que o livro não trata apenas
de índios brasileiros, mas do continente americano como
um todo. Embora diferentes, os processos a que foram submetidos
têm pontos em comum.
JU – O livro tem como coautora a historiadora
Ana Piñón...
Funari – Ela é uma estudiosa do tema.
Já publicou um livro sobre a temática indígena, destacando
a questão do uso da pré-história do Brasil na escola.
O nosso livro tem aspectos que fazem parte da tese de
doutorado que Ana está defendendo na Universidade de Madrid,
sob minha orientação. Ela fez a pesquisa empírica nas
escolas e tratou os dados estatísticos.
JU – Qual a expectativa em relação à recepção
do livro por parte do público?
Funari – Expectativa é atingir os professores
e também o público em geral. Queremos despertar o interesse
das pessoas pelo tema, não apenas porque a literatura
é escassa, mas porque o a temática é relevante para os
educadores, para a sociedade. As pessoas querem ter maiores
e melhores informações a respeito.