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Conexões epistolares
Pesquisadora do IEL
analisa cartas
enviadas por leitores a três escritores
JEVERSON
BARBIERI
Estudo
comparativo sobre a correspondência enviada por leitores aos
escritores Monteiro Lobato, Pedro Bandeira e Ana Maria Machado
evidenciou que, embora existam diferenciações por serem autores
diferentes e de épocas distintas, há muitas coisas comuns
e recorrentes nessa prática de leitura. A pesquisa realizada
pela doutoranda Raquel Afonso da Silva, do Instituto de Estudos
da Linguagem (IEL), em tese de doutorado orientada pela professora
Marisa Lajolo, concluiu ainda que essa correspondência constitui-se
num tipo de carta que poderia ser caracterizada como “carta
de leitor a autor”. É muito comum, de acordo com Raquel, que
os leitores se apresentem como alguém que aprecia o autor;
que citem as obras que leram e as que mais gostaram; as personagens
mais marcantes e, também, que peçam livros aos autores. “Estes
são os aspectos mais salientes da correspondência”, observou
a pesquisadora.
Outro ponto importante abordado
pela pesquisa e sobre o qual Raquel se debruçou foi a nítida
presença da escola no interior dessa correspondência. Desde
a época de Lobato, a escola, enquanto mediadora de leitura,
está presente nas cartas. No período dos leitores lobatianos,
que compreende as décadas de 1930 e 1940, a escola se apresenta
como um lugar a mais de circulação de livros e leitura. Dando
um salto no tempo, as cartas dos leitores de Ana Maria Machado,
que compreendem um período mais recente (2000 a 2005), mostram
que a escola aparece como a principal mediadora de leitura.
“A escola tomou uma dimensão muito grande e a família ficou
afastada dessa função nos dias atuais”, afirmou Raquel. Os
leitores escrevem a partir da escola, com funções restritas
ao interior dela, cumprindo alguma atividade que o professor
solicitou ou porque leram a obra e precisam escrever ao autor
como parte de uma tarefa pedagógica.
Como
consequência, a pesquisadora considera que é necessário pensar
qual tipo de leitura está mais presente, atualmente, entre
o público infanto-juvenil. Segundo Raquel, talvez não seja
aquela leitura que a escola coloca como obrigatória. “Ao contrário
disso, vemos muitos jovens lendo séries inteiras como, por
exemplo, Harry Potter, que são obras grandes”, observou. O
que precisa ser repensado, segundo ela, é qual o papel da
escola enquanto mediadora de leitura, uma vez que ela tem
uma importância fundamental a partir do fato de que muitos
leitores só terão contato com o livro no ambiente escolar.
“Muitos alunos vêm de famílias que não têm a prática de leitura
instituída por questões sócio-culturais. Muitas vezes, eles
não têm renda suficiente para comprar livros e a escola, desse
ponto de vista, é importantíssima porque é o lugar no qual
as crianças terão a oportunidade de ter contato com o material
impresso”, disse.
Para Raquel, a forma impositiva
com que a escola vem lidando com esse papel de mediadora talvez
seja a responsável pelo afastamento do leitor do gosto pela
leitura. Sob esse ponto de vista, avaliou a pesquisadora,
é necessário que a escola trabalhe com esse conceito e pense
como colocar essa “nova” leitura dentro dos seus domínios.
“A partir do momento em que a leitura torna-se obrigação,
também se torna chata e afasta o interesse pelo livro”, ressaltou.
Tipologia
A percepção de que existe de fato um tipo específico de carta
de leitor a autor, no âmbito dos estudos de correspondência,
é algo que não está restrito a um período. Para Raquel, o
ano de 1761, quando Jean-Jacques Rousseau publica o romance
epistolar Nova Heloísa, marca o primeiro grande período de
leitores se correspondendo com um autor. “Trata-se de um romance
que angariou um público leitor muito assíduo. Embora seja
historicamente bem distante do meu foco de pesquisa, é interessante
observar que as cartas desses leitores guardam muitas semelhanças
com os acervos com que trabalhei”, comparou. Existe sempre,
segundo a pesquisadora, a questão de agradar ao autor por
meio de uma série de elogios em relação à obra. Ademais, o
teor das cartas é o de sempre conversar sobre a obra, denotando
uma intenção de querer partilhar a leitura individual com
o autor.
A pesquisadora explica que
essa é uma forma não só de ver como está a recepção da obra
por aqueles que de fato a consomem, mas também de repensar
a própria escrita. Em Lobato, isso é constatado de forma evidente,
uma vez que leitores que se correspondiam assiduamente acabam,
de certa forma, entrando no universo ficcional de sua obra.
No livro O Picapau Amarelo (1939) vê-se um exemplo muito claro
desse aspecto, quando um grupo de crianças vai visitar o Sítio,
em determinado momento da narrativa. Embora possa parecer,
à primeira vista, que Lobato tenha inventado os nomes de todas
aquelas crianças, trata-se na verdade de leitores de “carne
e osso”, com os quais ele se correspondia com certa assiduidade.
Uma leitora especial, a carioca
Maria de Lourdes, 12 anos – que assinava suas correspondências
com o codinome Rã – participou, de modo especial, de uma dessas
aventuras, A Reforma da Natureza (1941). Lobato discute com
a garota o teor dessa obra nas cartas. Ela dá as suas opiniões
sobre uma série de reformas que achava que deviam acontecer
na natureza e seus comentários tornam-se matéria do livro.
No sítio, junto com Emília, a pequena leitora realiza a reforma
da natureza. Dessa maneira, a carta acaba entrando no universo
ficcional.
Raquel
notou ainda que nos acervos mais contemporâneos, principalmente
o de Ana Maria Machado, as crianças escreviam a partir da
escola, não existindo uma motivação particular, individual,
de escrever para o autor a partir de uma leitura que tenha
agradado. “Era mais em razão das obrigações escolares a cumprir”,
resumiu. De fato, não é o que se nota a respeito dos leitores
de Lobato e mesmo dos leitores de Pedro Bandeira, autor cuja
correspondência entre 1980 e 1990 foi pesquisada por Raquel,
período em que ele começou a criar a série Os Karas, que repete
o mesmo grupo de personagens em cinco romances consecutivos.
“Isso atraiu muito a atenção do público adolescente. Os jovens
escreviam para Bandeira a fim de saber o que aconteceria nos
episódios seguintes e o destino dos respectivos personagens.
Foi algo que motivou essa escrita porque justamente tinha
essa questão seriada. A obra de Lobato tem um núcleo comum
e os personagens vão se repetindo ao longo dos livros. Trata-se
de uma estratégia excelente”, analisou Raquel.
Sobre como a pesquisa poderia
auxiliar em outros trabalhos, Raquel considera que em boa
medida pode ajudar a repensar quais são, atualmente, os ambientes
de leitura que existem, os ambientes que de fato os leitores
procuram, e também a pensar que talvez a leitura que se espera
não seja aquela que agrade de fato ao público. “Isso é uma
discussão que nós desenvolvemos no IEL, numa linha de pesquisa
bastante interessante com as professoras Márcia de Abreu e
Marisa Lajolo. Trata-se de repensar todo esse estereótipo
que existe sobre o brasileiro não-leitor”, ressalta a pesquisadora.
Há um projeto no IEL chamado
Caminhos do Romance, cujo foco é o início do século XIX, analisando
a circulação de livros no Brasil nesse período. O que as pesquisas
têm demonstrado é que o brasileiro lia sim, porque havia correntemente
anúncios de livros e livreiros nos jornais do período. “Eram
anúncios frequentes, que tinham lugar destacado nos periódicos.
O grande problema é que talvez a gente faça a pergunta errada.
O que é que se lê de fato? Talvez os jovens não leiam Machado
de Assis, Guimarães Rosa ou Graciliano Ramos, vistos como
cânones pela crítica literária, mas talvez leiam bastante
outros gêneros que, por uma série de motivos, são tidos nos
circuitos intelectuais como literatura menor”, disse.
A pesquisadora comenta que
Harry Potter, por exemplo, não é o tipo de literatura levada
para a escola, “E talvez nem devesse levar mesmo, porque as
crianças não precisam de estímulo para lê-lo”, comentou. Para
ela, isso não significa que as crianças não leiam, mas sim
que elas não lêem o que a escola impõe. “Dá para pensar em
termos do que é uma leitura que de fato interesse ao público
e o que é uma leitura que se exige do público. Dito de outra
forma, o trabalho pode ajudar a pensar o que esses lugares
de consagração da literatura colocam como leitura de fato,
que seria válida e, de outro lado, o que os leitores gostam
de ler e sobre o que eles querem se debruçar”, finaliza.
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