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Traduções para ler além
poem(a)s de e. e. cummings por Augusto de Campos

POR: MAURICIO MENDONÇA CARDOZO

A Editora da Unicamp acaba de saudar o público brasileiro com mais um lançamento importante. Trata-se do livro poem(a)s, que traz 74 traduções de Augusto de Campos para poemas do poeta americano E. E. Cummings (1894-1962). Esta é a quinta antologia de poemas de Cummings publicada pelo tradutor brasileiro, resultado de um trabalho iniciado em meados da década de 50 e que encontraria a primeira edição em livro em 1960.

Neste ano de 2011, em que se completam os 80 anos de vida do tradutor, bem como os 51 anos daquela edição princeps, que foi também a primeira antologia de poesia traduzida publicada em livro pelo tradutor, pode-se dizer de seu trabalho o que ele mesmo dissera de Cummings na edição de 1999: “É espantoso pensar que e. e. cummings teria feito 100 anos em 14 de outubro de 1994, tal a juventude que emana de sua poesia, ainda tão pouco assimilada e ainda tão nova”.

No caso de Augusto de Campos, espantanos menos sua juventude, quase estigmatizada na sempre tão viva figura de um dos enfants terribles da vanguarda poética brasileira. Maior espanto causa-nos a evidência de que tão pouco avançou-se na discussão de seu trabalho de tradutor, a despeito de sua grande exemplaridade, de que nos dá dimensão o imenso impacto formativo que teve (e ainda tem) sobre as gerações de tradutores de poesia posteriores a sua.

Esboça-se aí um paradoxo, que tanto mais se explicita diante de uma tarefa como a de dar resenha do presente lançamento. Por um lado, impõe-se a impressão geral de que há muito pouco de novo a ser dito sobre a obra de um poeta como Cummings, traduzida por um tradutor-poeta como Augusto de Campos. Por outro lado, a constatação de que a obra tradutória de Augusto de Campos, em geral, e suas traduções de Cummings, em particular, oferecem-se ainda como um vasto continente, de que conhecemos apenas a porção mais litorânea. Esse paradoxo é sintoma de um determinado olhar, fundado numa lógica crítica que mais renega ou condecora do que nos abre novas perspectivas, que mais descarta ou eleva do que nos aproxima da obra desse tradutor.

Para falar da importância desta edição é preciso lembrar o lugar que as traduções de Cummings têm na obra de Augusto de Campos. Foram muitos os poetas que ele traduziu, publicados primeiramente em suplementos de jornal ou em revistas e, posteriormente, na forma de antologias mistas. Destes, alguns ganharam também espaço em antologia exclusiva. Um número ainda mais reduzido de poetas, como Hopkins e Rilke, ganharia uma segunda edição revista e ampliada. Cummings é um caso à parte.

A publicação de cinco edições diferentes dá ideia da importância que Augusto de Campos teve para a divulgação crítica do poeta americano. De uma lista que hoje ultrapassa uma centena de tradutores de Cummings mundo afora, Augusto de Campos foi o quarto a publicar uma antologia em livro, se às duas primeiras traduções (a alemã e a italiana, ambas de 1958) somarmos a pequena edição japonesa de Yasuo Fujitomi (também de 1958). No entanto, nenhum desses tradutores publicaria tantas edições revistas e ampliadas como o brasileiro. Mais do que pioneiro, Augusto de Campos é um dos mais importantes nomes para a recepção do poeta americano fora dos EUA. Primeiro, por seu papel decisivo na consolidação de uma percepção crítica mais receptiva aos procedimentos em jogo na obra do poeta. Segundo, por fundar suas traduções nessa percepção crítica, sem capitular diante dos desafios poético-tradutórios que tal tarefa impõe. Terceiro, porque suas traduções tiveram impacto sobre um círculo de leitores, poetas e tradutores que não se restringiu ao público de língua portuguesa, alavancando o movimento de tradução de Cummings também em outras partes do mundo.

A publicação de cinco edições de Cummings em 51 anos evidencia, ainda, o quanto o poeta americano se fez importante para o poeta e tradutor brasileiro. Nada que nos cause espanto se, pensando em Augusto de Campos poeta, lembrarmos que Cummings foi poeta e pintor e que se autodefinia como “autor de imagens, desenhista de palavras”. Nada que nos surpreenda se, pensando em Augusto de Campos tradutor, lembrarmos que Cummings foi exemplar como poeta que revisitou rigorosamente a tradição, ao mesmo tempo que criou modos ousados e originais de inová-la. Se Augusto de Campos reconheceu em Ezra Pound (1885-1972) uma das figuras que teve maior impacto sobre sua formação, em Cummings reconhecerá um poeta com antenas sintonizadas na mesma estação.

NOVOS POEMAS, NOVAS TRADUÇÕES

Se a primeira edição de traduções de Cummings publicada por Augusto de Campos contava com uma pequena mostra de 10 poemas, cinco dos quais oriundos do importante livro No thanks (1935), explicitando, então, uma seleção mais representativa da marcante tipografia poética cummingsiana, esta nova edição, ao reunir poemas de cada um de seus livros, oferece ao leitor brasileiro um Cummings que se revela também em outras facetas.

Três dos onze poemas acrescidos a esta edição dão exemplo disso: “as damas de Cambridge” (poema 2), “eu gosto do meu corpo” (poema 4) e “depois de é claro deus américa eu” (poema 11), poemas da década de 20, agregam-se a um conjunto de poemas já traduzidos anteriormente por Augusto de Campos, o dos sonetos cummingsianos. Já integravam esse conjunto, na edição anterior, o poema 35, mais claramente disposto como um soneto, e os poemas 29, 37 e 43, todos da década de 40 e 50 e já menos evidentes na integridade de sua forma tradicional. Esse conjunto de sete poemas é representativo de um dos modos de embate de Cummings com as formas poéticas da tradição. É como se, sem poder ignorar a forma do soneto, mas também sem querer elevá-la à condição de relíquia, morta em sua preciosidade intocável, o poeta agisse sobre o soneto como o tempo sobre as construções do passado e, com a força de sua intempérie poética, produzisse um soneto ruína: não para reafirmar uma ruína da forma (como se a forma, em si, tivesse perdido sua vitalidade), mas para dar-lhe novo vigor, mostrando que a falta de vitalidade reside, antes, no modo de empenhar tal forma poeticamente.

A edição bilíngue é um convite aberto. Um convite que frustra o leitor interessado apenas no jogo dos 7 erros, mas que surpreende o leitor interessado em flagrar um tradutor em seus movimentos.

No poema 4, em que as migalhas rímicas do soneto ruína parecem menos centrais que a persistência de um ou outro pentâmetro iâmbico (i like my body when it is with your), que se vai quebrando em outras formas rítmicas, flagramos um tradutor que constrói uma ruína rítmica de matriz alexandrina, que se vai esfacelando, mas sem perder sua referência de unidade, como a palavra “vértebras”, do quinto para o sexto verso, que, cortada (vért / ebras) para o ajuste do alexandrino no quinto verso, mantém viva a lembrança de sua unidade na força do enjambement que constitui. No poema 11, flagramos um tradutor que reconstrói o tom da canção patriótica americana com alusões ao hino nacional brasileiro, em versos como “te amo ó pátria amada idolatrada etc não / viram do ipiranga as margens?em teu”. E num poema tão repleto de referências e citações como o poema 7, flagramos um tradutor que não somente se permite acrescentar uma nota de rodapé, como não hesita em incorporar, entre colchetes, num verso, no próprio corpo do poema, uma nota explicativa para a sigla (D. V. B). Não se trata aqui de estranhar o procedimento, em si, mas de perceber esse gesto no movimento de um tradutor como Augusto de Campos, cuja imagem é tão fortemente marcada como a de um tradutor predominantemente preocupado com questões formais. Ao dizer o que diz na nota, o tradutor oferece subsídios de leitura que tornam ainda mais explícito o poema-protesto. Mas, ao usar desses recursos explicativos, diz também de uma liberdade de ousar fazê-lo em tradução de poesia, colocando em questão a ideia de que um rigor formal extremo implique necessariamente em um descaso com questões de outra ordem.

INCANSAVELMENTE AMPLIADO, INCESSANTEMENTE REVISTO

É elogiável a precisão e o rigor com que esta edição encara o pesadelo tipográfico da publicação de Cummings, o que a torna a edição mais bem-sucedida de Cummings já publicada por Augusto de Campos.

Ainda que partindo de uma edição tão bem cuidada, como a de 1999, é impressionante a quantidade e a variedade das revisões que um cotejo das edições permite perceber: o ajuste de uma ou outra palavra à nova ortografia; o acréscimo de um ou outro acento, de um hífen, de um parêntese, de uma vírgula, um ponto e vírgula ou de uma aspa que faltava; e, entre outras, a adequação de mais de uma dezena de espaçamentos ao padrão de não-espaçamento cummingsiano. Poucas intervenções do tradutor chegam a produzir uma nova versão de poema publicado anteriormente, caracterizando-se antes como pequenos ajustes. Os dois casos mais extremos dizem respeito a mudanças na quebra de verso: uma no poema 29 e outra no poema 65.

Não bastasse tamanho rigor e cuidado editorial, a presente edição ainda amplia consideravelmente a sessão de documentos e imagens, que agora ganha cor nas 15 páginas finais do livro.

ENVOI: ALGUÉM NOS OUVIRÁ?

Ao final do prefácio à segunda edição de suas traduções de Cummings (1979), o tradutor, aludindo ao desafio tradutório, tipográfico e editorial da publicação de Cummings no Brasil, lançava uma pergunta: alguém nos ouvirá?

Cabe somente a nós, leitores, ouvir de novo, dar novos ouvidos a esse Cummings que Augusto de Campos nos oferece. E, nesse Cummings, ouvir o que nos diz aquele que, na tradução, diz o poema do outro, mas também diz de si e da poesia e da tradução. Quem dará ouvidos ao que o tradutor e crítico Augusto de Campos diz, não apenas no espaço de seus prefácios e ensaios, mas também no próprio gesto de sua tradução, a cada passo, a cada lance, a cada drible, ainda agora, aos 51 anos do segundo tempo desse jogo de tradução da poesia cummingsiana?

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Mauricio Mendonça Cardozo é professor de literatura e tradução na Universidade Federal do Paraná (UFPR)



 
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